O que aprendi em 10 anos guardando rancor

Minha história começa com o fim de uma relação.

Minha história começa com o fim de uma relação.

“Por volta dos dez anos de idade, meu pai levou minha mãe, meu irmão e eu em uma longa viagem de carro por aproximadamente 2000 Km, de Anápolis até Belém, onde nos deixou na casa da nossa avó materna dizendo que retornaria em breve.

Deu um beijo em mim e no meu irmão, falou algo com a minha mãe, entrou no carro, deu a partida e nunca mais voltou.

Eu, como muitos homens, carrego em minha história a marca de um abandono parental.”

Assim descrevi em um outro artigo a forma como meu pai deixou minha mãe, meu irmão e eu.

Como é de se esperar, tenho um longo histórico de rusgas, ressentimentos, mágoa e rancor com o meu pai, seja pelas mentiras, promessas não cumpridas ou pelo desaparecimento constantemente seguido por desculpas das mais furadas. Até que chegou ao ponto no qual senti que era melhor me afastar por completo.

Eu fui tão longe nisso que, quando recentemente me perguntaram sobre ele, de repente, percebi que passaram-se dez anos desde a última vez que falei com ele de maneira apropriada. Pessoalmente, então, calculo que não nos vemos há uns 18 anos.

Durante muito tempo, me neguei a admitir que eu tinha algo incompleto, manco. Meu processo me levou, no entanto, a uma condição na qual se tornou impossível fazer vista grossa pra esse fato.

Eu tentava escapar, mas ali estava.

Cada vez mais, comecei a notar com clareza bloqueios que me remetiam a interações com ele. Relacionamentos frustrados, tanto amorosos quanto de amizade, por evitar aprofundamento e autoexposição. Uma profunda ansiedade quanto a aceitar ajuda (juro, às vezes eu me sinto ofendido se alguém tenta me dar um presente). Reações desproporcionais quanto a promessas não-cumpridas. Dificuldade de entrega, de confiar, de fluir.

E eu nem mencionei o quanto de raiva me trazia quando alguém mencionava ou perguntava por ele ao meu redor.

Por mais que eu me negasse a admitir a importância, lá estava ele, em cada momento que me perguntavam. A cada vez que eu me via precisando lidar com as dificuldades ocasionadas pela ausência.

Não sei se cabe em um artigo como esse o tamanho das marcas não planejadas que ficaram.

Pra mim, ele não existia, mas o espaço mental que ele ocupava era enorme.

Assim, em meio a uma crise que envolveu burnout, depressão e a consciência sobre o quanto esse estado constante de vigilância e solidão me trouxe de ansiedade, conversas sobre isso começaram a surgir, tanto com amigos, quanto com a minha namorada, quanto com o psicólogo.

Apenas bem recentemente, decidi que era o momento de dar um basta. Era a hora de entrar em contato e dizer tudo o que eu sentia, tirar de mim.

Em princípio, minha ideia era esculachar. Arremessar palavras com o máximo de força, falando sobre o dano que ele tinha gerado em mim. Mas, no final, optei por outro caminho.

Consegui o número dele e mandei uma mensagem simples e curta, dizendo que me abria pra esse contato.

Não foi fácil. Estava há uns 20 dias às voltas com essa ideia.

E, pra ser bem sincero, não sei se o perdoei. Provavelmente não.

Não esqueci o que aconteceu e meu coração ainda arde de raiva quando começo a relembrar as mentiras, manipulações e omissões.

Mas decidi que era melhor mudar o foco de perdoar para não culpar. Sei que é um subterfúgio, um golpe mental meu pra passar por cima de tudo. Mas sinto que, dessa forma, não traio as minhas crenças e nem desrespeito esse lado que sofreu muito pelas consequências das ações dele. Assim, posso ir além disso, deixando essa mágoa pra trás e tentando construir uma nova história.

A resposta à minha mensagem me surpreendeu. Ele disse que sofria com nosso afastamento e, ao se deparar com algumas palavras duras minhas, não justificou, apenas acatou e disse que se eu quisesse, ele aceitaria estar mais próximo.

Parte de mim queria uma espécie de DR ou que ele tivesse retrucado e inventado mais desculpas, pra que eu pudesse explodir de raiva e tivesse uma briga como mais um motivo pelo qual eu prefiro estar distante. Mas não foi assim. Na verdade, ele foi bastante simpático e acolhedor.

Sei que ele não vai se tornar, magicamente, o pai dos meus sonhos. Aliás, eu nem quero. Parte desse movimento vem de querer ver tudo isso com os olhos de um adulto, sem fantasias infantis.

Se tem algo que posso compartilhar como lição nesse processo, é que a gente pode virar a cara pra parede e ficar lá, mas isso não muda o fato de que a mágoa vai se tornando uma espécie de balão e vai inflando, ocupando um espaço cada vez maior. 

Depois de um certo tempo, você se vê tendo que se esforçar pra manter aquela situação, seja recusando convites nos quais você sabe que a pessoa vai estar, seja ignorando quando a mencionam em alguma conversa, seja negando pra si mesmo que está pensando no assunto.

Eu, honestamente, não posso falar por ninguém. Essa é a minha experiência. Mas, pelo menos no meu caso, me colocar em condição de remover essa barreira, mesmo sem resolver nada, foi como tirar o peso do mundo das costas. Eu, literalmente, terminei a conversa e fui dormir, exausto, como quem descansa depois de uma longa e difícil viagem.

De lá pra cá, entrei num ciclo de notar minhas tendências rancorosas e tenho tentado reduzir esse tipo de entulho mental em outras relações também.

Às vezes, não é tanto pelo que o outro fez, nem mesmo é sobre ter compensação. Tem coisas que não dá pra compensar.

Meu pai, por exemplo, nunca vai viver comigo esses anos que passaram. Ele nunca vai estar comigo nos momentos que eu precisei dele no período da minha formação. Eu tenho consciência disso.

Não existe mágica, claro, e cada um tem um jeito de encarar e de lidar com seus traumas do passado. Mas, no meu caso, é um alívio abandonar a parte que segurava essa situação.

Acho que finalmente posso seguir mais leve na caminhada, deixando pra trás expectativas de como as coisas deveriam ser e começar a aceitar e acolher como elas de fato são.

Agora, tenho novos passos a cumprir. É hora de comprar uma passagem e ir até lá, conhecer o homem e não o pai que abandonou uma criança.

* * *

Nota: A imagem que ilustra esse texto é do filme "Sete minutos depois da meia-noite", recomendo demais.


publicado em 13 de Janeiro de 2020, 17:50
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Luciano Ribeiro

Cantor, guitarrista, compositor e editor do PapodeHomem nas horas vagas. Você pode assistir no Youtube, ouvir no Spotify e ler no Luri.me. Quer ser seu amigo no Instagram.


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