Sofri abuso espiritual | ID #63

A vulnerabilidade de uns somada à ilusão de ocupar uma posição de poder são a conjuntura perfeita para situações de abuso espiritual

"Fred,

minha história é um pouco diferente do que a coluna escreve, mas passei por um lance que foi bem bizarro e até me sinto envergonhado em contar, então vou resumir a história.

Tenho 29 anos e me considero um cara bem sucedido, mas nem sempre foi assim. Na real foi até o inverso. Eu passei uma fase bem desesperadora: minha mãe tinha falecido, eu estava com sérios problemas financeiros, tinha tomado um pé na bunda. Enfim, todo cagado.

Foi então que uma amiga me sugeriu procurar ajuda espiritual e me indicou uma religião que ela já tinha frequentado. Foi uma situação estranha para mim, mas naquela hora eu não estava com muita moral para recusar ajuda então eu fui e contra minhas expectativas gostei do lugar. Era bonito, aconchegante, gente motivada, receptiva, me trataram como uma criança desamparada, com frases de apoio e me ofereceram um espaço para me sentir um derrotado em paz.

O sacerdote teve um cuidado forte comigo (acho que todos pensam isso), me pareceu que viu algo em mim e aquilo foi o fator fundamental para o motor engrenar, alguns meses se passaram, minhas feridas estavam cicatrizando, e esse equilíbrio me ajudou a reerguer minha vida social, profissional, financeira e até amorosa.

Nesse meio tempo, eu notei que haviam algumas coisas que não funcionavam tão bem na estrutura e na logística do local religioso e me propus a ajudar. Quando me dei conta eu já estava mais enfiado do que –hoje eu percebo – deveria. Parece que entrei numa espiral de doação pessoal e financeira que parecia justa com tudo o que eu havia encontrado de ajuda e queria que outros recebessem o mesmo.

O problema é que o sacerdote gostou da brincadeira e aquilo que era espontâneo começou lentamente a ser chantageado. Quando comecei a colocar limites eu sentia que nos dias onde assistíamos a fala dele em público algumas alfinetadas eram direcionadas à mim. Eu não quis parecer tão importante e não dei muita bola, mas daí já surgiram fofocas e coisas que eu havia dito em caráter de confissão espiritual estavam circulando na boca do povo. Fiquei puto e fui confrontar o sacerdote que usou de todo discurso e cinismo (agora eu vejo) para me persuadir de que eu estava enganado. Isso aconteceu por mais algumas semanas até que eu resolvi me distanciar.

Depois de alguns meses notei uma tristeza em mim. Fiquei privado do convívio do pessoal que conheci lá e confesso, uma grande descrença na religião de modo geral. Queria readquirir essa força, mas não consigo me filiar a nenhum outro lugar religioso, peguei bode e certo desprezo por isso tudo, e olha que eu tentei.

S.S"

Caro S.S., o que você parece ter atravessado foi uma experiência de abuso espiritual e esse é um assunto bem sério e velado nos círculos religiosos.

Essa história também é muito delicada porque permite muitas distorções. É possível que apareçam pessoas obcecadas em buscar conclusões distorcidas e simplistas sobre o ocorrido. Uma delas é imaginar que determinadas religiões são mais propensas que outras a cometer esses abusos. Outra é afirmar que religião e religiosidade são fatores que predispõem em si mesmos o abuso de outras pessoas. Mas, só para constar, eu mesmo já testemunhei outras histórias desse tipo em comunidades religiosas de todos os tipos: católicas, evangélicas, umbandistas, hinduístas, budistas e, até, ateístas.

Esse tipo de abuso acontece onde existe uma estrutura de poder e pessoas em situações particularmente vulneráveis – assim como numa empresa onde um funcionário está constantemente ameaçado de perder o emprego. O termo abuso espiritual é mais apropriado aqui porque o tipo de barganha se deu numa esfera de fé, onde o elemento da crença numa força maior ou divina parece ser o gatilho para a situação problemática. Nem por isso podemos dizer que a fé numa corporação, no emprego, num cargo ou no dinheiro também não sejam abusivas.

Somos todos falíveis

Os sacerdotes, por mais que gostássemos de pensar que não, são pessoas e como qualquer pessoa tem seus pontos frágeis que variam no mesmo espectro de contradições humanas que qualquer outra sem um cargo de liderança. O problema é que pelo próprio carisma, encantamento e contexto prodigioso eles gerenciam expectativas bem altas sobre a mente das pessoas.

Parece estranho ver pessoas inteligentes, de bom coração ou com relativa boa capacidade emocional adotarem posturas extremas, quase ingênuas, por conta de uma crença. A verdade é que adultos são versões um pouco mais sofisticadas de crianças, mas não distantes emocionalmente das mesmas tramas da infância o suficiente.

Assim como acreditávamos nos nossos pais cegamente, como seres perfeitos e inquestionáveis, carregamos as sementes dessas estruturas de crenças para a vida adulta. Após a desilusão própria da adolescência, em que vemos os pais serem contraditórios, menos admiráveis e até menos confiáveis, acabamos seguindo órfãos emocionais. Nossa mente tem certa dificuldade de se relacionar com o transcendente de uma maneira mais abstrata, sem carregar os ranços dos condicionamentos emocionais. Por isso os sacerdotes assumem comumente esse papel substituto dos pais idealizados.

Somos todos filhos do padre.

O fanatismo devotado religioso (ou político – a estrutura é a mesma) é sempre proporcional à fragilidade egoica. Esta, desamparada e menos estruturada, acaba criando um movimento compensatório onde projeta a onipotência em uma pessoa externa quando não pode confiar nas próprias habilidades. E o apelo é enorme: como não projetar nossa fragilidade-onipotente em alguém que está num lugar que se pretende conectado com o espiritual ou o divino?

Não se iluda

A pessoa do sacerdote, por outro lado, empoderada desse legado também se vê iludida pelo próprio papel. Envolta nessa bolha de onipotência, vendo as pessoas movimentarem suas vidas sob o influxo de seu comando, acaba entrando num transe pessoal e investe-se dessa certeza. Mas aí é que surge a fragilidade do papel. Nessa posição ela inevitavelmente encontra as fragilidades emocionais da figura humana travestida de poder.

Os desejos sexuais, de controle e até destrutivos são auto justificados, já que são inaceitáveis pelo viés espiritual. O aspecto predatório reside nessa dupla cegueira (seguidor e seguido) e toda ação torpe ganha um colorido transpessoal que abafa a ação abusiva até que ela chegue a extremos gritantes. É bem verdade que muitos psicopatas – carismáticos e capazes de mimetizar o comportamento mais santo possível – existem nos meios religiosos como lobos em pele de cordeiro. Mas essa auto-hipnose onipotente criada pelo contexto parece ser um fermento para tanta arrogância misturada com abuso.

Explico isso não para abrandar ou diminuir a sua dor, mas para você tirar da cabeça que foi ingênuo ou tolo por ter entrado numa experiência que até os mais preparados estariam propensos a mergulhar. Ninguém está imune ao fanatismo, mesmo que não religioso, cada um se protege dos medos da vida à sua moda.

A nossa confiança ainda é muito frágil e depende muito da credibilidade externa de uma figura infalível que garanta que nossas dores jamais se repetirão. Mas fico me perguntando: e se nossa confiança repousasse na entrega frente a realidade que nos cerca? Algo como ficar absorvido por cada acontecimento cotidiano. Não seria lindo enxergar até no trânsito essa horda de formigas humanas indo e vindo de seus trabalhos e lazer para tornar a vida de outros mais abastada e feliz? Como não ver numa mãe aflita aquele esforço visceral por tornar a vida dos filhos melhor? Ou ver no anseio corporativo aquele desejo asfixiante de se libertar da escassez pessoal? Longe de ser uma aceitação passiva e permissiva, mas uma contemplação dos movimentos sutis da humanidade como quando olhamos a delicadeza-agressiva de um programa de Discovery Channel da selva africana.

Sou um apaixonado pelas belezas terríveis da contradição humana, inclusive quando elas me assombram por dentro ou me espancam por fora. Esse tipo de confiança talvez pudesse nos ajudar em momentos de sofrimento a olhar com menos exasperação e depositando, para quem tem fé, menos responsabilidade sobre figuras humanas externas, buscando nelas sabedoria e solidariedade e não uma salvação infalível a qual não podem cumprir. Os sacerdotes tem seus limites e até o que eles falam merece ser ouvido com discernimento, ainda que seja por compaixão da cegueira que eles mesmos estão envoltos.

Em nome do bem somos capazes das coisas mais arbitrárias e inimagináveis, afinal nossos interesses se tornam absurdamente justificáveis sob o manto defensável da bondade. Como pode ser ruim algo que promove o bem e tem tantos seguidores? É fácil responder, pessoas de personalidade autocorrosivas e autodestrutivas (com vidas problemáticas) são as mais vulneráveis a seguir em massa formas de pensamento estruturadas que reforçam esses traços de culpa, submissão, renúncia e dependência cega. Insisto, grandes corporações fazem o mesmo.

Espero de coração que você encontre paz e confiança em você mesmo.

Para quem interessa, no Netflix tem um documentário que fala sobre Cientologia (aquela seita que se pretende religião a qual o Tom Cruise é fiel defensor) chamado "Going Clear: Scientology and the Prison of Belief". Ele retrata pessoas que sofreram abuso espiritual/sexual/físico/financeiro. É angustiante ver como conseguimos ser autodestrutivos em nomes de verdades amorosas e edificantes. Falo um pouco disso nesse outro texto.

* * *

Nota da edição: a coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas). É apenas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.

A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão ampla, de ferocidade saudável. Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta possível.

Antes de enviar sua pergunta, leia as outras respostas da coluna ID e veja se sua questão é parecida com a de outra pessoa. Se ainda assim considerar sua dúvida benéfica, envie para id@papodehomem.com.br. A casa agradece.


publicado em 04 de Agosto de 2016, 20:18
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Frederico Mattos

Sonhador, psicólogo provocador, é autor do Sobre a vida e dos livros Relacionamento para Leigos" e "Como se libertar do ex". Adora contar e ouvir histórias de vida no instagram @fredmattos. Nas demais horas cultiva a felicidade, é pai de Nina e oferece treinamentos online em Fredflix.


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