Quando a gente reza pra alguém mudar, mas não muda nada | Do Amor #60

A gente ama e a gente se irrita por amar e com o amor da gente. E o que fazemos pra mudar?

Acostumou-se a despertar sem se mexer. Os olhos abriam e o corpo ainda permanecia imóvel.

Enquanto as pupilas e a íris iam se acostumando com a entrada de luz, aproveitava para enxergar o entorno. Criado-mudo, o livro em cima dele com um tufo de lencinho de papel por entre as páginas que ela usava como marcador, o edredom que formava um pequeno morro empurrado com os pés de quando ela se levanta com pressa. Mais uma vez, parecia que nada tinha mudado. 

Ouviu o barulho do chuveiro e percebeu a porta fechada. Ele odiava quando ela se banhava trancada e deixava o banheiro cheio de vapor e com aquela quentura insuportável. Ele também não gostava que ela tomasse banhos muito quentes. Já tinha uns dias que praticava esse exercício mental de contar repetições no comportamento dela. Tinha se apaixonado à primeira vista, quando a viu entrando no mesmo bar que ele para comprar cigarros. O jeito com que ela contou as moedas, separando-as habilmente com os dedos chamou a atenção dele e, depois, todo o resto da beleza dela. Ficaram naquele dia e já estavam há dois anos namorando.

Mas o encanto que ele viu na agilidade dela gradativamente foi se transformando em aperto, tribulação. Acontece que a ligeireza com que ela lidava com as coisas da vida acarretava em ansiedade, coisas feitas pela metade, empolgação inicial e marasmo posterior. Ele, tão dado aos mimos das pequenas coisas, se sentia atropelado pelas decisões de supetão que ela tomava, com a bagunça que ela deixava, com o ritmo sempre apressado de passar os dias. Até o sexo, na cabeça dele, era corrido e pesado, uma puxação pedindo mais pra dentro e mais forte, como se um incômodo tomasse conta dela por não sentir a penetração feita com mais e mais ímpeto quando ele só queria respirar e se deixar levar pelos sentidos.

E daí acordava sem sair do lugar e ia enumerando as coisas que era a cara dela, que ela sempre fazia. Isso porque, nas noites anteriores, ele rezava para que ela mudasse. Pedia em conversas com os santos ou o cosmos, expunha suas preocupações e ponderava equilíbrios, buscava  nessas preces soluções plausíveis e tangíveis que levassem ambos a uma evolução do relacionamento. Mas era só começar o novo dia e logo de saída ele caçava as velhas mania dela, como um inquisidor acumulando os pormenores para acusá-la de bruxarias e outro qualquer malquerer. 

Quando ela saiu enrolada em uma toalha e trazendo consigo aquele bafo que deixou o espelho todo embaçado, ele fechou rapidamente os olhos e fingiu chegar do sono só naquele momento. Se espreguiçou, arrumou a cama para que ela se inspirasse no zelo dele e, enquanto ela amassava os cabelos ainda úmidos buscando ganhar volume, se virou para ele perguntou: "Tá tudo bem? Cê tá com uma cara meio estranha". 

Era a hora.

"Tá tudo bem", respondeu ele como se a voz entrasse para dentro da garganta em vez de sair pela boca, "eu só acordei com bastante fome", finalizou levantando a cabeça na direção dela e botando na cara um sorriso amassado. "Ah, então deixa comigo que eu vou te ajudar agora! Vou botar o café na cafeteira", ela disse antes de dar um beijo no rosto dele e ir para a cozinha nua, deixando a toalha molhada jogada no chão.

O amor. Ele é bom ou só serve pra irritar?

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publicado em 07 de Julho de 2017, 00:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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