"Você me completa": sobre relacionamentos e incompletude

Semana passada uma amiga me perguntou se era verdade que a gente sempre busca na pessoa com quem a gente se relaciona o nosso pai ou a nossa mãe. Muitos amigos me fazem este tipo de pergunta por saberem que eu estudo psicanálise – e eu achei engraçado porque é muito curioso como ela é difundida na mídia, sempre de uma maneira muito determinista.

Já ouvi frases do tipo: “Meu pai é cafajeste, por isto só namoro cafajeste, Freud explica”. E pronto: a pessoa se contenta com isto e para por aí, não se questiona, nem tenta mudar.

Quando minha amiga me fez esta pergunta, eu já tinha escrito boa parte do texto aqui para o PdH, mas a pergunta dela me fez questionar sobre o que seria legal falar para pessoas – que não são psicanalistas – sobre relacionamentos amorosos, pela visão da psicanálise. E reescrevi o texto.

Em primeiro lugar, a resposta que dei a ela: sim, vamos buscar algo do nosso pai e da nossa mãe, do nosso familiar (aqui, no duplo sentido mesmo), do que nos constituiu. E não, o que vamos buscar nunca é relacionado a nossa mãe e pai reais, mas sim à imagem que temos deles.

Nossa eterna incompletude

Cena clássica do filme Jerry Maguire. "You complete me"... Será mesmo?

Somos inseridos no universo social quando nascemos por pessoas, mas que para nós, quando bebês, exercem papéis de figuras – materna ou paterna. A maneira como encaramos estas figuras é completamente única.

Expliquei para a minha amiga: se você entrevistar 5 irmãos, gêmeos quíntuplos, que nasceram juntos, foram criados pelo mesmo pai e pela mesma mãe e perguntar a cada um deles como eles veem seus progenitores, eu garanto que cada um vai descrevê-los de uma maneira diferente. Isto porque, na medida em que nos relacionamos com os outros, esses outros vão nos marcar de maneira completamente subjetiva – e vamos levar estas marcas, nossas e particulares, para a vida.

Mas isto não quer dizer que estas marcas são imutáveis; a cada encontro nos deparamos e fazemos novos arranjos, releituras destas nossas formas de relacionar, mas sempre com influência daquilo que já vivemos.

Segundo a psicanálise, quando nascemos, passamos por um momento em que vivemos um estado de completude – mãe e bebê (e de novo, não estou falando da mãe real e sim de quem exerce esta função materna) vivem de forma simbiótica, como se fossem um. E isto é imprescindível para a sobrevivência do bebê, pois o bebê humano nasce muito despreparado (se estamos vivos é porque alguém exerceu esta função). É necessário que a mãe se volte inteiramente para ele e atenda todas as suas necessidades, inicialmente, só biológicas.

Posteriormente, com os cuidados que recebe, com a voz, o olhar da mãe, o bebê cria uma demanda de amor, de ser amado e receber tudo daquela mãe – não só da ordem biológica, mas sim da ordem simbólica. Porém, esta demanda vai ser frustrada, pois é impossível sustentar uma satisfação infinita e completa a esta demanda de amor. Aquele estado de completude vai ser perdido para sempre. E é importante que seja, pois a partir da falta dessa satisfação infinita é que o bebê vai se voltar para o mundo, se inserir socialmente.

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A primeira vez que sua namorada o abandonou você ficou chorando em posição fetal?

É esta falta de completude, que nunca vai ser alcançada, pois não dá para retornarmos a este estado primitivo, que vai instaurar nosso desejo – que nada mais é nossa busca incessante por satisfação – e que nos coloca na vida, em movimento. Tal desejo é único e por isto a maneira de levar a vida de cada um é única.

As relações amorosas também são, na verdade, movidas pelo nosso desejo. Buscamos os modelos de relações que conhecemos, na maioria das vezes, de forma inconsciente. E aí acontece, muitas vezes, um desencontro: se meu desejo é único e do outro também é, como conciliar os desejos diferentes para ficarmos juntos?

Philippe Julien, no livro Abandonarás teu pai e tua mãe (2000), trata deste assunto. Segundo Julien, para os pais conseguirem fazer com que seus filhos sejam educados para o mundo, eles devem passar aos filhos a lei do desejo, fundada na concepção de que não existe completude nem no ser humano, nem em suas relações; existem escolhas.

Para Julien, as relações conjugais são pautadas em três dimensões: o amor, o gozo e o desejo.

O amor e suas ilusões

O amor é baseado no devotamento, na atenção, na ideia de constituir um 1 de 2. O amor é da esfera do nosso imaginário, ou seja, daquilo que espero, imagino, que o outro tenha que me completa e se baseia naquelas marcas que trazemos conosco das nossas relações primeiras. É da ordem da imagem.

Hoje em dia, é o amor que é supervalorizado pela mídia, que retrata em filmes e novelas histórias impossíveis, nas quais a identificação com o outro é suficiente para se estabelecer uma relação duradoura. A mocinha olha para o mocinho e – pimba!!! – se amam loucamente e se completam; e isto é suficiente para que sejam felizes para sempre.

Não estou dizendo que o amor não é importante para uma relação. Claro que é, pois este encantamento com o outro faz com as pessoas se abram para este outro. Mas basear um relacionamento apenas nesta esfera é perigoso, já que o outro é sempre de carne e osso e, portanto, sempre diferente da imagem que fazemos dele.

Depois do arrebatamento passional, surgem frases como “Ele não era como eu imaginava” ou “No começo era diferente”. Era diferente porque se baseava apenas na ilusão, na imagem – e ela, como Narciso teve a oportunidade de descobrir rapidamente no lago, é fugaz e trapaceira.

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Quanto do outro é o outro e quanto é sua projeção?

O gozo que nos move

Para Julien, há dois tipos de gozo: o sexual, que é o gozo do corpo do outro e o não-sexual. Gozo aqui não é o equivalente ao orgasmo, mas é um conceito psicanalítico que aponta para a energia psíquica que nos move, falando de uma maneira bem simplificada.

Mais ou menos assim: temos uma quantidade de energia, que fica no limite entre o físico e o psíquico, que precisa ser liberada o tempo todo – pela nossas ações, pensamentos e sentimentos – para manter o aparelho psíquico “estável”, sem grande quantidade de excitação, pois, com muita excitação, sentimos desprazer.

Assim, cada um busca ações e maneiras de se relacionar no mundo de modo a provocar esta descarga de energia – que provoca alívio, mas muitas vezes dor também. O sexo não deixa de ser uma das maneiras de liberação desta energia, mas existem muitas outras. O gozo sexual, por exemplo, não ocorre apenas no sexo, mas sim em todas as nossas ações que provocam uma descarga parcial desta energia.

Para Nasio, “o gozo é um lugar vazio de significantes” (p. 29), ou seja, algo do qual não se consegue falar exatamente, pois é da ordem do impossível. Mas bons escritores e escritoras conseguem se aproximar da descrição do gozo, como Hilda Hilst, nesse trecho de A obscena senhora D (2001):

“A paixão é a grossa artéria jorrando volúpia, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de emoções, escarlate sobre a tua vida, paixão é esse aberto do teu peito e também o teu deserto” (p. 29)

Esta descrição fala do corpo. Ao ler, imediatamente você sente como é, embora sempre, na leitura, não dê para descrever exatamente as reações do corpo que sentimos neste gozo (que é esta energia nessa descrição de Hilda sobre a paixão).

Esta dimensão também é importante para uma relação, mas também não sozinha, já que o alívio provocado pelo gozo é o que nos move. Mas Julien (2000) de novo fala que relacionamentos baseados nestas duas dimensões são (1) medíocres, amor por identificação ao outro; ou (2) subversivos, baseados apenas no gozo sexual.

O desejo e nossa falta

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Eu, você e todos nós: sempre incompletos

Para Julien, “se o amor é dom daquilo que somos, o desejo é, ao inverso, dom daquilo que não temos e daquilo que não somos: é confissão da falta, do vazio” (p. 35).

O autor afirma que a lei do desejo “é a única que pode sustentar a diferença entre os sexos” (p.37). Esta diferença, ele ressalta, não é anatômica, nem de gênero. É a diferença no sentido de alteridade, ou seja, saber que o outro é diferente de você e conseguir valorizar isto. E saber que a completude não existe, nem em nós mesmos, tampouco numa relação.

Neste sentido, Julien fala que, ao nos submetermos à lei do desejo, aceitando o diferente, o incompleto, podemos construir relações que se mantém – e sempre descobrir algo novo e diferente dentro destas relações. Mas por que não nos submetemos sempre a ela? O autor afirma que é para evitar conflitos e transgressões das leis do bem e do dever, que implicam em sempre se mostrar como bons e perfeitos ou moralmente inabaláveis.

É aí que está o desafio: aceitar que o outro não é completo implica, primeiro, aceitarmos que não somos – olhar para dentro e ver as nossas dificuldades e a nossa falta. Ainda segundo o autor: “o desafio é ficar próximo do não-conhecido no outro e em si mesmo” (p.43).

Ítalo Calvino termina seu livro As cidades invisíveis (1990) com o seguinte trecho, que acho muito pertinente:

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tenta saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço."

Na sociedade atual, este olhar para dentro é bem difícil: primeiro, pela infinidade de afazeres que nos distraem; segundo, que a exigência de se mostrar perfeito e feliz o tempo todo dificulta ainda mais olharmos o que não é bonito e feliz – coisa que já é difícil de se fazer por si só. Assim, cresce a venda de livros de auto-ajuda, que só reforçam que a felicidade plena e a completude é possível. Mas a insatisfação também cresce, assim como o desentendimento nas relações.

Cada uma das dificuldades enfrentadas por um casal não é superada (se é que pode-se dizer superação) sem uma boa dose de sofrimento. E sem uma boa dose de conversa. É o falar, argumentar e negociar que faz com que as escolhas do casal possam ser construídas. Calma, meninos, não estou propondo a DR eterna! Mas a pontuação das diferenças é sempre necessária – e por meio da fala que chegamos a acordos, saídas, novos caminhos.

Neste sentido, a música popular brasileira, arraigada em concepções menos eruditas sobre o amor, muitas vezes dando voz a sabedoria popular, diz: “Pergunte ao seu orixá, amor só é bom se doer” (letra de "Canto de Ossanha", de Baden Powell e Vinicius de Moraes). Simples. Porém essencial para pensar num amor fundado na diferença.

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Porque, afinal, é com a diferença também que se pode sair da mesmice: é por saber a dor, que se sabe aproveitar a felicidade. E as pessoas esquecem-se das oposições na contemporaneidade, por temer abalar tudo aquilo que julgam estável. Tem de se ter a garantia, a certeza...

Mas certo mesmo é que não se pode ter certeza de nada com relação ao amor.

Referências:

Calvino, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Julien, Philippe. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.

Hilst, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001.

Nasio, J D. 5 lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1993.


publicado em 09 de Janeiro de 2010, 13:50
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Marina Graminha Cury

Marina Graminha Cury é psicóloga e especialista em Psicologia Hospitalar pela USP. É psicanalista em formação. Atua como psicóloga clínica em instituições e consultório particular e acredita que os livros de auto-ajuda deveriam ser queimados em praça pública.


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