O que aprendi com o caminhar em silêncio no Japão

Um passo à frente e muita coisa pode acontecer na sua vida, amigo.

Ao norte de Quioto fica o templo de Ryōan-ji, muito conhecido por abrigar um dos jardins zen mais famosos de todo o Japão, se não o mais. Coisa pequenina, um retângulo forrado de pequenas pedras brancas e acinzentadas dispostas em suposta harmonia. Da esquerda para a direita podemos enxergar cinco montinhos de terra cobertos de um musgo de verde intenso que parecem formar ilhotas nos cascalhos, cada uma com pedras grandes, como se fossem pequenas montanhas-bonsai, se posso fazer essa boba alusão.

Entrei no templo no meio de uma tarde abafada, mas de tempo fechado, com muitas nuvens. O jardim, bem conhecido, costuma atrair muitas pessoas. Mas eu estava em um dia de muita sorte, com um ímpeto de encontrar a situação favorável de me deparar com um desses jardins em meio ao silêncio, conseguir - num país conhecido pela falta de espaço - uma fatia de solitude bem naquele local propício para atiçar a calmaria.

Chegamos e encontramos o local quase às moscas, apenas com um quinteto de japoneses simpáticos e silenciosos.

Coisa de cinco minutos ou menos e eles se foram. Se não fossem meus olhos a observar seus movimentos, a maneira com que eles se levantaram, o jeito com que eles cumprimentaram as duas funcionárias do templo com leves envergaduras de seus corpos, se eu não tivesse efetivamente olhando para essa sequência de simples fatos, não teria notado a saída deles. Seus pés eram mudos dentro das meias, uma marcha delicada, como se a vida não fosse uma questão de tempo ou impacto. 

Eles se levantaram e eram puro éter. 

Antes de me sentar para contemplar o silêncio, queria dar a volta no pequenino templo, que não podia ser adentrado, mas que eu poderia circular tranquilo no entorno. As construções antigas do Japão ficam acima do solo, elevados e eu fui circundando por um corredor aberto com o chão de madeira. 

Percebi rapidamente que eu não caminhava sozinho, mas levava comigo o meu barulho. Oras, eu pisava num soalho antiquíssimo que rangia me avisando do peso que eu lhe oferecia, uma gritaria aguda em meio ao remanso do santuário. Quanto mais eu avançava, mais o tablado grunhia. Eu estava perdendo a beleza da sorte de estar a sós comigo mesmo. Precisava me livrar daquela má companhia. 

Fiquei parado, sem ir e sem voltar. Meus ombros desistiram da tensão e se soltaram. Olhei para baixo e era só a madeira do solo e meus pés. Botei uma perna para frente e pisei com a ponta do pé, sem descer o calcanhar. Nada de o chão resmungar. Ótimo sinal, mas eu não poderia ficar zanzando em todos os mais de mil e quinhentos templos de Quioto na pontinha dos pés. Mas imaginei que não precisava, também, baixar o calcanhar feito pilão por onde quer que eu andasse. Dei outro passo, dessa vez com a planta do outro pé assentando primeiro, para depois acomodar a traseira. Deu certo. 

Passo atrás de passo, pernada depois de pernada e a serenidade foi retornando na mesma velocidade. Meu corpo ia e o estrépito ia ficando lá atrás. Quando voltei ao jardim, já tinha certa malemolência no andar, agilidade o suficiente para soar natural. Ou quase. Me esforcei o bastante para perceber que uma das funcionárias sorria me vendo chegar novamente. Como se pega costumes rápidos quando se está no Japão, cumprimentei-a com uma leve saudação abaixando meu tronco e me sentei de frente para o jardim. 

Ao sair, o mesmo sorriso, um risinho que provavelmente queria dizer "olha só. Você aprendeu".

Lá, ao norte de Quioto, se leva a caminhada primeiro com a leveza e depois com os pesares. 

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publicado em 06 de Novembro de 2015, 00:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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