Você é um otário

É isso mesmo. Você, caro leitor, é um otário. Um puta de um imbecil demagogo do caralho. Mas não se sinta ofendido. Por favor, não me leve a mal. Afinal, todos nós somos escrotos. Você, eu, nossos amigos, nossos chefes, nossas namoradas, nossos pais... Infelizmente, faz parte do nosso inconsciente coletivo essa cota de demagogia que faz de cada um de nós um belo exemplar de verme – o que não nos impede de tentar extirpá-la.

É como se o mundo conspirasse para fazer de nós uma espécie de Larry Gopnik ("Um Homem Sério"). De quem é a culpa?

Acabei de comprar remédio controlado sem receita médica. Eu estava com o papel escrito em letras tortuosas, carimbado, datado, assinado no meu bolso, mas preferi ver se receberia a droga mesmo sem apresentá-lo. Na farmácia da esquina – não qualquer drogariazinha de bairro, mas uma filial de rede renomada, com comercial na TV e o caralho a quatro –, pedi o remédio pelo nome com um sorriso no rosto e a atendente logo me trouxe a caixinha. Vinte e oito comprimidos de um antibiótico foda. Tomados juntos de uma só vez, matariam até um cavalo, acho. Para completar, ganhei desconto de R$ 7 no caixa (sou cliente cadastrado).

Quem é o idiota na história? Eu, que consegui o remédio que queria sem seguir as regras? A atendente, que fez o papel de bem servir? A farmácia, que lucrou alguns caraminguás? O Estado, que provavelmente vai ter despesa se um otário fizer como eu mas, em vez de tomar o medicamento da maneira adequada, ingerir todas as 28 cápsulas como se fossem jujubas?

O idiota somos todos nós. A gente se faz de esperto sem imaginar que, na outra ponta, alguém sairá perdendo. Esquecemos disso porque, na real, nós não ligamos para isso. Afinal, o mundo gira em torno do nosso umbigo.

Eu me lembro quando uma amiga minha, Sabrina, voltou de Londres. Passara dois anos lá. Fomos a um bar na Paulista comemorar seu regresso.

— E aí? Já se acostumou ao Brasil?

— Não sei. Uma coisa eu percebi logo que cheguei: aqui no Brasil, parece que todos querem te fazer de otário todo o tempo.

Sabrina, você é uma linda mulher. E otária como todos nós.

“Todos querem te fazer de otário todo o tempo”. Não sou desses que amam odiar o País, mas neste caso, faz sentido. Por aqui é comum ser feito de otário todo o tempo. Eis uma ponderação que Darcy Ribeiro nunca colocou no papel. Que Caetano nunca musicou. Que Paulo Francis nunca escancarou. Darcy, Caetano, Francis, todos otários. Sabrina, com sua pele imaculada, é otária. Eu, diante deste notebook, sou otário. Você, lendo este texto, adivinhe o que é?

Sempre que se aperta o botão para fechar a porta do elevador mais rápido e evitar que outros entrem; sempre que se finge dormir no banco de idosos do metrô para não ser incomodado pelos velhinhos e pelos olhares repreensivos; sempre que se introduz uma linha microscópica num contrato qualquer; sempre que se oferece e se aceita bala em troca de moedas no boteco estipula-se de maneira velada quem é o Gérson Canhotinha de Ouro da vez. E, para manter a harmonia do universo e não se criar um buraco negro, também se evidencia quem é o trouxa.

Link YouTube | Gérson: de boleiro e galã do cigarro Vila Rica à personificação do espírito "levar vantagem em tudo".

Mire-se no espelho, seu puto

Mas não somos apenas vítimas, e sim autores de pequenos gestos, como furar uma fila para entrar na balada; e de grandes façanhas, como diminuir o tempo do sinal verde em alguns semáforos de São Paulo para aumentar o tráfego, criar congestionamentos e fazer o motorista perder a cabeça ao ponto de cometer infrações e pagar multas.

— Repare — diz o motorista que me acompanha a uma pauta. No rádio, Bezerra da Silva.

— Repare no quê?

— No semáforo.

Ele abre. Há cinco carros na nossa frente. Três passam. O sinal fecha. Foram oito segundos de luz verde. E seguem-se quarenta de vermelha.

Atordoado, o motorista xinga Kassab. Diz que “a Veja devia fazer uma matéria sobre isso”. Que “nunca mais ele se elege em São Paulo”. Que “é o fim do mundo a gente pagar tantos impostos e ter a dignidade praticamente estuprada no dia a dia”.

Eis que ele come faixa, faz um retorno irregular e segue adiante, vociferando demagogia. O otário de hoje é o filho da puta de amanhã.

Seu Bezerra da Silva, desculpe corrigi-lo, mas o mundo não se divide em malandros e manés. Como já dizia Cartola, o mundo é um moinho, meu caro. O puto que está em cima logo vai descer. De malandro a mané, de mané a malandro. E acredite, você é um imbecil. Cartola também.

Link YouTube | Ouça-me bem, leitor, preste atenção: o mundo é um moinho que vai triturar teus sonhos tão mesquinhos.


publicado em 21 de Junho de 2011, 05:06
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Rodolfo Viana

É jornalista. Torce para o Marília Atlético Clube. Gosta quando tira a carta “Conquiste 24 territórios à sua escolha, com pelo menos dois exércitos em cada”. Curte tocar Kenny G fazendo sons com a boca. Já fez brotar um pé de feijão de um pote com algodão. Tem 1,75 de miopia. Bebe para passar o tempo. [Twitter | Facebook]


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