O que sabemos sobre ser soropositivo?

A urgência, a arte e a palavra

 

A urgência do dia-a-dia faz a gente olhar pouco pro lado. Entender o desconhecido, por exercício voluntário, demanda energia, comprometimento e tempo. A arte, sorte a nossa, tem uma função potente extraordinária: a de alargar a fronteira do território conhecido. Tendo como matéria prima a liberdade - incontrolável, pois, em fronteiras-, a arte alarga o limite dos nossos territórios individuais porque expande nossas possibilidades de compreensão do que antes era apenas do outro, tornando-o comum.

O cinema é das artes mais potentes porque encurta distâncias e promove a empatia através do encantamento - não há quem não goste de viajar pelas telonas a lugares e tempos outros. Estreou semana passada no festival de Cannes o filme "120 batimentos por minuto" (em tradução livre de "120 battements par minute"), de Robin Campillo, que acompanha o trabalho de ativistas da ong ACT UP na Paris na década de 1980, quando a AIDS era uma epidemia pública e nem o governo nem a indústria farmacêutica comprometia-se com o combate ao vírus. Naquele momento, por exemplo, não havia disponível agulhas descartáveis no mercado ou camisinhas em postos de saúde.

Pode parecer datado, mas não é. Um dos cartazes usados pelo grupo em um protesto dizia "Silêncio = Morte", expondo a urgência do assunto e ecoando em pergunta ainda hoje: o quanto falamos sobre o HIV? Segundo dados recentes da ONU, o número de mulheres contraindo o HIV no mundo é uma por minuto (!!!) e das 5.700 novas infecções por ano, 35% ocorrem entre jovens de 15 a 24 anos, idade onde ainda estão na escola ou na universidade - e o quanto falamos sobre o vírus, as possibilidades de prevenção e de tratamento nas escolas e universidades?

"silence = mort"

É fundamental saber: a ciência e a medicina têm trazido avanços relevantes pra igualar as experiências de vida, independente da sua sorologia. Na última pesquisa Partner, que une esforços de médicos pesquisadores da Inglaterra, Espanha, Dinamarca, Alemana e Itália, contatou-se que não houve transmissão do vírus entre nenhum dos casais sorodiscordantes, ainda que não usassem preservativos, apenas devido ao uso dos antirretrovirais na contenção da carga viral - a pesquisa elimina, ainda e aos poucos, o medo e a desinformação. Muito impressionante é também um estudo publicado no início de maio, no qual cientistas relatam sucesso em extrair o DNA do HIV dos genomas de animais vivos, deixando-os livres do vírus.

O filme francês tenta falar do tema (e do tempo) sob uma perspectiva diferente da tradicional: dando centralidade à vida sobre a morte. Num determinado momento, um jovem negativo pergunta a um positivo sobre o que ele faz da vida, ao que escuta: "Sou soropositivo e isso é tudo". Se na década de 80, a presença do HIV no organismo de alguém definia sua existência, todos os avanços da medicina e da sociedade permitem hoje às pessoas soropositivas extrapolarem os velhos estigmas com suas próprias existências - são nossos médicos, advogadas, professores, e são, sobretudo, contra-argumentos vivos ao preconceito.

O ator americano Charlie Sheen confirmou, em 2015, ser soropositivo. “Seria bom que outros famosos anunciassem publicamente se têm HIV. Isso ajudaria”, declarou na época.

Ainda que a sorologia positiva não precise ser mais constituinte do sujeito, sem dúvida lhe é transformadora. Não só - ou nem tanto - por afetar-lhe a saúde física, mas também por incidir sobre suas emoções o medo do desconhecimento: como reagiremos as pessoas soronegativas ao saber que nosso flerte, nosso amor, nosso filho, nossa prima, nossa mãe, nosso funcionário, nossa colega é positiva? Possivelmente, com medo, alguns com afastamento, outros com acolhimento. A desinformação histórica e a carência de narrativas públicas das experiências das pessoas soropositivas não preparam ninguém pra esse encontro, ao contrário, reafirmam as distâncias.

São históricas, sociais e coletivas a dívida e a responsabilidade que temos aqueles que não sentimos algumas dores e que não conhecemos alguns medos. Devemos pedidos de desculpa por cada manutenção de estigma que corroboramos pelo medo que a desinformação produz e que só o tempo e a insistência podem enfraquecer.

Mas não só: devemos também o compromisso da atenção, a força do afeto em sobrepor-se ao medo. Porque é efeito do medo o silêncio. Do silêncio e do medo, a distância. Mas o amor é a força necessária capaz de costurar essas distâncias, desfigurar o medo e preencher a solidão.

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Nota da edição: o autor disponibilizou seu email (lguedes.rio@gmail.com) para leitores entrarem em contato, se quiserem, pois acredita que um dos grandes valores de se escrever sobre homossexualidade na internet é poder servir de referência e amparo para quem está passando por processos dolorosos.


publicado em 02 de Junho de 2017, 14:39
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Luti Guedes

Luti é carioca, gay, tem 24 anos, um relacionamento homoafetivo aberto, estuda ciências políticas, trabalha com desenvolvimento local, direitos humanos, governo aberto e inovação pública


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