Como nasce um "Cabra Macho?" A história das masculinidades nordestinas

De Lampião a Chicó, por que alimentou-se o ideal de homem que faz as próprias leis e procura justiça com a ponta da faca?

O papo aqui é sobre “Cabra Macho”. É sobre essa ideia de homem que representa o que eu chamo de ‘Masculinidades Nordestinas Hegemônicas’. Antes, me deem um minutinho: precisamos desbravar nosso conceito sobre o Nordeste e desmitificar algumas ilustres figuras icônicas que hoje temos.

Como disse o arretado nordestino de Sobral,  Belchior "Nordeste é uma ficção. Nordeste nunca houve”. Então, este imaginário nordestino por quem foi criado? Quando? Por quê?

Imagem histórica de Lampião e seu bando de cangaceiros.

O objetivo deste nosso bate-papo é te convidar a um olhar questionador, diria até crítico, sobre este desenho do Nordeste e sobre nós, nordestinos e nordestinas, que hoje conhecemos. Ah... E, por favor, sinta que tudo que trago aqui é uma forma de amor por revolução ao nosso Nordeste e, ao que acredito, nos ajudará a explicar este conceito de ‘Cabra Macho’.

Importante – diria até necessário - desconstruirmos e ressignificarmos essas imagens, esses estereótipos que nos colocam em um lugar de segunda categoria, subdesenvolvidos, extremamente masculinizados ou de um Nordeste machista e subalterno a outras regiões.

Aliás, que todos os estereótipos sejam, por nós, interpelados e analisados com criticidade e profundidade. Não para apontarmos dedos, mas para que novos sentidos e novos significados sejam produzidos a todo instante.

Quem inventou o "Cabra Macho"?

A ideia de ‘Cabra Macho’ nasce de um olhar ligado à tradição, sempre com um certo saudosismo. Porém, vale ressaltar que tradição é (em grande parte) uma invenção da modernidade. Sim, amigos, amigas e amigues... Tradições podem ser grandes invenções.

Nestes anos de vivências nas rodas de conversas e pesquisas que realizei até então, me arrisco a dizer que a tradição nordestina que conhecemos hoje é, na verdade, um grande produto.

Vamos ao contexto histórico (e comercial): diversas normas passaram a estabelecer como este ‘Cabra Macho’ deveria se portar social e culturalmente, para manter o status das famílias tradicionais nordestinas que vinham em processo de decadência com a ascensão do café, a Proclamação da República e a promoção do processo industrial em território brasileiro.

O conceito de Nordeste que hoje conhecemos, nasce em 1909 com a demarcação de um espaço geográfico com características políticas e sociais entendidas como semelhantes, no documento que cria a Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca.

O discurso de “solucionar o problema da seca” (que serve de característica para descrever a região como uma e é utilizado até os dias atuais) se torna o principal argumento político das elites para reivindicar obras públicas e investimentos numa era em que a região entrava em crise econômica.

Na obra “Nordestino: invenção do ’falo’ – uma construção do gênero masculino” (2003), Durval Muniz de Albuquerque Júnior afirma que a ideia de Nordeste e de uma representação do homem e da mulher nordestina nascem de uma série de práticas regionalistas que se intensifica entre as elites do Norte do país, a partir do final do século XIX, quando o declínio econômico e político desta área levará a uma progressiva subordinação deste espaço em relação ao Sul do país.

É nesse contexto que a imagem do nordeste ganha um perigoso ‘colorido folclorizado’ e essa imagem que será disseminada por intelectuais e políticos do século XX.

A representação do nordestino como uma figura masculinizada constituiu-se como uma demanda dos endinheirados e donos de fazenda que, com ideias de justiça feita pelas próprias mãos, buscava manter o poder em posse dos senhores de terras que dominavam não só suas famílias mas, também, os governos. Afinal, um homem que obedece leis tem limites impostos ao seu comportamento e domínio.

O jeitinho das elites de lidar com os problemas resultam em “uma regionalidade que dá forma ao corpo e, alinhavados ao gênero, reitera alguns atributos masculinos e femininos como universais dos sujeitos regionais” (Dornelles, 2014).

Assim, o modelo de homem nordestino - do “Cabra Macho” - começa nascer. Um homem chefe do lar, áspero, de poucas palavras e com uma imensa sede de justiça.

Com algumas atualizações nos padrões de comportamento, a cultura segue reinventando essa imagem de homem calado, agressivo e violento.

Tudo é resolvido na bala ou na ponta da peixeira. Os homens que desviam destas duas soluções são nomeados como “frescos” (homofobia?!) e são considerados a vergonha da família. Quanto às mulheres, diferente das demais regiões do país, no Nordeste é estereotipada como “mulher macho”.

Foto de Maria Bonita, a mais conhecida "mulher macho" desse imaginário.

“[…] Nesta região, até as mulheres são machos, sim senhor! Na historiografia e sociologia regional, na literatura popular e erudita, na música, no teatro, nas declarações públicas de suas autoridades, o nordestino é produzido como uma figura de atributos masculinos. Mesmo em seus defeitos é com um universo de imagens, símbolos e códigos que definem a masculinidade em nossa sociedade” (Durval Muniz, 2013).

O folclore colorido e seus heróis

O ‘Cabra Macho’ é uma ideia compensatória. É quase como dizer: "falte o que faltar, não faltará a honra ou a coragem de um cabra macho de verdade que não leva desaforo pra cora."

Essa ideia é contada por grandes populistas intelectuais — que são, de berço, aristocratas — como Gilberto Freyre, Câmara Cascudo e o incrível Movimento Armorial de Ariano Suassuna, que contam (e encantam) o Nordeste de um povo sofrido, seco, ruralizado, folclorizado e colorido.

O Movimento Armorial, que nasce na década de 70 com o objetivo de criar arte erudita a partir de elementos da cultura popular nordestina, tem como um de seus fundadores e diretores, Ariano Suassuna. Este se interessa pelo mundo do cordel que é, na verdade, o retrato do sertão onde o pai de Suassuna dominou e se tornou, inclusive, presidente do estado da Paraíba.

Imagem da Pedra do Reino, cenário mítico sobre o qual Suassuna escreve O romance da Pedra do Reino e o Príncipe do sangue do Vai e volta.

Um Nordeste em grande medida fidalgo, nobiliárquico. Espalha-se pelo Brasil todo esse imaginário quase que medieval, com seus brasões e emblemas e que, com isso, trazem a esse mundo aristocrático um ar popular (ou seria populista?). Fala-se do povo o tempo todo.

Mas, que povo? Que homem é descrito?

Imagem do filme Auto da Compadecida, com João Grilo e Chicó em cena.

Um homem sofrido, simpático, católico e bem mandado (ou colonizado) como “Chicó”, do “Auto da Compadecida” ? Um homem como Lampião, de uma natureza hostil e violenta? Um coronel, senhor de terras, de grande poder político onde o patriarcado e o racismo lhe servem até hoje?

Ou seria então um Padre Cícero Romão Batista, vulgo Padinh Padre Cíço, que foi excomungado, coiteiro de Lampião e seu bando, dono de muitas terras e de um poder político enorme?

Admiro todos esses personagens e os intelectuais que os escreveram. De verdade.  Consumo suas obras e sei de suas importâncias. Minha história, minha ancestralidade e meu povo. Tenho amor a tudo isto. E, justamente, por amar tudo isto que lhe provoco e convido a pensar, a refletir, se o nordeste e os homens nordestinos cabem nesses papéis.

A mitologia do masculino e o nordestino foi construída a partir de figuras violentas  - do cangaceiro, do coronel, do jagunço - e isso se reflete evidentemente na cobrança que se faz a qualquer menino da nossa região, de que lhe é devido incorporar essa masculinidade nordestina hegemônica.

Da ficção pra realidade

Jorge de Lyra, Benedito Medrado, dentre outros incríveis estudiosos escreveram, em 2018: “De Guri a Cabra Macho: masculinidades no Brasil”. Nesta obra os autores (baseados, também, em Raewyn Connell e Judith Butler), reforçam a compreensão de que as identidades de gênero também são formadas com base nas relações de poder, no âmbito cultural.

Através dos seus discursos, a cultura produz identidades que definem, por exemplo, o que implica ser homem e ser mulher no campo nordestino. Afinal, “os discursos instauram verdades, produzem sentidos e formam os sujeitos” (Andrade, 2012).

Imagem do filme "Deus e o Diabo na terra do sol" de Glauber Rocha.

Essa imagem do cangaceiro como um pobre lutando por justiça social precisa ser repensada. Os cangaceiros (grande parte) matavam para os coronéis, por encomenda e recebendo dinheiro para isso. Não sejamos mais românticos com a visão do Nordeste para que não seja também romantizada a construção deste ‘Cabra Macho’  que impõe violência.

Com todo respeito a história do cangaço, mas, homens que estupraram diversas mulheres, que marcavam seus rostos na peixeira por não lhe servirem, para mim, não merecem ser mitificados. Aliás... Eu corro de mitos.

As figuras dos coronéis, por exemplo, forjaram um imaginário social onde a violência contra a mulher, por exemplo, é naturalizada e imensa na sociedade. A gente precisar discutir o machismo em uma sociedade sanguinária como a do Brasil e normalizar figuras assim como “cultura” de uma região é muito perigoso.

A sociedade brasileira como um todo naturalizou a violência contra as mulheres, contra homossexuais, assim como, a violência contra as travestis e transexuais.

Cabra... A maioria da população brasileira está chegando aos 80 anos na expectativa de vida, porém, no Nordeste (IBGE), nossa expectativa de vida não chega aos 72 anos de idade. E você sabe por quê? Porque você foi treinado para ser macho demais, valente, que não pode, sequer, adoecer. Ir ao médico? Pra quê?!

Quer pior? Uma travesti ou transsexual, no Brasil, tem sua expectativa de vida abaixo dos 40 anos de idade; mas, se esta for nordestina, preta e pobre, este número é ainda menor.

E eu e você, o que estamos fazendo para mudar isso?

Veja que descompasso: Nós, homens nordestinos, caminhamos a passos (ainda) lentos nesta análise e transformação sobre o modelo masculino e estereotipado que nos veste.

Paralelamente, as mulheres nordestinas - linda e merecidamente - avançam na conquista de espaços que SEMPRE lhe foram de direito. O que estamos vendo como resultado disto? O aumentar da violência contra a mulher e dos feminicídios em nossa região Nordeste, nos colocando na liderança (proporcional) do ranking nacional.

A fragilidade normalmente leva a esse discurso da onipotência masculina no qual:

“Nós, homens nordestinos, podemos até ser de uma região pobre e subdesenvolvida, mas, somos cabra machos”.... “Nós somos machos porque enfrentamos uma natureza hostil, de seca (seca esta que já poderia ter sido resolvida)... “Minha terra só tem cabra valente, aqui num tem esse mimimi cheio de frescura não”... Ora, me poupe! Chega!

Em “Xenofobia: Medo e rejeição ao estrangeiro” (2016), Albuquerque Júnior evidencia que a xenofobia, o racismo, o machismo, a misoginia, o especismo, o sexismo, o preconceito, a intolerância, o medo de rejeição, de aversão, de agressão e da violência só podem ser combatidos através das práticas educativas e com interpelações culturais.

Já chegando ao fim de nossa prosa, concluo que o regionalismo nordestino criou alguns modelos de homens que nos aprisionam em caixas e que é importante refletir sobre isso para que possamos, ao menos, analisar como essas caixas nos afetam. É a partir disto que poderemos repensar as referências de masculinidades que queremos.

Criando novas histórias

Imagem do filme Aquarius, construindo já outras possibilidade de se expressar como homem

Perceba, então, a importância de nos questionarmos, de conversarmos sobre nós e sobre nossas interseccionalidades. A necessidade da educação na discussão sobre a forma como as práticas culturais produzem as identidades e as diferenças.

Cabra Macho, com amor e por amor a você e aos seus, entenda-se, critique-se!

Se este olhar para nós mesmos for contemplativo, verdadeiro e o mais profundo que conseguirmos e pudermos, acredite que seremos seres humanos melhores. E olha que maravilha... Temos um ao outro.

Vamos falar mais sobre a gente, sobre a nossa gente, sobre esta cultura tão rica e linda que nos veste. Vamos estudar, trocar ideias e vivências. Vamos aprofundar e problematizar o que sempre nos disseram que era certo, padrões e/ou os caminhos a serem seguidos. Vamo simbora!?! =)

Como diria RAPadura Xique-Chico (de Fortaleza/CE) em ‘Norte Nordeste me Veste’ (2010):

"Minhas irmãs, meus irmãos, se assumam como realmente são.

Não deixem que suas matrizes, que suas raízes morram por falta de irrigação.

Ser nortista & nordestino meus conterrâneos... num é ser seco nem litorâneo.

É ter em nossas mãos um destino nunca clandestino para os desfechos metropolitanos."

 Se isto tudo lhe fez sentido, se aprochegue em @sercabramacho .

Um xêro, Cabra!

Gratidão!


 


publicado em 02 de Fevereiro de 2021, 14:18
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Manoel Pinto

Pesquisador de masculinidades e paternidades, facilitador de grupos reflexivos, criador do projeto social Ser Cabra Macho . Atualmente um dos líderes do Projeto Justiceiros . Pai de Naná e Maria, nordestino, maceioense.


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