Para, porra!

As cortinas balançavam encharcadas contra a parede. Nunca nos lembrávamos de fechar a janela. Nunca.

"Night Windows" de Edward-Hopper (1928)
"Night Windows" de Edward-Hopper (1928)

Era muito bom não ter que atender telefones, ver fotos, sorrir. Devemos ter ficado mais de duas horas simplesmente sentados naquele sofá vagabundo sem trocar uma única palavra. A música não existiria sem o silêncio.

– Me dá esse copo aqui, – disse ela em um monotom.

Estendi o braço demoradamente, sem virar o rosto, absorvido num fluxo de pensamento sem foco nem utilidade, mas prazeroso demais pra me movimentar.

– O que vamos fazer hoje? – cobrou ela, finalmente voltando o rosto pra mim.

– Nada.

"Eleven AM", de Edward Hopper (1926)
"Eleven AM", de Edward Hopper (1926)

Seus olhos eram comuns e sem graça. Pequenos ovos de codorna que me lembravam que jamais chegaria perto de entender o que estava acontecendo. Quando se mexiam de um lado para o outro traduziam a impotência de qualquer porcaria que ainda estava por vir.

Depois de um longo gole de vinho barato, uma gargalhada, um abraço apertado, uma cuspida na cara. Mãos sensíveis, capazes de dar espasmos de ressaca. “Você lê as minhas tripas também?” Começou a rir como uma hiena depois de achar um montão de merda no vaso sanitário. Era uma bela bosta, produzida exclusivamente para aquele momento. Jamais produziria outra igual; no máximo, semelhante. Riu tanto que engasgou com a saliva e começou a soluçar compulsivamente.

Me voltei para a claridade estúpida e cinza da janela. No prédio ao lado, um velho gordo de cueca cortava as unhas do pé apoiado na mesinha de centro da sala. Mais abaixo, metade de um rabo de pijamas em uma cama com camadas de lençóis. Os honestos têm muita coisa na cabeça e quase nada pra querer fazer.

"Room in New York" de Edward Hopper (1932)
"Room in New York" de Edward Hopper (1932)

– Vou embora daqui, – disse eu, me levantando de repente.

– Como assim? – sussurrou ela com os pequenos ovos arregalados, assustados, tapando a boca com uma das mãos.

– Pronto, chega desse soluço – completei voltando a me sentar preguiçosamente.

Depois de perder a inocência, as cores ficam mais desbotadas, o tempo mais curto e o ar mais insípido. Jamais voltamos a nos interessar por nós mesmos. Enquanto isso, nos tornamos mais seguros, sarcásticos e passamos a crer que realmente sabemos alguma coisa. Qualquer conceito de felicidade, ou da paradoxal e hiperbólica "vontade de viver", está fundamentada no perpétuo desconhecimento deste contraste.

"Excursion into Philosophy", de Edward Hopper (1959)
"Excursion into Philosophy", de Edward Hopper (1959)

publicado em 19 de Novembro de 2011, 08:13
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Danilo Barba

Repórter do Portal AreaH. Há 25 anos na mesma pergunta: o que está acontecendo? Lembra-se diariamente da morte para sair da cama. No Twitter, @criancasqueijo


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