O ponto firme | Como o crochê mudou a vida de homens encarcerados

Documentário mostra a vida de detentos que aprenderam crochê na prisão e desenvolveram peças para o SP Fashion Week

“Um preso, um ladrão (como nós éramos chamados lá dentro) fazendo crochê? As pessoas criticaram. Você está fazendo aquilo que, para os homens, é pra mulher.

A crítica, nada disso nos atingiu. O projeto que começou lá dentro está continuando aqui fora. Mudou muitas coisas na minha vida. Muda o seu pensar, o seu agir, hoje eu faço com a minha mulher e vou fazer com com a minha filha que nasceu recentemente.”

Conta Anderson Joaquim, que estava encarcerado quando conheceu o Projeto Ponto Firme, fundado pelo estilista Gustavo Silvestre. O Ponto Firme ensina crochê para homens da Penitenciária II Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos/SP, desde 2015. Há dois anos Anderson terminou de cumprir sua pena e hoje vive em liberdade trabalhando como artesão junto a Silvestre.

O documentário O Ponto Firme, dirigido por Laura Artigas, acompanha meses das oficinas de crochê e das histórias destes homens encarcerados que, em 2017, colocaram suas peças para desfilar pela primeira vez no São Paulo Fashion Week N45.

Hoje, O Ponto Firme está na sua terceira coleção e o documentário estreou na SPFW N50. 

 

O documentário será exibido em sessões online. Quer assistir o filme completo? Aqui você deixa seu nome para participar da próxima sessão.

“Por mais que eu esteja com o corpo aprisionado a minha mente é livre para ir a diversos lugares que eu permita que ela vá”, diz um dos alunos.

Para os que cumprem pena, o crochê ajuda a ocupar a cabeça, a planejar um futuro diferente do passado, ajuda também a passar o tempo. Para a própria penitenciária e seus agentes, a vantagem é que o alunos das oficinas ficam mais calmos e cooperam com as regras para continuar no programa.

Crochê  é coisa de homem?

Homens e mulheres têm a possibilidade de segurar uma agulha e tecer uma peça. Mas na cabeça de muitos, fazer crochê evoca a imagem de uma avó e recebe o estigma de "coisa de mulher" e de "coisa de velha”. 

E ai nos perguntamos: e os homens da prisão se interessaram em fazer crochê?

Gustavo Silvestre conta que, com as 11 agulhas doadas que tinha, abriu 11 vagas, esperando, no fundo, cerca de 3 interessados: “Pra minha surpresa a sala de aula estava cheia."

Hoje o projeto tem 20 vagas e uma fila de outros homens encarcerados que querem fazer parte. Anderson conta sobre o preconceitos de quem não frequentava a aula e como isso se quebrou ao longo do tempo.

“Viam com um olhar meio de ‘afeminado’, com uma discriminação. Mas nós suportamos isso e nos mantivemos. Quando passamos no Fantástico, isso mudou totalmente: aqueles que estavam criticando, agora querem fazer.

Você pega uma linha começa a fazer um trabalho quando você vai ver está bem feito e ai você pensa “nossa eu que fiz isso”.

Alunos do projeto Ponto Firme assistem desfile das peças que fizeram 

O estilista tem raízes em Recife e lembra como bordados e crochê foram parte da história das mulheres de sua família. Estas lembranças tornaram-se uma forma de se conectar com os alunos.

“Quem aqui tem mãe, avó, irmã que faz crochê? Que legal, então a gente têm algo em comum!”

Por que levar crochê para dentro da prisão?

Incomodado com as problemáticas da cadeia produtiva da moda e seus impactos negativos, foi no crochê que Silvestre encontrou um novo universo de possibilidades:

O estilista e professor Gustavo Silvestre

“Eu precisa de um fio e pode ser qualquer fio, e uma agulha. Com qualquer pedacinho de madeira eu faço um gancho. Gente, eu sou um estilista capaz de fazer meu próprio tecido. Com uma única ferramenta, que é uma agulha, e um pedaço de fio, você consegue fazer tudo. 

Quando eu comecei a fazer crochê não tinham muitos homens. As pessoas olhavam e viam esse barbudo no metrô puxando uma agulha e fazendo crochê, era uma visão muito estranha. Numa dessa um senhor e aproximou e contou que tinha uma trabalho numa penitenciária, se eu não daria umas aulas pra esses meninos. Evoluímos na conversa e isso me levou pra dentro da penitenciária. 

Na minha cabeça eu ia dar um workshop de cinco, seis meses de aula.  Quando eu cheguei lá eu me deparei com esse cenário, com uma escassez de atividades educacionais, atividades de trabalho e uma vontade enorme da parte deles.

Agora minha maior preocupação é cuidar desses meninos que estão saindo. O Brasil tem a terceira maior população carcerária, um dia, todas as pessoas vão sair da cadeia e não existe nenhum programa de ressocialização. 

Muitas vezes o Estado só apareceu na vida dessas pessoas para prender: não teve creche, não teve saúde, não teve educação, não teve nenhum acompanhamento. Quando o Estado aparece é pra prender. E solta depois também, como se nada tivesse acontecido. 

Os meninos começaram a sair e me procurar. E agora? A gente preparou essas pessoas, elas estão aptas a trabalhar. Eu fui acolhendo estes rapazes que estão trabalhando comigo hoje e toda a minha produção passa por isso. Eles deram aula comigo no Sesc paulista, na SP Arte, começamos um programa de aulas e isso é inédito.”

Crochê como trabalho e caminho de volta para a vida social

Alunos crocheteando na sala de aula do projeto Ponto Firme

Anderson contou como o crochê fez parte da sua trajetória de sair da prisão e voltar a viver em liberdade:

"A sociedade hoje em dia olha o preso como um lixo, discrimina. Se eles pudessem, muitos jogariam uma bomba lá. Mas lá dentro tem verdadeiros talentos e pessoas boas. Se todas as cadeias tivessem o projeto como O Ponto Firme, os homens sairiam de lá completamente mudados. 

Você sai de um cotidiano de um quadrado pequeno — eu morava numa cela de 3x4m², com 12 homens dentro de uma cela — dois anos e meio preso num lugar daquele. Você sai, vê o mundo e pensa: pra onde eu vou? qual é o caminho?

Um cara como o Gustavo deu esse apoio, ensinou, acolheu, está acolhendo, está ensinando o caminho... As minhas irmãs queriam fazer, eu ensinei. Ai eu fui ensinar minha esposa e ela já sabia. Enquanto eu estou trabalhando ela está fazendo peças. Eu estou há dois anos na rua, trabalhando com o Gu e com pintura. Não é fácil mas estamos ai ralando."

A arte vem da prática e é para todos

Mais do que mostrar a oficina de crochê, a diretora Laura Artigas deu espaço e voz para que os alunos, que crocheteavam a coleção, também tecessem o documentário.

Eles são parte da criação do filme: sugerem posicionamentos de câmera e entrevistam uns aos outros.

“Mais de metade das gravações foram feitas nesse esquema para que eles contassem as próprias histórias a partir da perspectiva deles. Quem são eles o que eles gostam?

Eles têm histórias fascinantes e, com o estigma, muita gente esquece do ser humano que existe ali.”

Laura também conta o que aprendeu de mais valioso ao ficar nove meses acompanhando as oficinas de crochê na penitenciária:

"Acho que uma coisa legal desse filme é que se tem um senso comum que o artista é "aquela pessoa que nasce um gênio".  Estando lá você vê que não, que simplesmente é alguém que pratica muito.

Quem é um artista e quem pode ser um artista? Artista é aquele que pratica e se dedica. 

É meio clichês e soa até piegas, mas é mesmo dar uma oportunidade e saber encaminhar essa oportunidade."


publicado em 10 de Novembro de 2020, 18:17
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