Storytelling é coisa da vovó

Foi em um pequeno apartamento, com taquinhos de madeira no chão, no bairro de Perdizes, em São Paulo, onde eu aprendi mais sobre storytelling do que em qualquer aula de propaganda e marketing que já tive na faculdade. É nesse apartamento que vive uma simpática velhinho de 91 anos. Dona Helena, a minha avó.

Quando mudei de emprego, saí do Morumbi para a Vila Madalena, mais perto da casa dela. Desde então, passei a ir almoçar com ela às segundas-feiras. Não só era uma boa ficar mais perto da minha avó e ainda aproveitar as maravilhosas comidas que ela faz. Parece que para cozinhar bem não basta ler livros de culinária e fazer cursos,o segredo é ter netos e virar avó.

A mãe da minha avó veio da Itália para trabalhar e, em pouco tempo, se estabeleceu com o marido em uma fazendo em Aceburgo-MG. Minha avó foi criada lá.

Naviodeimigrantes

Ela fez um pouco de tudo. Desde molecagens de uma época anterior à minha – como roubar fruta do vizinho – até coisas mais radicais – como sair de casa aos 14 anos em direção ao Rio de Janeiro, para trabalhar como criada e babá. A vida dela deu muitas voltas. Isso, junto com o passado mais simples, dão histórias e opiniões muito divertidas, tão saborosas quanto o arroz, feijão e bife que ela costuma fazer.

Acho que é algo que perdemos com o tempo. Parece que não sabemos mais contar histórias.

Isso minha vó saber fazer. No começo, só jogamos conversa fora. Ela conta do final de semana e, antes de nos sentarmos à mesa, faz alguma observação, como "carioca corre na praia, paulista come pizza", por isso no Rio o pessoal tá mais em forma. Outro dia, comentou a reportagem do Rock In Rio na televisão: "é bom todo mundo pulando assim, hoje em dia está todo mundo gordinho".

Mas isso é só o aperitivo. Logo depois começam as histórias. E que histórias! Elas podem durar o dia inteiro, a semana inteira. Tem de tudo, todo os gêneros, todos os temas. É como navegar na home do Netflix.

Comédia? Tem o louro que aprendeu a gritar o nome do cachorro da casa. Toda vez que o louro gritava, lá vinha o cachorro correndo que nem doido. E o que louro fazia? Ficava rindo até cair do poleiro.

Drama? O fazendeiro que esqueceu a arma do lado de fora da casa e, quando o filho foi brincar com o vizinho, acabou acertando um tiro no segundo. O fazendeiro deu sua fazenda e sua próspera plantação como indenização e passou o resto da vida na tristeza e no arrependimento, morando numa pequena casa, com uma plantação que não dava nada. E o seu filho? Suicidou-se alguns anos depois do acidente.

Biografia? Conheci o Chico Alves, cantor que era chamado de Rei da Voz. Segundo minha vó, ele tinha um Buick. Quando casou, disse do carro "se for para dividir, prefiro jogar ele da ribanceira". Buick este onde o cantor morreu, após ser atingido por um caminhão.

Francisco Alves-foto1
O cantor das histórias da minha vó

Romance? O dia em que meus avôs se conheceram. Foi em uma festa junina. Meu vô conversou com a minha vó e se ofereceu para caminhar com ela. No caminho, fogos de artificio da festa explodiram no ar. Ao ver o olhar de indagação da minha vó, meu vô já soltou um "esses fogos são para comemorar que eu encontrei você".

Posso passar dias contando as histórias da minha vó, do jeito que ela faz comigo. Mas não é a mesma coisa. Eu não sei contar as histórias como ela, de um jeito apaixonado e comovente. Ora chorando, ora rindo, como se a história tivesse acontecido ontem, e não há 30 anos atrás.

Esses dias ela me mostrou uma prece que fez na década de 60. O ano eu não lembro (não puxei nem o talento culinário, de trovador ou de memória dela). Nessa prece, ela pede algumas coisas para Deus, quando ficar mais velha. Uma delas é que Deus não permita que ela fique tagarela. Pra minha sorte, Deus pulou essa parte.

Ou, talvez, ele também goste de aparecer em Perdizes nas segundas-feiras e ficar escutando.


publicado em 14 de Janeiro de 2014, 13:33
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Raphael Valenti

Redator na Wieden + Kennedy São Paulo, Raphael é formado pela ESPM em Propaganda e Marketing. Gosta de ler, escrever, ouvir músicas e ver filmes, essas coisas que fica legal colocar em um perfil. Orfão de Breaking Bad, vai ter que achar novos vícios pelo caminho.


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