Onde mora a liberdade nos relacionamentos?

Não só as relações amorosas estão sob o crivo da liberdade, é claro, mas são elas que trazem consigo contratos mais amarrados, mais impostos

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

* * *

Pode tudo. ~Pode o que quiser, pode o que vier~. Certo? Mas, afinal, onde mora a liberdade nos relacionamentos? Até onde vai minha liberdade quando encosto tão pertinho na liberdade de outra pessoa? Falo de amigo, pai, mãe, aquela pessoa que divide a casa, irmão, funcionários, avós. Não só as relações amorosas estão sob o crivo da liberdade, é claro, mas são elas que trazem consigo contratos mais amarrados, mais impostos.

E por que são justamente as relações amorosas, estas que deveriam estar inundadas de espaço, as que mais sofrem com essa impiedosa escravidão? Foi a forma que culturalmente construímos o amor que não dá às relações liberdade o suficiente para serem livres? “Da forma em que fizemos a leitura e o aprendizado daquilo que consideramos amor, amaremos”, praguejara Claudio César Montoto, no livro Amor. Metáfora eterna.

A fixação é o cemitério do amor, já sabemos. No entanto, a tendência para a liberdade necessita, como sempre, de determinar o limite desse conceito. Eu, que sempre vivi numa caixinha bem das quadradas quando o assunto é relacionamento, esbarrei, ano passado, num evento da Inesplorato, com uma pergunta incômoda. Num papelzinho questionador — “O que você sabe que você não sabe?” — , a caneta de um desconhecido rabiscou minha sentença: eu também não sei onde mora a liberdade nos relacionamentos.

A pergunta não me deixou em paz. Conversei com muita gente, passei o questionamento pra frente e ouvi muitos conceitos — alguns deles você encontra citados aqui, no meio do texto-pensamento. Também li muito. Vivi. E dessa imersão coisas lindas surgiram.

Primeiramente aos livros: O conceito de liberdade atravessa toda a história da filosofia, da Grécia antiga aos dias de hoje. Lá, ser livre significava ser mestre de si mesmo, ter domínio sobre suas ações.

Para Rousseau, a liberdade é um atributo humano por excelência. O homem seria livre na medida em que a natureza dita os impulsos e que nos reconhecemos livres para concordar ou resistir. Já em Sartre a liberdade chega ao campo transcendental como possibilidade única da existência: estamos condenados a ser livres.

Ok, tudo muito bom, tudo muito lindo. Mas e quando falamos de liberdade dentro de um contexto amoroso? Simone de Beauvoir, ao abordar a questão da liberdade e da relação entre filosofia e política, encontrou em Sade o elemento que compreende a junção de liberdade, subjetividade e a relação com os outros. Pensar a liberdade humana a partir da sexualidade permite a Beauvoir tratar o tema da ética na obra de Sade, o que confirma a ideia de que o sentido da liberdade depende do que fazemos com ela.

Você não é livre quando vive um relacionamento em que a sua liberdade não abraça (e respeita) a liberdade do outro. Ao aniquilar a possibilidade de liberdade do outro você é só um egoísta querendo tirar vantagem.

Não, você não está sendo uma pessoa descolada se o seu relacionamento aberto ainda é unilateral. Não importa o tipo de relação nem quantas pessoas estão envolvidas, é preciso que a liberdade preserve viva a dimensão de singularidade do outro, sustentando com gentileza os acordos estabelecidos espontaneamente entre as partes afetivas.

“Não existe o que eu acredito ou o que você acredita. Como casal, existe o que a gente acredita e constrói juntos. A liberdade numa relação é construída.”

A liberdade e seus contratos — acordados de fato por todos os lados — vêm com a responsabilidade. Pensar a problemática da liberdade implica em refletir sobre a própria condição humana de um ser que vive em comunidade. Para Sartre, o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher ao mesmo tempo que a si próprio a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade.

“O próprio ato de escolha é um exercício de liberdade.”
“A liberdade mora na escolha. Além disso, é a construção do indivíduo dentro do casal.”
“A primeira coisa que eu penso é que a liberdade reside na escolha, na consciência: quando há renúncias, comprometimento etc, mas através de algum tipo de coerção. E se tem consciência do que cada uma dessas coisas e as partes representam no relacionamento — e num determinado tempo. Acho que a liberdade faz mais sentido quando é compartilhada porque não se trata só de seguir suas vontades, mas também de abdicar-se delas (pela vontade livre, verdadeira.)”

Frei Carlos Josaphat, maior especialista no Brasil a respeito da doutrina de Tomás de Aquino, tem a seguinte reflexão: “A visão do amor, sempre presente e sempre inacessível, teve a reflexão ética a postular hoje a urgência de reconciliar o amor com a liberdade e com a inteligência. A aliança do amor e da liberdade é a grande aspiração da modernidade. Ela deve ser cultivada, ampliada, completada pela plena realização da liberdade na responsabilidade e pelo encontro com as formas de viver e comunicar de nossa civilização.”

Por menos romântico que isso possa parecer, Niklas Lehmann tem razão: o amor é mais um código humano para ser decifrado que uma inspiração dos deuses e musas.

Quanto mais se refletir, pesquisar, escutar e questionar, melhor estaremos dotados para confrontarmos com o sentimento mais sublime da existência humana. Há códigos no amor — como a liberdade — e eles precisam ser decodificados, compreendidos e compreensíveis para quem está na relação. Não há, como diz Sartre, uma essência de liberdade, já que é ela um fundamento de todas as essências.

Todo mundo tá feliz? Tá feliz!

Ao desconhecido que me intrigou com a pergunta — e a você que lê esse texto — , minha resposta: não pretendo sobre esse assunto ter uma opinião em definitivo mas posso dizer com toda a certeza: a liberdade não mora fixamente em lugar algum. Ela vive, flutua, flui. E, quando passa a ser compartilhada com outra pessoa, requer conversas, empatia, combinações pacíficas. Já dizia Octávio Paz: "Faz muitos anos escrevi que o amor é um sacrifício sem virtude; hoje eu digo que o amor é uma aposta insensata, pela liberdade. Não a minha, a alheia.”

Em casos de duvida é só lembrar: o combinado nunca sai caro.

Obs.: este artigo foi originalmente publicado no Medium da autora.


publicado em 18 de Maio de 2017, 00:00
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Gabrielle Estevans

Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Certa feita, enamorou-se pela palavra inefável. Desde então, também mantém uma lista de pequenas coisinhas indizíveis.


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