O que aprendi com homens que fazem tricô, crochê e bordado ao redor do mundo

Na Pesquisa Tecendo Novas Masculinidades investiguei como fios e agulhas se tornam ferramentas na construção do que é "ser homem".

O tricô sempre foi uma prática comum na família.

Minha mãe, avós e tias faziam meias, toucas e blusas para as crianças todos os anos. Na infância lembro de minha mãe tricotando em casa, com suas mãos fortes e dedos ágeis.

Photo by Nadia Clabassi on Unsplash

Esse era um dos poucos momentos em que ficava concentrada em apenas um assunto. O resto do tempo ela passava trabalhando como empresária e dona de casa, cuidando dos afazeres domésticos, do marido e dos filhos.

Apesar dessa proximidade com os fios, o tricô entrou na minha vida depois do nascimento do meu filho, quando passei a ficar mais tempo em casa e a perceber a importância do cuidado nas relações. A paternidade despertou minha versão mais sensível e corajosa (“minha porção mulher”, como diz Gilberto Gil na canção Super Homem). 

Quando minha família e eu nos mudamos de São Paulo para Curitiba, vi minha esposa tricotando, fiquei curioso e resolvi experimentar. Aprendi o básico e passei a fazer algumas peças para presentear amigos, acompanhada de uma carta com lembranças de momentos vividos.

O estranhamento e a comoção desses amigos ao receberem o presente me fizeram refletir sobre o fato de um gesto relativamente simples, apesar de pouco comum entre os homens (a demonstração gratuita e explícita de carinho), ter causado tal reação. 

​Gorro e uma carta, ambos da autoria de Gustavo.

Tecendo o fio da conversa

Estimulado por essa experiência e pelo processo vivido por minha esposa ao criar a revista Urdume — uma publicação independente sobre artes manuais têxteis — comecei a investigar sobre os trabalhos manuais com fios e as masculinidades, me questionando: 

Por que o tricô, o crochê  ou o bordado são fazeres manuais entendidos somente como femininos e domésticos? Por que há poucos homens que praticam esses fazeres manuais atualmente?

Imaginando que estas práticas poderiam ser usadas para desconstruir estereótipos e ressignificar a construção das masculinidades, criei o Fio da Conversa e passei a realizar encontros com homens para ensinar/praticar tricô e conversar sobre masculinidades, paternidades e relações de gênero. Os encontros iniciaram-se em abril de 2019 e ocorreram, presencialmente, durante todo o ano. Em 2020, devido à pandemia, os encontros passaram a acontecer online.

​Um encontro do grupo Fio da Conversa

Paralelamente, realizei entrevistas com homens que trabalham com a produção de peças ou obras de manualidades têxteis pelo mundo (Brasil, Chile, Estados Unidos, Canadá, Portugal, Noruega, Itália, Taiwan, Japão, França), para uma matéria publicada na Revista Urdume, que deu origem à pesquisa Tecendo Novas Masculinidades

Emaranhado de aprendizados iniciais

Nas entrevistas, me chamou atenção o posicionamento afirmativo da maioria desses homens como artistas, em descrédito ao título de artesão, e o destaque dado a eles na mídia pela execução de tarefas feitas exaustivamente por mulheres ao longo dos séculos sem a mesma visibilidade. Eu, por exemplo, fui capa do jornal Folha de São Paulo no dia dos pais de 2019 por causa do projeto do Fio da Conversa.

Além do interesse na investigação sobre as implicações dos fazeres manuais na construção das representações de masculinidades e feminilidades, o tricô tem me permitido intervir no mundo de forma mais poética, onde encontrei minha maneira de materializar a criatividade e expressar amor, inclusive por outros homens.

​Este é o avô Dito usando o colete tricotado pelo Gustavo.

E nesse processo de aprendizado e abertura, ganhei meu maior presente quando dei um colete ao meu avô Dito, meu último e querido avô, e ele me confidenciou algo que ninguém da família sabia: que ele tricotava, sob a luz do lampião, com suas irmãs, quando pequeno. Então entendi que o tricô faz parte da minha ancestralidade e é para onde estou retornando.

A pesquisa: tecendo novas masculinidades

Para compor a pesquisa se entrelaçaram bibliografias que contavam os contextos históricos dos fazeres manuais e das relações dos homens com estas práticas, além de entrevistas, dados e do trabalho com o grupo. Aqui, nesta matéria, vai um resumo. Se quiser ler um artigo mais completo, esse é o link. 

O tricô surgiu como um ofício de homens, não se conquistava a alcunha de tricoteiro da noite para o dia. Segundo Dave Fougner (1972) “para que um homem daquele período se tornasse um mestre na arte do tricô, ele precisaria passar seis anos como aprendiz. Para se ter noção de seu prestígio, um mestre do tricô era estimado por reis e rainhas."

Ilustração sobre o tricô feito por homens há séculos atrás

​O protagonismo masculino permaneceu até o final do século XIX, quando o tricô feito à mão perdeu seu prestígio. O fato do tricô ter se tornado uma atividade feminina ao perder o seu valor na sociedade, não é de se estranhar. Segundo a psicanalista Muszkat (2018):

“A divisão sexual binária da sociedade, na qual as atribuições do perfil masculino são contraponto direto ao feminino, e vice-versa, torna supostamente insuperável a oposição entre os valores e elementos de cada uma das partes, já que é por meio dessa oposição que uma atribui significado ao existir da outra”.

Recuperando a tradição para gerar mudança

​Gustavo Seraphim tricotando com o filho sobre os ombros

É nesse contexto que o tricô e outros afazeres, com fios ou não, valorados como atividades do ambiente doméstico e feminino, ressurgem como forma de recusa das antigas funções dadas aos homens.

Aliás, pessoas de ambos os gêneros vêm ressignificando o ofício como ferramenta de trabalho, expressão criativa e ativismo social.

A fim de conhecer como se configura esse cenário no Brasil e em outras partes do mundo, a iniciativa Fio da Conversa, em maio de 2019, iniciou a pesquisa “Tecendo Novas Masculinidades - Uma análise do impacto da atividade manual têxtil na ideia de masculinidades dos homens que tecem”.

A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas em profundidade com 26 homens de oito países. No Brasil, houve participações de quatro regiões e nove estados, além da América Latina, América do Norte, Europa e Ásia.

Dentre os homens entrevistados, oito deles são praticantes de tricô, seis de bordado, cinco de crochê, três de tricô e crochê e dois de tecelagem.

Compartilharemos aqui o resultado preliminar da análise e de parte das perguntas realizadas.

É hobby ou é trabalho?

​Infográfico da Revista Urdume apresentando a pesquisa
  • 56%, dedica-se profissionalmente, e de forma exclusiva, à sua técnica de trabalho 

  • 8,7% dedica-se de forma amadora

  • 34,8% atua profissionalmente paralelamente a outra profissão.

Como começaram a tecer?

Ao serem questionados sobre como as artes manuais passaram a fazer parte de suas vidas, 69,6% dos entrevistados teve seu primeiro contato ou foi ensinado por mulheres da família (avó, mãe ou tia), durante a infância.

Apesar disso, 40% deles não deram continuidade a esses fazeres, por terem recebido a orientação de que aquela era uma atividade feminina, retomando a prática apenas na idade adulta.

“Quando criança aprendi o tricô e o crochê. Além de à época ter achado a repetição dos movimentos um tanto monótona, também não pude continuar porque minha família acreditava que era uma atividade exclusivamente feminina" - descreve um dos entrevistados.

O que parece ser um indício não apenas da separação de uma atividade por gênero, mas também da supressão dos sentimentos do homem, uma vez que esses fazeres estavam sendo aprendidos em um ambiente doméstico e familiar, configurando uma relação afetiva.

Como afirma Muszkat (2018)

É assim que nossos meninos submetem-se à castração dos afetos “para virar macho (...) O homem na sociedade patriarcal é construído para ser um deus: centralizador, conscientemente poderoso e previamente definido.”(Muskat, 2018).

De artesão a designer

Dos entrevistados, 75% afirmou ser artista ou designer. Talvez por isso, diferentemente das mulheres, os homens, a partir do momento que assumem seu trabalho com as artes manuais têxteis, se apresentem prioritariamente como artistas ou designers (profissões de maior reconhecimento social).

“Embora as mulheres nos campos "masculinos" apresentem a tendência a experimentar uma diferenciação que dificulta o seu desenvolvimento e progresso nas profissões escolhidas, os homens experimentam um tipo de “diferenciação” que aprimora suas experiências de trabalho e lhes permitem atingir cargos com maior remuneração” - Morneau citando Williams (2015).

[Em 2018, o cantor Seu Jorge criou a página @novelodeanjo para mostrar seus trabalhos em tricô e crochê e foi destaque nos mais variados veículo de comunicação].

Expressões do feminino

​Foto de Gustavo Seraphim

Perguntados se identificavam em si características entendidas como femininas, 91,3% dos entrevistados responderam que sim e 8,7% responderam que não.

Verificamos ainda que, para todos os que responderam positivamente, apresentar aspectos femininos não é um problema, pelo contrário, seria uma forma de ampliar suas possibilidades de existência no mundo. Contudo, muitos deles relataram que sofreram preconceito por demonstrarem essas características.

“Toda a minha infância e adolescência foram vividas sob cânones pré-estabelecidos de gênero, principalmente sob conceitos heteronormativos e patriarcais. Eu tive que lutar muito para construir minha própria identidade e modo de ser; a sociedade, infelizmente, exerce uma pressão da qual é custoso escapar.”, afirma um dos entrevistados.

Aqueles que responderam negativamente o fizeram ou por não entenderem existir características que diferenciam o feminino e o masculino, ou por não verem sentido nessa diferenciação, como podemos deduzir da resposta a seguir:

“Nunca pensei nisso. Sou um homem que gosta da minha mulher e da minha família. Só isso. Podia ser um homem que gostasse de homens ou que não gostasse de ninguém a não ser a arte de tricotar. Acho que esta questão não faz muito sentido e nada tem a ver comigo ou com a arte de fazer malha.”

Historicamente, um dos argumentos utilizados para justificar a diferenciação e caracterização entre gêneros foi sua “natureza”, ou seja, a existência de um determinismo biológico que faria com que homens e mulheres tivessem comportamentos condizentes com sua constituição física.

Todavia, esse argumento não se sustenta, o que se verifica, na verdade, é que as restrições e limitações atribuídas aos sexos são construídas social e culturalmente e não definidas pela biologia. Já dizia a célebre frase de Simone de Beauvoir (1949): “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.

Harari (2015) esclarece:

“Como podemos diferenciar aquilo que é biologicamente determinado daquilo que as pessoas apenas tentam justificar por meio de mitos biológicos? Um bom princípio básico é “a biologia permite, a cultura proíbe. (...) A cultura tende a argumentar que proíbe apenas o que não é natural. Mas, de uma perspectiva biológica, não existe nada que não seja natural. Tudo que é possível é, por definição, também natural”.

* * * 

[A pesquisa segue em processo de aprofundamento para que se entenda, com mais profundidade sobre como artes manuais de tecelagem contribuem e conformam as transformações das masculinidades.]

O Fio da conversa: um grupo de homens para o tricô

O Fio da conversa, criado por Gustavo Seraphim, atua em Curitiba e, por conta da pandemia, neste final de 2020 está acessível a pessoas de todo o Brasil.

Quer tiver interesse em participar, pode entrar em contato pelo e-mail: gustavo@urdume.com.br ou no inbox do @fiodaconversa.


publicado em 10 de Dezembro de 2020, 06:00
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Gustavo Seraphim

Gustavo Seraphim é pai, tricoteiro e praticante assíduo de futebol. Formado em direito, pós graduado em Gestão e Políticas Culturais e atua como gestor de projetos culturais e artísticos. É também co-fundador do Instituto Urdume, onde coordena o Fio da Conversa, iniciativa por meio da qual investiga os fazeres manuais têxteis, as relações de gênero e as representações de masculinidades.


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