Imigrantes sim, mas de que cor?

O Brasil gosta de se imaginar uma nação aberta, hospitaleira, sem preconceitos. Sua ficha corrida, entretanto, conta outra história.

Hoje, mais rico e mais importante, assumindo um lugar de maior peso no mundo, ainda há tempo para o Brasil mudar suas atitudes.

Nossas atitudes.

Imigrantes de ontem e de hoje.
Imigrantes de ontem e de hoje.

Nem todos as pessoas que imigram são iguais

No começo do século XX, em uma tentativa de embranquecer a população, de dinamizar a economia e de ocupar regiões até então quase desabitadas, o governo brasileiro estimulou fortemente a imigração estrangeira. Com limites, claro.

Já de cara, em 1891, se proibiu a imigração de pessoas nativas da África e da Ásia. Depois de ferozes debates, a lei foi revogada em 1907, abrindo passagem para a imigração japonesa, mas outros grupos "indesejáveis", como árabes do norte da África ou chineses, encontraram forte resistência.

Em 1921, em resposta a um anúncio veiculado em diversos jornais, prometendo passagens, acomodacões e crédito de longo prazo para agricultores dos Estados Unidos que desejassem se estabelecer no Brasil, formou-se uma companhia de colonização chamada "Brazilian American Colonization Sindicate" (BACS). O governo do Mato Grosso já tinha até lhes concedido enormes concessões de terras, que foram prontamente canceladas quando se descobriu um detalhe desagradável:

As pessoas do grupo, pasmem, eram negras!

Sufocadas pela atmosfera racista segregacionista dos EUA, essas pobres pessoas estavam convencidas de que o Brasil era a verdadeira democracia racial que dizia ser, onde não havia linha de cor e onde pessoas brancas e negras eram iguais perante a lei.

Obviamente, nunca tinham estado no Brasil – e jamais estariam: o Itamaraty negou visto a todas as pessoas integrantes da companhia.

Como Brasil e EUA tinham um tratado de imigração que dava às pessoas norte-americanas, independente de raça, etnia ou religião, o direito de entrar e se estabelecer no Brasil, a BACS exigiu que o nosso governo justificasse a proibição.

Em público, o Itamaraty se refugiou na afirmação de que a política imigratória brasileira era soberana e não podia ser questionada por governos ou pessoas estrangeiras.

Em privado, entretanto, o Itamaraty enviou memorandos confidenciais a todos os consulados brasileiros nos EUA deixando bem claro qual tipo de imigrante proveniente dos Estados Unidos era desejável e qual não era.

Chega a ser antibrasileiro que o governo tenha tido que ser assim tão explícito em seu racismo!

Charge do sempre brilhante Carlos Latuff. O Brasil lidera a missão da ONU no Haiti.
Charge do sempre brilhante Carlos Latuff. O Brasil lidera a missão da ONU no Haiti.

Aquele raro momento quando se fala o que realmente se pensa

Nossos representantes eleitos, entretanto, não foram tão diplomáticos.

Fidélis Reis, deputado por Minas Gerais, propôs um projeto de lei vetando a imigração de pessoas negras, limitando a de asiáticas e estimulando a de brancas. Eis o que ele disse, na plenária, em 1923:

“Quando então pensamos ... na possibilidade próxima ou remota da imigração do preto americano para o Brasil é que chegamos a admitir a eventualidade da perturbação da paz no continente. ... O nosso preto africano, para aqui veio em condições muito diferentes, conosco pelejou os combates mais ásperos da formação da nacionalidade, trabalhou, sofreu e com sua dedicação ajudou-nos a criar o Brasil. ... O caso agora é iminentemente outro. E deve constituir para nós motivo de sérias apreensões, como um perigo iminente a pesar sobre nossos destinos.”

(grifos meus)

Pela fala do deputado, dá até a impressão de que o "nosso preto africano" veio por vontade própria ao Brasil, voluntariamente trabalhar e sofrer por nossa pátria; e que o tal "perigo iminente" que causava "apreensão" era justamente o fato de as pessoas negras norte-americanas, essas canalhas, estarem vindo em busca de democracia racial, onde já se viu?!

Sobre o projeto do deputado Fidélis, opinou também o ilustre romancista e presidente da Associação Brasileira de Letras Afrânio Peixoto, no mesmo ano:

“É neste momento que a América pretende desembaraçar-se do seu núcleo de 15 milhões de negros no Brasil? Quantos séculos serão precisos para depurar-se todo esse mascavo humano? Teremos albumina suficiente para refinar toda essa escória? Não bastou a Libéria, descobriram o Brasil?”

(grifos meus)

Para o grande e generoso acadêmico, basta ser uma pessoa ser negra para ser escória, mas, tudo bem, nada que albumina não resolva. Afirma um agricultor, Antonio Americano do Brasil:

“Já não teríamos para a lavoura as gentes simples, que foram os primitivos africanos da escravatura, facilmente identificando-se com a terra. Os negros de hoje viriam dos Estados Unidos, ... elementos cheios de defeitos, carregando o ódio ao branco que os tem perseguido, possuindo apurados vícios que não tiveram os antigos escravos.”

(grifos meus)

Deixando de lado a patente nostalgia da escravidão, quais serão esses "defeitos" e "vícios" que traz essa "escória mascava" norte-americana? Quem responde é o grande historiador Oliveira Lima, também promotor da imigração europeia como forma de branquear o Brasil:

“... estes, que nos ameaçam vir da América, se acham modelados por uma civilização superior, falando uma língua própria e tendo um sentimento de altivez e agressividade, natural no meio em que vivem e que não possuíam os africanos que para cá vieram, em outros tempos da costa da África. Esses, pela inferioridade de sua civilização, fundiram-se com os brancos superiores; quem nos dirá que farão o mesmo os negros americanos? Mas se se conservarem “infusíveis”, nesse caso teremos mais um perigo político a nos ensombrar os destinos. Se se fundirem, nesse caso teremos aumentado a massa informe de mestiçagem inferior que tanto retarda nosso progresso.”

(grifos meus)

Ou seja, segundo o sensível e digníssimo intelectual, os "defeitos" e "vícios" que trazem as pessoas negras norte-americanas é justamente serem pessoas cidadãs, orgulhosas e altivas, conscientes de seus direitos.

Cruzes, o Brasil quer distância dessa gente!

(A fonte da história acima é o artigo “Dos Males que Vêm com o Sangue: as Representações Raciais e a Categoria do Imigrante Indesejável nas Concepções sobre Imigração da Década de 20”, de Jair Souza Ramos, no livro Raça, Ciência e Sociedade. (Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996), organizado por Marco Chor Maio.)

Alojamento de imigrantes haitianos na fronteira do Brasil.
Alojamento de imigrantes haitianos na fronteira do Brasil.

Nunca tivemos leis racistas. E daí?


O Brasil sempre precisou de braços estrangeiros, mas existem braços e braços. Quem até ontem era importada e comprada por muito dinheiro hoje não é desejada nem de graça.
Já em 1890, meros dois anos após a Abolição e no primeiro ano da nova e democrática e cidadã república, o Brasil proibia explicitamente a imigração de pessoas africanas. A lei seria complementada e reforçada em 1920 e 1930, para proibir não apenas as pessoas africanas, mas também qualquer pessoa que se parecesse com elas.
No Brasil, como diz o ditado racista, nunca precisamos de leis de segregação racial porque "os negros sabem o seu lugar". De fato, nosso país sempre foi tão racista que as leis nunca precisaram ser: basta colocar as coisas de forma vaga e confiar no nosso racismo histórico. (Como no caso dos memorandos confidenciais do Itamaraty, só em último caso é necessário ser explícito e, mesmo nesses, discretamente.)
Texto de um decreto-lei de 1945, só revogado na década de 1980:
Art. 1o – todo estrangeiro poderá, entrar no Brasil desde que satisfaça as condições estabelecidas por essa lei.
Art. 2o – atender-se-á, na admissão de imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional.(grifos meus)

(As informações do trecho acima vieram do artigo "A Caixa Econômica Federal, a política do branqueamento e a poupança dos escravos", de Ana Maria Gonçalves, autora do magistral romance Um defeito de Cor. Recomendo a leitura do romance, do artigo, de tudo mais que a Ana escrever.)
O Haiti pede socorro. Charge de Latuff.
O Haiti pede socorro. Charge de Latuff.

Haiti no Brasil hoje


Se você está respirando aliviada, pensando, "ufa, ainda bem que o Brasil não é mais assim", pense duas vezes, amiga leitora.
Em 2010, o Haiti foi destruído por um terremoto e, posteriormente, ocupado por tropas da ONU lideradas pelo Brasil. As dificuldades do pós-terremoto, um contato mais próximo com as forças armadas brasileiras e a boa fase da nossa economia causaram a maior onda migratória ao país em mais de um século.
O Haiti, vale lembrar, foi a segunda nação independente das Américas, quando as pessoas negras escravizadas conduziram a primeira e única rebelião escrava em larga escala bem-sucedida da História, queimaram os engenhos de açúcar, mataram todas as pessoas brancas e derrotaram os exércitos da Grã-Bretanha, França e Espanha. (Textinho sobre isso aqui.)
Nos últimos anos, o número de pessoas imigrando para o Brasil só faz crescer: as principais nacionalidades incluem bolivianas, chinesas, peruanas, paraguaias e coreanas, a maioria trabalhadoras não-qualificadas.
Enquanto isso, milhares de pessoas haitianas, muitas delas qualificadas, são barradas em nossas fronteiras, gerando manchetes claramente sensacionalistas, repletas de palavras negativas como "ilegais", "crise", "sofre", "invasão", etc: "Ilegais provocam crise humanitária no Acre" e "Acre sofre com invasão de imigrantes do Haiti".
Nosso entranhadíssimo racismo anti-negro consegue ganhar até mesmo da nossa constitutiva ojeriza anti-hispânica.
(Para saber mais, recomendo a monografia de graduação de Jenny Télémaque para o curso de comunicação da UFRJ, "Imigração haitiana na mídia brasileira: entre fatos e representações". A autora, que já foi tema de matéria do jornal Extra, é haitiana e estudou no Brasil graças a um convênio da UFRJ com a embaixada brasileira no Haiti.)
Tropa de Elite e Haiti, por Latuff.

Todas as pessoas deveriam poder ser brasileiras


Somos ou não somos o país do futuro, hospitaleiro e desejável, onde as aves não gorjeiam como lá, uma democracia racial onde se plantando tudo dá? Temos ou não temos uma densidade populacional baixa e gigantescas áreas vazias e inexploradas?
Temos a mesma área que os Estados Unidos continental, e cem milhões de pessoas a menos.
Mais pessoas no Brasil não quer dizer "mais gente mamando no bolsa família", e sim mais gente gerando riqueza para todos.
Somos um país de imigrantes. Qualquer pessoa que queira ser brasileira deveria poder ser.
Hora de abrir as porteiras.
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Esse texto foi reescrito e republicado em janeiro de 2014, para melhorar a argumentação, excluir trechos fracos e tornar a linguagem menos sexista. Confira aqui minhas dicas pessoais sobre como escrever de forma menos sexista.

Imigrantes haitianos com suas recém-obtidas carteiras de trabalho brasileiras.
Imigrantes haitianos com suas recém-obtidas carteiras de trabalho brasileiras.

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Outrofobia: Textos Militantes

Esse texto faz parte do meu livro Outrofobia: Textos Militantes, publicado pela editora Publisher Brasil em 2015. São textos políticos, sobre feminismo e racismo, transfobia e privilégio, feitos pra cutucar, incomodar, acordar.

Se você gostou do que eu escrevo, então, dá uma olhada no livro: custa só trinta reais e deve ter mais coisa que você vai gostar também.



publicado em 19 de Julho de 2013, 21:01
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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