Por que precisamos destruir nossos heróis?

Esse mês, estreiam dois filmes nacionais, um ficção, um documentário, sobre duas grandes figuras brasileiras: o jogador de futebol Heleno de Freitas e o músico Raul Seixas. Ambos seguem a mesma linha narrativa: homem excepcional obtém sucesso fora de escala em sua área de atuação e, logo após, se autodestrói.

Por que gostamos tanto de ver nossos ídolos se fodendo?

Rodrigo Santoro, como Heleno.
Rodrigo Santoro, como Heleno

Se Heleno não tivesse sido Heleno...

Heleno de Freitas era jogador do Botafogo. O melhor em campo. Mobilizava multidões. Primeiro jogador de futebol a ganhar salário de astro de Hollywood. Perseguia tudo quanto era rabo de saia. Não respeitava os colegas de time, humilhava os menos talentosos. Tratava as mulheres como lixo. Fumava demais. E, por fim, quando começou a manifestar os primeiros sintomas da sífilis que o deixaria louco e o mataria, recusou tratamento — pois só quer saber de jogar bola.

Rodrigo Santoro dá continuidade à aposta que fez consigo mesmo: "o quanto terei que me enfeiar e automutilar para ser considerado um ator sério". Ele já ganhou a aposta faz tempo, mas é bonito que continue tentando. Seu próximo papel, ao que parece, será interpretar um tronco humano: sem braços, sem pernas, sem cabeça.

O filme, de lindíssima fotografia e ainda mais lindíssima Alinne Moraes, me pareceu um pouco banal. O espectador não se identifica nem com Heleno, que é um grande babaca, nem com mais ninguém, nem mesmo com a Alinne, que admite que sabia onde estava se metendo e que só amou Heleno por sua beleza. A única figura vagamente humana do filme é o enfermeiro que nunca saiu de Barbacena — isso sim uma verdadeira tragédia que ninguém comenta.

Ainda mais revelador, o filme simplesmente não tem antagonistas. A narrativa cinematográfica faz de tudo para deixar claro que o único inimigo de Heleno é ele mesmo. (Nem mesmo o melhor amigo, que rouba sua esposa, não é mostrado como canalha.)

Frouxo em conflito e tensão dramática, ainda mais para uma obra ficcional, é difícil escapar da conclusão que "Heleno" é uma "fábula de moralidade" à moda antiga:

Se Heleno apenas tivesse conseguido segurar sua onda, não comer tanta mulher, tratar sua sífilis, ser mais calmo, fumar menos, beber menos, e sabe-se lá mais o quê menos, tudo teria terminado bem.

É. E, se nevasse no Rio, poderíamos esquiar no Pão de Açúcar.

Link YouTube | "Heleno", trailer oficial.

Raul morreu por nossos pecados

"Raul — O início, o fim e o meio" é muito mais filme, e não só porque sou fã do Raul. Enquanto "Heleno" se contenta em ser um biopic lindo, "Raul" claramente ambiciona ser um dos mais completos e mais assistidos documentários sobre qualquer tema na história do Brasil.

O filme é repleto de momentos memoráveis.

Adorei a participação de Paulo Coelho. O diretor de uma seita satanista da qual participaram Raulzito e Dom Paulete conta que Coelho tecnicamente ainda é membro, pois nunca tinha pedido desligamento. Corta para o escritor, em Genebra, recebendo a notícia e exclamando, em sincera surpresa:

"Ué, abandono não conta?"

O cinema veio abaixo. Além disso, ele admite que foi Raul que o ensinou a "ser direto sem ser superficial", lições que não aplicou tão bem na literatura quanto em suas letras de música, e confessa que foi ele que apresentou Raulzito (até então careta) às drogas:

"Não me sinto culpado, ele era adulto".

Algumas das músicas mais famosas de Raul afirmam com ênfase sua defesa do poliamor — e, por isso mesmo são alguns dos mais importantes hinos da minha vida. No cinema, entretanto, enquanto as ex-mulheres de Raul, todas sem mágoa e com carinho, recontavam as histórias de suas vidas, e que às vezes ele manteve relacionamentos consensuais com mais de uma ao mesmo tempo, a plateia, composta de jornalistas e formadores de opinião (!), mostrava bem os limites da sua tolerância, com risinhos de surpresa e suspiros de reprovação. Parece que nunca ouviram "Medo da Chuva" e "A Maçã".

Link YouTube | Amor só dura em liberdade | O ciúme é só vaidade | Sofro, mas eu vou te libertar... | Se esse amor | Ficar entre nós dois | Vai ser tão pobre amor | Vai se gastar...

Das três filhas de Raul, herdeiras de seus direitos autorais (um quarto do orçamento do filme foi gasto nisso), duas cresceram nos Estados Unidos e não falam português bem o suficiente para dar seus depoimentos na língua do pai. Aliás, todas conheceram pouco ou quase nada dele. A genética, entretanto, muito mais que o sangue de Jesus, de fato tem poder: o filho adolescente de uma delas é a cópia cuspida em mármore carrara do jovem Raul.

Mas fica um gosto ruim na boca: um dos mais importantes artistas brasileiros transmitiu seus genes (e, até hoje, passa cheques), mas não foi capaz de legar nem sua língua, e consequentemente nem sua cultura, às suas filhas.

A narrativa segue a estrutura familiar: jovem se empolga com o rock e vai para a cidade grande; era roqueiro caretão, mas se veste de maluco-beleza pela primeira vez a pedidos da gravadora; é apresentado às drogas por seu parceiro futuro best-seller; em um curto espaço de tempo, compõe as obras que lhe fazem imortal e, rapidamente, começa sua decadência.

Paulo Coelho consegue se livrar das drogas e se reinventar. Raul, não. Consumido pela cocaína, seu corpo incha, falta a shows, perde contratos. Na década seguinte, a de oitenta, já está longe dos holofotes. No fim da década, em menos de dois anos, é redescoberto por Marcelo Nova, faz 50 shows, grava um novo disco e morre. Destruído pelo próprio revival?, parece se perguntar o filme.

Dom Paulete & Raulzito, último encontro, no palco do Canecão.
Dom Paulete & Raulzito, último encontro, no palco do Canecão

Assim como Heleno, Raul não tem antagonistas — pelo menos, o filme não os mostra. Não foi perseguido pelo regime militar, não tinha inimigos pessoais, suas ex-mulheres não foderam a sua vida, o público não o ignorou, a crítica não estava contra ele. Se alguém tinha tudo para dar certo, esse alguém era Raul Seixas.

Assim como Heleno, Raul cai por conta própria. Se tivesse sido bom pai, bom marido, se chegasse em casa todo dia às seis da tarde, se não fumasse, não bebesse, não cheirasse, não comesse carne vermelha, se fizesse exercícios físicos regulares, se rezasse toda noite, se não tivesse sido satanista (a lista é literalmente infinita!)... Bem, ele hoje poderia estar aí, como Caetano Veloso ou Milton Nascimento, sessentão de bochechas coradas, escrevendo colunas pra Folha ou cantando velhos sucessos em shows para coroas.

Mas aí, claro, estaríamos criticando Raul por ser coxinha.

Link YouTube | "Raul — O início, o fim e o meio", trailer oficial.

A redenção da mediocridade

Por um lado, temos que ser boas pessoas. Manter um só cônjuge (ou, no máximo, um de cada vez!), criar os filhos, nos sustentar, fazer o dever de casa, respeitar os pais. Em suma: ser bons cidadãos.

Mas ninguém fica famoso por ser bom filho, enriquece por respeitar os pais, ganha medalha por ser boa esposa. As recompensas são difusas e, às vezes, quase invisíveis.

(Quando estiver morrendo de câncer sem dinheiro pra pagar a operação, o taxista pode bem se perguntar: "onde estava com a cabeça quando devolvi aquela mala de grana que esqueceram no banco traseiro?" Boa pergunta, senhor taxista. Recomendo assistir "Raul — O início, o fim e o meio".)

Por outro lado, paradoxalmente, a sociedade também parece premiar com fama e sucesso os bad boys e bad girls que quebram todas as regras dessa mesma sociedade. Comportamentos que transformariam qualquer um em pária social fazem sensação no Big Brother, geram convites para o camarote da Brahma e Ilha de Caras. As mesmas pessoas que assistem empolgadas "House" (e colocam a cara de Hugh Laurie em seus ícones e perfis!) não tolerariam um colega de trabalho que fizesse um décimo do que ele faz. Artistas, atletas, ricaços e celebridades de modo geral parecem desfrutar de uma liberdade muito maior do que a média da população. Por quê?

Porque sempre vem a conta.

Hugh Laurie, como Dr House.

Jesus morreu por nossos pecados e nunca mais perdemos esse hábito de viver indiretamente através dos outros. Condenamos nossos ídolos a morrer por nós, pois só assim podemos suportar nossas vidas de não-ídolos.

Se você passa a vida inteira se sacrificando para seguir as regras e, enquanto isso, um outro cara quebra todas as regras, e ainda por cima se dá bem, ganha mais dinheiro, come mais mulher que você, é como se toda a sua vida tivesse sido uma mentira. Como se tivesse recalcado seus desejos, mutilado sua liberdade, reprimido sua sexualidade, por nada. Otário.

Então, quando o ídolo voa tão alto que derrete as asas e se espatifa no solo, não é só você mas toda a sociedade que solta um suspiro de alívio coletivo. Agora, você pode dormir tranquilo: sua decisão de desfazer a banda e cursar ciências atuariais foi mesmo a mais acertada.

"Imagina, eu poderia ter tido o destino do Raul!"

A queda do ídolo redime a mediocridade de todos.

Filmes como os de Heleno, Raul, Simonal, e toda a narrativa arquetípica da queda do herói onde se inserem, cumprem uma importantíssima função social. O cidadão normal, monogâmico, contribuinte, careta, bom pai, pode sair do cinema, esfregar sua bem-comportada barriguinha de chope, passar a mão pela careca reluzente, e se autocongratular:

Bem, eu não jogo bola como o Heleno, não domino a plateia como o Simonal, e jamais seria capaz de compor "Ouro de Tolo", mas, porra, eu consigo segurar minha onda!

E, assim, uma vida que talvez fosse chata e sem sentido, torna-se tolerável. Quem sabe até feliz.

Meu bem me dê a mão / Que eu vou te levar / Sem carro e sem medo / Pra outro lugar...
Meu bem me dê a mão / Que eu vou te levar / Sem carro e sem medo / Pra outro lugar...

Serviço

"Raul — O início, o fim e o meio", de Walter Carvalho, estreia dia 23 de março; "Heleno", de José Henrique Fonseca, 30 de março. O autor assistiu a ambos filmes a convite dos respectivos estúdios.


publicado em 20 de Março de 2012, 07:13
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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