O futebol real e o Macacaembu

Primeiro ato

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Ponte Preta x Lanús

Santiago Silva, careca lustrosa, uruguaio perna dura que rodou metade dos times da Argentina, tem o gol escancarado, goleiro batido, e bola ao pé direito.

Livre, de dentro da pequena área, ele fuzila.

Fora!

Hora de cutucar o amigo: “a Macaca não perde hoje”.

O "padrão FIFA" chegou, queira ou não queira. Ele pressupõe público com as nádegas sobre os assentos, estacionamentos amplos, banheiros marmorizados, fila para o hotdog de R$ 10, arquibancadas com cobertura e gramado impecável. É a lógica da sociedade do espetáculo, o futebol trilhando o rumo da NBA, da NFL, dos mascotes, das animadoras de torcida e do consumidor febril de shopping center.

Adeus, pernil.

Tchau tchau, churrasquinho de gato. Está pronto e embalado. É só você comprar. À torcida, longe do feio, sujo e malvado, cabe aplaudir quando um lance mais agudo acontece. Fotografa, posta no Instagram e grita que é brasileiro como muito orgulho e muito amor. Bem, há 189 dias para o início da Copa do Mundo, parece que não que avisaram aos primos pobres, aos rebaixados, pequenos e amaldiçoados, que o futebol -- esse resquício da congregação dos povos e de classes -- caminha bovinamente para a área VIP.

Sendo assim, Ponte Preta e Lánus não viram opção a não ser medir forças.

Segundo ato

Goltz cobra a falta e marca o gol
Goltz cobra a falta e marca o gol

10' do segundo tempo. O zagueiro Goltz cobra falta milimétrica. Bola no ângulo de Roberto que, petrificado, só olha. Los hinchas da La Barra 14 cantam, transformam o estádio municipal em La Fortaleza, sua casa na Grande Buenos Aires. É uma fanfarra maldita, como alguém simplificou da arquibancada.

Noite quente. Jogo fervendo. Mais de 28 mil testemunhas compareceram ao "Macacaembu". Um deles foi o Roberto, simpático motorista de van campineiro que veio para cá especialmente para a partida de sua existência. Não perguntei seu sobrenome, mas brindei caminhando para a entrada do estádio e expliquei como chegar à Marginal Tietê. Ele parecia perdido, amedrontado. Trazia na testa o suor frio dos virgens. Todos nós sabemos como é, certo?

Finais trazem calafrios aos pontepretanos. Foi assim em 1977. Ainda é assim em 2013.

Terceiro ato

Fellipe Bastos comemora o gol de empate
Fellipe Bastos comemora o gol de empate

Felipe Bastos tem a chance da partida. O jogo se encaminha para um final favorável aos visitantes.

Falta.

Mais uma. Foram 13 apenas da equipe de grená e branco na primeira etapa. O volante brasileiro se posiciona. Corre e encaixa uma cobrança perfeita. Empate no placar. A torcida deixa as unhas de lado e estufa o peito:

"Ponte, Macaca querida, amor da Minha vida, sou louco por você".

Em campo, encontro malicioso, nos moldes de sempre de um bom confronto entre brasileiros e argentinos. Cera, cartões amarelos, reclamações. Juíz melindroso, pé atrás. Marca tudo com atraso. A partida segue um ritmo interessante para o padrão morno de primeiros encontros decisivos.

O Pacaembu é Macacaembu.

Ironia, não?

Justo nós, os macaquitos. Justo a Ponte, um dos pioneiros em aceitar negros em seus escretes. Escanteio é hora da arquibancada imitar símios. No mínimo lance de perigo também. Daria uma boa hashtag, uma boa estratégia de marketing. Dá para ganhar dinheiro com isso, apresentar como uma maneira domesticada, higienizada, bonita. Parece mais justo reforçar o ridículo de quem ainda vive cinco séculos atrás.

Quarto ato

A bandeira da Macaca (todas as fotos são do GloboEsporte.com)
A bandeira da Macaca (todas as fotos são do GloboEsporte.com)

O relógio marca 41 da etapa final. Divididas, bola para o mato. Ninguém pode perder. Falta. Mais uma. Dessa vez, à direita da meia-lua. Felipe Bastos se posiciona. Mira, olha, corre e bate.

Na trave!

Fica para a próxima.

Vai ser com emoção. Com ataques cardíacos, pode ter certeza.

Não conheço ninguém que tenha se inscrito nas fileiras alvinegras nos momentos de baixa dessa fila infindável. Eu mesmo, vizinho do estádio Paulo Machado de Carvalho, só me dei conta de tamanha história negativa no caminho para a peleia. A vida é assim: é bem legal ser solidário nos bons momentos.

Link YouTube | “Você tem muita frieza/ De dizer que é meu amigo. Quando eu estava mal/ Você só ficava lá parado zombando. Você tem muita frieza/ De dizer que quer ajudar. Você só queria estar do lado/ Que estivesse ganhando”

A Ponte, com sua história sofrida, dolorosa, nos lembra que o futebol é um jogo com três resultados possíveis: somar um, faturar três ou sair sem nada.

Há ainda impactos psicológicos claros que não indicam pontos na tabela nem valem como gol fora de casa. Recuperar-se de um resultado negativo frente sua torcida é tudo numa disputa equilibrada de duas partidas. Representa ainda mais no xadrez que uma final sul-americana pressupõe.

Se o ingresso custar R$ 10 e o tobogã estiver quente como inferno, 113 anos de derrotas e desprezo da sorte parecem doces feito beijos apaixonados.

São Paulo é o "Planeta da Macaca". É a terra dos pequenos, ainda que por uma noite.

O futebol é tudo isso.

Tem dividida, juíz ladrão e o que precisar durante 90 minutos. E nada disso precisa de padrão FIFA.


publicado em 05 de Dezembro de 2013, 08:40
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Rafael Nardini

Torcedor de arquibancada, vegetariano e vive de escrever. Cobriu eleições, Olimpíadas e crê que Kendrick Lamar é o Bob Dylan da era 2010-2020.


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