Sons of Anarchy precisa apenas de uma chance

A série contempla muito mais do que a aventura dos motoclubes e merece sua atenção

Mais de um ano atrás, especificamente dia 9 de dezembro de 2015, era divulgado o último episódio de Sons of Anarchy, transmitido pelo canal FX. A série, que tinha expectativa para uma única temporada, acabou se sustentando por sete.

Apesar da aceitação lá fora, aqui no Brasil SoA não tá presente na rodinha-da-galera-das-séries, junto com Breaking Bad, House of Cards, Orange is New Black, Game of Thrones, The Waking Dead, Vampires Diares etc etc.

É normal que uma narrativa sobre um clube de motos não encante a todos, mas Sons of Anarchy é muito mais que isso. E precisa apenas de uma chance.

Vamos começar pelo som: o seriado com uma das trilhas sonoras mais fantásticas de todos os tempos merece um mimo. Portanto, antes de prosseguir na leitura, dá um play na música de abertura da série aí, pra dar aquele climão.

Criado por Kurt Sutter, Sons of Anarchy estreou em setembro de 2008 e ninguém esperava o alcance de 5,4 milhões de telespectadores semanais (isso é quase a cidade inteira do Rio de Janeiro), mas a amálgama de violência e sentimentalismo, morte e família, contraste característico das produções de Kurt, convenceu o público.

Para falar sobre a trama decidi fragmentá-la em duas partes, analisando as duas narrativas da série. Tem naturalmente alguns spoilers, mas é coisa pouca e que não compromete. Prometo.

O clube

SAMCRO (Sons of Anarchy Motorcycle Club, Redwood Original) é um MC (moto clube) fundado em 1967 na pequena cidade de Charming, por John Teller, Piney Winston e Clay Morrow, ex-combatentes da infantaria americana na Guerra do Vietnã. Junto a outros seis membros, deram origem à primeira composição do grupo, conhecida por First 9.

A vida não era mole pra quem retornava do Vietnã, com poucas oportunidades de emprego e aceitação da sociedade (aconteceu às veras, mesmo), e isso fez com os integrantes do clube o empurrassem à ilegalidade, passando a traficar armas.

Construíram uma oficina mecânica, a Teller-Morrow, para despistar autoridades e eventualmente lavar a grana que conquistavam com as armas. Claro, isso não convencia ninguém, mas havia um pacto entre SAMCRO e a cidade de Charming: a população fechava os olhos para o tráfico enquanto eram blindados dos outros grupos que atuavam ilegalmente nas regiões próximas, comercializando armas, heroína e pó. Os Sons negociavam com esses para que espaços fossem respeitados e todo mundo saísse ganhando uma graninha (i)legal.

Com o sucesso estrondoso da série, desde 2013 está rolando um burburinho sobre uma possível série om foco nesta primeira composição do grupo. Surgiu até o boato de que Brad Pitt faria John Teller.

(Acabou a música, né? Pois é melhor colocar outra)

O foco dessa série, no entanto, é sobre SAMCRO de anos mais tarde, uns 40 anos depois da formação inicial e aproximadamente 15 anos depois da morte do ex-presidente John Teller em um acidente de moto.

A maioria dos integrantes está dividida agora, em outras filiais do clube ou na cadeia, e a nova formação do Sons é capitaneada por outro fundador, Clay Morrow, e entre os novos membros está Jax Teller, filho de John Teller com Gemma Teller Morrow, atual esposa de Clay Morrow (sim, é um troca-troca do carai). Além disso, os acordos com os outros clubes estão ameaçados pela ambição excessiva de Clay em expandir o negócio das armas e de arriscar o clube a traficar drogas.

É este o pano de fundo de praticamente todas as temporadas, SAMCRO extrapolando o limite das suas capacidades e enfrentando milhões de retaliações que colocam em perigo a família dos integrantes, gente próxima e toda a cidade de Charming.

http://cdn4.thr.com/sites/default/files/2013/12/soa_613_amotherswork_0652.jpg

Apesar da hierarquia sólida, todas as decisões de negócio e atividades do grupo são tomadas de forma democrática, em uma votação bem aqui: na mesa mais badass de todos os tempos.

Jax Teller

A vida de Jax, interpretado pelo ator Charlie Hunnam, (que, convenhamos, é o cara mais bonito do mundo) é a segunda narrativa dentro do enredo de Sons of Anarchy.

Nascido em 1978, Jax perde o pai aos 15 anos. Depois disso se une ao clube e é eleito vice-presidente, título conquistado com aquela velha meritocracia que a gente conhece. Ao longo da série, principalmente na primeira temporada, Jax aparece lendo passagens de um diário que seu pai o havia deixado como presente, com anotações e reflexões sobre sua vida e sobre o que planejava ao longo para os caminhos do clube. John Teller narra sua intenção de retirar o MC da ilegalidade, principalmente de eventuais flertes com o tráfico de drogas. Como VP, Jax procura realizar o desejo do pai, motivo de inúmeros confrontos dentro do grupo, principalmente contra Clay Morrow.

Ao longo da primeira temporada, Jax descobre que terá um filho de uma antiga namorada-junky. O menino Abel é responsável por toda a trama da terceira temporada que, apesar de ser a mais chatinha das sete, é a que possui as melhores cenas das motocas, e o enredo da temporada se passa na Irlanda, único momento na série em que o clube sai de Charming.

Ainda tem o romance do protagonista com uma ex-namorada dos tempos de escola. Tara (a namorada), Abel e o diário de seu pai são os três antídotos contra a ambição do grupo cada vez mais acelerada por Clay Morrow. Na quinta temporada, Jax assume a presidência do SAMCRO após ter elaborado uma estratégia maravilhosa para empossar o grupo e o que era a oportunidade perfeita para reverter os rumos do Sons acaba se tornando uma porção de remendos e novas negociações frágeis, algumas que acabam em desastre.

Os problemas com os traficantes locais evoluíram a relações perigosas, como o grupo terrorista IRA (Exército Republicano Irlandês). As tentativas de legalizar os negócios, com a construção de uma casa de acompanhantes e um estúdio de filmes pornô, acabam virando alvos de retaliação toda vez que uma negociação não vai bem. Como proteger, deste jeito, a cidade, sua família, seu clube, seus negócios, a memória de seu pai e a si mesmo? Em sete temporadas você descobre.

http://i.imgur.com/2RSrmoZ.jpg

“I need to protect my family”. Você vai ouvir essa frase apenas 2.000 vezes (por episódio).

Quem espera aquele sentimento de liberdade ao assistir a série, o vento batendo no cabelo, o cheiro de asfalto, pode cair em um cenário paradoxal.

Comparemos com Breaking Bad, por exemplo, na qual um ex-professor de química se sente livre para corromper-se e tornar-se um dos maiores traficantes de metanfetamina do mundo. Tudo isso com a certeza absoluta da morte próxima devido ao seu câncer. Em Sons of Anarchy, em contrapartida, as motos simbolizam a escravidão do clube em relação ao seu próprio estilo de vida. Os rolês estão longe de ser um hobbie, um escape ou qualquer metáfora de liberdade, mas acontecem sempre com o objetivo de ou resolver um problema ou arrumar outro.

A série também aborda questões sociais sensíveis, como preconceito racial e gênero. Os já mencionados “outros grupos que atuavam ilegalmente” são fundamentais para os negócios SAMCRO, embora haja um todos contra todos por baixo dos panos. A boa relação entre eles se dissipa, depois é retomada, depois se dissipa mais uma vez e é retomada de novo – com muita retaliação nestes intervalos.

Estes grupos se dividem a partir da sua etnia. Os Niners, por exemplo, é um grupo de traficante de armas apenas formados por negros; Henry Lin só aceita que os membros do seu clube-da-heroína sejam chineses, e assim por diante. Os Sons, a princípio, são “os branquinhos”. Como eles agirão quando descobrirem que um dos membros mais fieis ao clube é filho de um pai negro? A luta para manter o segredo é sufocante, mas quando tudo vem à tona, a conclusão é linda.

Já quanto a questão de gênero, não dá pra deixar de falar de Venus Van Dam, transsexual e prostituta. Em meio às perseguições de moto, balas de revólver e muito sangue, temos a noção de que o clube está em uma realidade paralela. Podemos notar isso ao não encontrarmos, em 80% dos episódios, mais que meia dúzia de municípies, ou seja, habitantes de Charming.

Venus Van Dam é um dos personagens que o diretor sabiamente usa para retornar o pessoal do MC à “realidade-real”, para que se voltem por um minuto às complexidades sociais. E por quê não, pelo menos para um integrante do clube, se apaixonar por elas?

(Play na próxima)

O diretor Kurt Sutter ainda conseguiu contar com algumas participações especiais em SoA, como David Hasselhof; Dave Navarro (ex-guita do Red Hot), Courtney Love, Danny Trejo, Marilyn Manson, Stephen King e Ralph Hubert “Sonny” Barger (um dos fundadores do Hells Angels).

No entanto, as duas participações mais emblemáticas foram a do próprio diretor, como Otto, o personagem responsável pelas inúmeras negociações do MC com seus parceiros dentro da cadeia; e a de sua esposa Katey Sagal, que interpreta Gemma, a matriarca fodona do clube, mãe de Jax, numa das melhores interpretações que vi em toda a minha vida.

Katey recebeu, em 2011, o Globo de Ouro como melhor atriz principal em série dramática. Atuação pra apertar o pause, levantar do sofá e bater palmas.

https://i.ytimg.com/vi/K9fgblsspeg/maxresdefault.jpg

Marilyn Manson em SoA, no papel de um nazi filho da puta

Quando falamos de Sons of Anarchy não dá pra esquecer delas: as motos. Desde os primeiros capítulos, os farings dos caras do Sons já eram alvo de crítica. Segundo alguns fóruns, o clube deveria usar Choppers ou umas puta Harleyzonas monstruosas. No entanto, a série retrata um MC de 1%er (ou outlaw bikers).

O nome veio de um grupo de motoqueiros acusado de fazer uma bagunça fodida numa cidadezinha americana e obrigar a AMA (Americana Motorcyclist Association) a se manifestar, dizendo ao público que infelizmente apenas 99% dos motociclistas respeitavam a lei. Aquele 1% vagabundo, ou seja, os caras responsáveis pela algazarra, curtiram o título e passaram a utilizá-lo.

Ao que parece, esse motociclistas, que são inspiração da criação do pessoal do SAMCRO, utilizam motos da linha Dyna da Harlyey Davidson, máquinas que ignoram fru-frus e um pouco mais de trabalho estético e focam na potência e velocidade, muito comuns na Califórnia (justo onde fica Charming, apesar de ser uma cidade ficcional). Tem uma matéria maneiraça neste site sobre as motos de cada um dos integrantes do MC.

http://1.bp.blogspot.com/-FmzXlcHzgHE/Ur2eudQFRSI/AAAAAAAAABs/bBMTd9i2aUg/s1600/922647_10151596442893291_1552154251_o.jpg

Harleys, Harleys Everywhere!

Aqui no Brasil, a série parece ter dado uma chacoalhada no comportamento de alguns membros de moto clubes. Existe um relato a respeito do grupo Lenhadores do Asfalto, que quiseram passar a “viver como os caras”, saindo por aí sem lei, causando brigas e discórdia entre grupos, indo, assim, contra o código de conduta dos MCs aqui no país. Essa história foi contada neste blog. Entrei em contato com a Fernanda, mencionada como autora do texto, pelo Facebook e ela confirmou as informações.

Apesar do falatório sobre First 9, parece mesmo que o spin-off de Sons of Anarchy que está pra sair não será um prequel, ou seja, não será uma produção sobre os acontecimentos anteriores à série original. Em entrevista para o site Deadline, Sutter disse que pretende criar uma série que foque em outro MC, os Mayans, formado por mexicanos. Dentre todos os grupos de Charming, é sem dúvidas o grupo com que SAMCRO melhor se relaciona. "É a mesma subcultura [a dos moto clubes], mas seria interessante ver as influências da cultura hispânica, e como ela causa impacto naquilo que já conhecemos", comentou o diretor.


publicado em 16 de Março de 2016, 15:18
1pdwpgh

Giovanni Arceno

Giovanni Arceno é estudante de jornalismo. Tem mais amor pela literatura que amor próprio.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura