O medo de primeiro mundo que dificulta a vida

Mais do que qualquer filme de terror, a privação assusta e comanda nossas ações

Aqui no dito Primeiro Mundo perdemos muita coisa de vista devido a um medo exagerado causado por um sentimento muito particular.

Ainda que geralmente esse medo seja muito sutil, consigo vê-lo se explicitar toda vez que o Sr. Bigode da Grana Mr Money Mustache ou outros defensores da aposentadoria precoce começam a bombar na mídia. As seções de comentários destas grandes publicações são invariavelmente horríveis, e não recomendo que você as leia, mas se por acaso as ler, vai perceber uma tendência. Mesmo quando Pete explica a matemática absurdamente simples que prova que a aposentadoria precoce é possível para pessoas com renda média, os comentadores insistem que prefeririam manter o nível de vida do que se aposentar vinte anos antes e “passar necessidade” depois.

Esse medo não examinado de “passar necessidade” tem um efeito enorme em nossas vidas. Os consumidores acabam se endividando porque temem ficar sem algo a que estão acostumados. Comemos demais porque tememos nos desapontar com porções pequenas. Continuamos em nossos hábitos ruins por anos por que o mero pensamento de não nos permitir fazer algo que gostamos soa opressivo. “Eu mereço!” dizemos a nós mesmos. Ou pelo menos a publicidade diz.

O que é esquisito é que geralmente nem é mesmo necessidade real. Trata-se sempre de uma escolha. A compra grande, as calorias extras e os hábitos indulgentes estão sempre ali disponíveis para que você os usufrua deles ou não.

Deparamo-nos o tempo todo com uma escolha desse tipo: “me permito isso? Ou não?” Particularmente, quando estamos no meio de algum esforço de autodesenvolvimento, nos descobrimos presos num dilema: fazemos a coisa pouco saudável e nos sentimos culpados depois, ou fazemos a coisa saudável e ficamos com a sensação de que falta algo. Você pode pedir a salada em vez da batata frita, mas então você acaba assistindo as pessoas comendo suas batatinhas enquanto você come sua triste saladinha.

Estes tipos de escolhas de estilo de vida dizem respeito a muito mais do que simplesmente pesar os custos respectivos e os benefícios das calorias extras, e a inveja culinária. Seguir a rota da autoprivação parece querer dizer que estamos renunciando a prazer e conforto, que são parte de nossas vidas. Uma vida assim, cheia de limites, parece horrível, então escolhemos o que parece liberdade. E se a liberdade for frita por imersão, então será isso mesmo.

Parece como que estamos constantemente esbarrando nessa situação:

A porta 1 para diversão, delícia, êxtase, mas também para vergonha, derrotismo e sonhos comprometidos;

A porta 2 para força, glória, saúde, mas também para o martírio, o medo de perder o que está acontecendo, e o sentimento paralisante de falta

Ajuda bastante pelo menos reconhecer que muitas de nossas dificuldades pessoais tomam esse formato. Quando você reconhecer, fica bem óbvio que a Porta Número 1 é nada mais do que vender seu eu futuro por um prazer passageiro, cujos benefícios somem em minutos, e cujos custos duram muito mais. Em uma única ida mal pensada à confeitaria o Você Agora ganha dezessete minutos de prazer gustativo, enquanto que o Futuro Você perde vinte reais e acumula duzentas gramas de gordura desnecessária que demandarão mais cinco visitas à esteira para perder.

Com isso não quero dizer que não haja espaço na vida para a sobremesa (não sei quanto a você, mas eu sempre acho espaço.) Mas quer dizer que nunca nos livramos dessa negociação. Recusar-se a não usufruir de algo é privar-se de uma outra coisa. Quando nos entregamos a algo porque “merecemos”, o que será mesmo que “não merecemos”? Um dia de folga para a carteira, em que evitamos o consumo? Não ter que compensar nossa escolha de entretenimento numa esteira mais adiante?

Mas mesmo quando estamos totalmente cientes de que a Porta Número 2 é melhor, muitas vezes escolhemos a Porta Número 1 simplesmente porque temos aversão à ideia de viver em autoprivação. Tememos que a Porta Número 2 nos leve inevitavelmente a nos tornarmos uma figura monástica, que como três grãos de arroz na janta, dorme numa tábua e lembra nostalgicamente como a vida um dia já foi alegre.

O caminho da autoprivação é sentido como um abandonar da felicidade. Temos essas imagens mentais dolorosas de perder oportunidades tais como cerveja, concertos, frituras, boas roupas, baladas, e a liberdade de fazer o contrário sempre vai estar do outro lado – a não ser que você tome a Porta Número 1.

Isso é bobagem. É possível encontrar mais felicidade em fazer o que é sábio a maior parte do tempo, e o sabemos. Nossa liberdade de ir para qualquer um dos lados sempre está presente, e a agonia da autoprivação é apenas outro monstro debaixo da cama. Só está lá até você olhar.

Não existe isso de “ter tudo que se quer”

Meu experimento de jejum está confirmando uma velha suspeita: a dor da autoprivação (que talvez fosse mais justamente chamada de “privação voluntária”) é só um espantalho. Viver com medo disso é muito mais limitador do que efetivamente passar pela experiência.

A Porta Número 2 não é o fim da liberdade, é o início. Há alguns sentimentos de desconforto iniciais, algumas tentações passageiras de largar tudo e se entregar ao que sempre se fez, mas o pano de fundo dessas dificuldades esporádicas é um sentido de poder pessoal aumentando de forma contínua, uma nova confiança na capacidade de fazer o que é melhor para si próprio.

A mudança em minha mentalidade com relação a comida nas últimas semanas é impressionante, e irônica: já que evitar a comida é algo que eu faço em algum momento todos os dias, eu vivencio uma liberdade maior quando eu como. Posso fazer uma refeição grande e sofisticada sabendo que vou comer menos o resto do dia. Ou posso evitar comer sabendo que terei a mesma liberdade mais tarde. Em nenhum caso há vergonha ou sentimentos conflituosos, ou aumento da barriguinha de cerveja. O sentimento de querer e não ter não me assusta mais, e isso porque eu me permiti vivenciá-lo. Não é tão ruim – é muito melhor do que sentimento de culpa e desapontamento consigo mesmo – e passa.

E, claro, não é privação, porque permanece a escolha. Privação verdadeira é quando você não tem acesso a algo de que necessita. Nosso medo exagerado da privação é um sinal de quão pouco saudável é nosso relacionamento com nossos desejos na socidade de consumo. Não só tememos não ter o suficiente de alguma coisa, tememos não possuir absolutamente tudo o que queremos dessa coisa.

Após duas semanas de meu jejum intercalado, ouvi um podcast com Joseph Goldstein, um proeminente professor de meditação e escritor, e ele levantou uma ideia que caiu para mim bem na hora certa. Ele disse que a ideia monástica de renúncia parece para nós um fardo. Implica sentimentos de privação e perda. Mas ele aprendeu a ver a renúncia como o estado de não estarmos viciados em nossos desejos – o que mudou completamente a perspectiva – em vez de ser a adoção de um fardo adicional, é abandonar um fardo que já está presente.

Goldstein disse que um de seus alunos perguntou a um mestre budista que passava em visita, “Por que se tornar um mestre?” Ele pensou sobre a questão e disse “Por que é mais fácil.”

Sabemos que as duas portas tem consequências, mas de modo geral exageramos os pontos negativos da Porta Número 2 (e os positivos da Porta Número 1). Isso muito possivelmente tem a ver com nossas ideias de sucesso do Primeiro Mundo. A felicidade geralmente é concebida como “ter tudo”, e é uma ideia muito alienígena dizer que, objetivamente, é melhor não ter tudo. Temos pavor quanto a sermos despossuídos, não porque amamos nosso hedonismo, mas porque não queremos nos sentir pobres. Não queremos nem mesmo flertar com a privação, mesmo que ela seja voluntária (e provavelmente temporária), e mesmo quando sabemos que é a melhor escolha.

Aventuras de “ficar sem”

Porém, simplesmente aceitar o que digo não vai mudar nada, já que o medo de passar necessidade é causado por uma falsa compreensão de como é realmente viver atrás da Porta Número 2, com relação a algo específico; só dar uma olhadinha não é suficiente. Se você tem aversão a acordar cedo, mas consegue entender os benefícios de fazê-lo, você não vai saber como é passar aquela primeira manhã sonolenta. Você ainda sentirá a resistência, ainda será alguém que acorda tarde se esforçando para fazer as coisas, sem realmente ser capaz de captar o que há a ganhar com isso, e com boa parte de seu coração ainda voltada a seguir pela outra porta e voltar para a cama.

A revelação verdadeira vem mais tarde, quando superamos aquela obsessão inicial com o que se está perdendo, e então podemos começar a apreciar do que nos libertamos. Dias que terminam cedo demais. Ciclos viciosos de procrastinação. Vergonha e culpa no meio da tarde. Sessões de estudo em pânico no meio da madrugada. Uma ausência de autoconfiança que você nunca havia percebido ter. Quem pode saber?

Estas explorações não precisam ser renúncias pela vida toda. A ideia é apenas experimentar com a outra via quando você se depara com aquele dilema familiar, e permanecer nela por tempo suficiente para entender o que se ganha, em vez de se focar no que é perdido.

Nosso medo exagerado de vir a passar necessidade nos custa muito: anos de vida, autonomia, saúde pessoal e do planeta. Tudo que precisamos fazer para recuperar estas coisas é experimentar com um pouco mais frequência o que está atrás da porta número 2.

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Nota: esse texto foi originalmente publicado no blog Raptitude e traduzido sob autorização do autor.


publicado em 23 de Maio de 2015, 00:05
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David Cain

David Cain escreve no Raptitude, um blog que oferece um olhar sobre a experiência humana.


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