"Sabe com quem você tá falando?"

Quando você precisa usar o argumento da própria autoridade, alguma coisa está errada

Outro dia contei uma história aqui na redação que ressoou. Não sei direito porque, mas aquilo serviu como um desses tapas que a gente dá na máquina de refrigerante quando a latinha fica presa em algum canto onde não conseguimos pegá-la. Destravou um bocado de coisa.

Diante do resultado, a história logo foi incentivada a virar pauta. Afinal, se ajudou alguém aqui, quem sabe não ajuda alguém aí também.

O cenário

Se eles soubessem tudo que eu sei...

Quando eu era só um moleque prestes a entrar no ensino médio, meus pais, preocupados com o meu futuro, decidiram que eu deveria fazer um curso técnico. A ideia de garantir que, se tudo desse errado, pelo menos eu teria um diploma qualquer na mão era boa, mas dependia da minha competência de passar num vestibular concorrido para uma das duas únicas escolas públicas da região que ofereciam o tal curso junto às matérias regulares.

Por sorte ou azar, no ano seguinte estava lá eu ocupando uma das cadeiras da única opção de curso disponível. Informática tinha o mérito de ser o assunto que eu menos detestava dentre os possíveis, mas eu me interessava mesmo era pelas matérias comuns. História, geografia, filosofia, português me chamavam mais atenção do que sistemas computacionais, linguagem de programação ou fundamentos de eletrônica voltados para a informática.

O vestibular, porém, fez com que a nossa classe fosse formada por alunos selecionados entre os melhores da região. Aquela molecada de 14 a 17 anos conviveu ao longo de quatro anos com o orgulho inebriante de ser tratado como os seres mais especiais dos seus microcosmos. Não é difícil imaginar que nossa crença na meritocracia plena e absoluta tendia ao 100% – assim como nossa pedância.

Foi então que um professor entrou em cena para nos mostrar que o mundo não se resumia àquela bolha onde nós éramos idolatrados. Mas fazer isso do jeito certo, foi fundamental para atingir seu objetivo principal.

O personagem

Na minha sala de aula vocês não são ninguém, moleques.

Quando ele chegou na escola, nós já estávamos da metade pro final do curso. O cara era um daqueles professores ilustres e todos sabiam que ele era bom demais pra vaga que estava ocupando. Ao contrário dos demais, porém, ele não parecia se importar.

Mas quem já fez faculdade sabe que um currículo impressionante não garante boa aula. Pelo contrário, o sucesso com as pesquisas acadêmicas parece inversamente proporcional a vontade do indivíduo de dar aulas, ainda mais se for para um bando de adolescentes metidos.

A gente não fazia questão de ajudar. Logo nos primeiros dias começamos a questionar tudo que ele falava. Sua presença nos incomodava por não fazer questão de ressaltar o quanto nós éramos bons por estar ali. Sua matéria também não permitia. Dando aulas de história do Brasil, ele colocava o dedo na ferida dos privilégios que tínhamos por estarmos sentados onde estávamos. Um lugar que há tão pouco tempo tinha sido conquistado por puro e exclusivo mérito pessoal.

As discussões se prolongavam para fora da sala de aula. Nos corredores, no caminho pra sala dos professores ou na lanchonete, nós exigíamos sabedoria e paciência dignas de um monge budista para que o professor não elevasse o tom de voz conosco. Mas ele se manteve irretocável, sem tentar nos convencer do contrário e sem apelar para o argumento de autoridade.

Diante da nossa insistência, ele poderia simplesmente falar algo do tipo "eu sei porque eu estudei (bem mais do que vocês)", uma variação do mais conhecido "sabe como quem você tá falando?". Ao invés disso, ele recorria à argumentação fundamentada nos fatos históricos que conhecia melhor do que nós, e sobre os quais não tínhamos como contestar. Assim nós nos enrolávamos com nossas próprias contradições sozinhos, mesmo sem admiti-las.

Admar foi, sem dúvidas, um daqueles professores que marcam época na vida de seus alunos. Mas o mais importante é que seu jeito calmo e paciente foi fundamental para que nós pudéssemos entender o que ele nos falava muito tempo depois.

A moral

Um dia vocês chegam lá.

Como ele mesmo previa, a maioria de nós foi fazer boas faculdades, mudou de cidade, conheceu novas pessoas e realidades diferentes daquela onde estávamos tão confortáveis. O contato, a experiência e o tempo mostraram que ele estava certo em apontar nossas cegueiras.

Não se tratava apenas de dilemas sociais. A lição mais importante na verdade foi a de acabar com nosso viés da superioridade. Algo que só foi possível graças à barreira que Admar impediu que nós criássemos com o assunto por não ter usado algum argumento apelativo.

Hoje em dia, vejo pessoas em diversos contextos defendendo boas causas com violência e pressa tamanhas que mais atrapalham do que se ajudam. Entendo que algumas questões são urgentes, mas sempre me lembro da frase que li em algum lugar e eu, ingênuo de tudo, não compreendi na hora:

Não adianta tentar martelar parafusos. Eles acabarão todos tortos. Procure pelos pregos ou pela chave de fenda mais próxima.

No fim, me recordo e me envergonho de algumas coisas que dizia pra ele na época. Coisas que eu entenderia como o mais completo absurdo se estivesse na posição contrária. Mas ele sabia que insistir em nos mostrar como estávamos errados ia acabar nos entortando, então preferiu plantar a semente e deixar que o tempo se encarregasse de fazê-la germinar.

Hoje, se ele finalmente me fizesse a pergunta que se recusou a fazer durante tanto tempo, eu poderia responder que sei com quem estou falando: alguém por quem guardarei grande admiração ao longo da vida.


publicado em 04 de Novembro de 2016, 16:00
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Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.


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