Vamos começar definindo o que seria essa perfeição: tudo que A fala, B entende do jeito que A falou e pretendeu falar? A resposta parece fácil: não, comunicação perfeita não é possível, senão entre máquinas, com protocolos de correção de erro, como as que levam essa página até seu computador. E, talvez, em conversas muito simples, por exemplo, sobre passar o sal na mesa.
O problema da perfeição da comunicação não é a informação bruta, um problema de “telefone sem fio”, mas uma coisa muito mais sutil, que é a semântica. Quem se interessa pelos desenvolvimentos da ciência da computação pode objetar, afirmar que a semântica penetra cada vez mais, e que a “web semântica” não foi só uma buzzword dos anos 00. De todo modo, os problemas de inteligência artificial e filosofia da mente que vão, se possível, levar um computador a entender linguagem natural ainda não estão solucionados.
Sim, o computador já consegue captar o que você fala e responder de forma adequada em boa parte das vezes, mas o que se quer dizer por “entender” o que se está dizendo ainda não foi sequer explicado, que dizer replicado.
O que os criadores desses algoritmos parecem usar, e que realmente é parte do problema, é a noção de contextualismo semântico. Isto é, num exemplo raso, quando digo “sentei no banco” as palavras ao redor de “banco” mostram que, muito provavelmente, não se está falando da instituição financeira. Porém, alguns modificadores já podem mudar essa opção “sentei para esperar meu atendimento no banco”, e assim por diante.
Mas nem só na óbvia homonímia moram os problemas semânticos. As erupções léxicas carregam toda uma interdependente rede de diversidades entre os falantes. Não só as referências, entre os grupos de diversas granularidades, são diferentes, mas cada um dos termos num grupo associado tem algum grau de sentido próprio. Até mesmo interjeições monossilábicas podem carregar mundos de sentido entre pessoas próximas.
Quando falamos com estranhos, ou estrangeiros, em nossa língua ou outra, assumimos a fala mais genérica possível. Isto é, se desejamos coisas objetivas, como ser atendidos num restaurante, falamos de um jeito. Em outras ocasiões a própria ambiguidade léxica é fonte do divertimento, e o estranhamento se torna uma forma de riqueza.
Dessa forma, podemos dizer que a comunicação, num sentido ideal, não existe. O que existe são tentativas que funcionam melhor ou pior. Funcionar bem significa não entrar em atritos desnecessários e fazer as coisas acontecerem como se deseja.
Algumas pessoas pensam que os atritos surgem de problemas de comunicação. Não é assim, os atritos raramente surgem por causa disso. Não é como se a pessoa fosse mais precisa no que quer dizer que ela evitaria aquele desconforto: isso até acontece, mas é bastante raro.
O atrito, no mais das vezes, ocorre porque algum dos lados deseja o atrito – depois pode até ser que use a desculpa do problema de comunicação, para evitar atritos adicionais. E por que alguém deseja atrito? Ora, porque se sente injustiçado, ou porque acha que o erro que vê no outro o afeta pessoalmente, ou alguma causa que lhe é cara.
Então algumas vezes consideramos útil causar celeuma, se isso é efetivo. Muitas vezes não é, e se abusamos da posição de ataque, naturalmente perdemos credibilidade.
Mas tudo isso se refere ao que podemos chamar de “discurso direto”, isto é, onde as pessoas tentam, fazem o melhor possível, para deixar as coisas claras. Nem sempre isso acontece, por bons e maus motivos.
No meu texto sobre ironia relato que um dos usos importantes do discurso indireto ocorre no flerte. E com o feminismo no Brasil assumindo hoje a proporção que tinha nos EUA nos anos 90, cada vez mais ser direto nesse âmbito vai se tornar impossível. Nunca foi desejável, e sempre foi mais sofisticado deixar a situação acontecer além da proposta mecânica do convite aberto. Também boa parte da excitação do flerte é justamente a imprecisão epistêmica da situação.
Claro, perdemos algo ao nos tornar uma cultura mais sofisticada e falar de forma menos direta (não o machismo, que é uma forma de ser direto desagradável, mas outras). Mas falar diretamente, em todo caso, é prerrogativa de uma estrutura de poder estabelecida. Não somos irônicos ou indiretos com um subalterno ou um chefe, ou mesmo entre iguais estabelecidos. Nós usamos o discurso indireto quando sondamos as possibilidades, ou quando nossa igualdade (ou superioridade) não é reconhecida.
E, por favor, não confunda essa questão de “poder” com uma visão moralista hippie. Digamos que alguém esteja lhe pedindo uma informação: nesse caso você está fazendo um favor, o outro está pedindo um favor. Digamos que, após você dar a informação, ele o corrija. Isso é naturalmente desrespeitoso, porque, ora, se você sabe, por que pergunta? E se quer debater o assunto, assuma que você vem como um oponente. Não se está falando aqui em superioridades ou inferioridades, ou igualdades, absolutas. Isso talvez nem mesmo exista. Mas em muitas situações, por mais igualitários que desejemos ser, precisamos reconhecer que há uma assimetria, e que essa assimetria representa certas estruturas tácitas, que se não reconhecemos ou não respeitamos, estamos violando e assim piorando a qualidade da comunicação para todos os envolvidos.
Em outras palavras, temos que saber nosso lugar. Nossa função no mundo pode variar extremamente de situação para situação, mas reconhecer tanto uma coisa quanto a outra é essencial. Qual é a situação? Como eu posso operar dentro disso? Qual é meu objetivo? E estou falando da forma mais totalmente moralmente neutra aqui: eu diria que é melhor você ser ético, ter bons objetivos, reconhecer a situação e operar com o menor impacto possível. Isto é, não tendo a comunicação em si como objeto, mas o sofrimento dos envolvidos. Mas em termos de estratégia pura, sem moral, o mesmo vale. A diferença quanto à ética é só agir de forma mais inteligente e ampla ou menos inteligente e mais restrita.
Um tipo de produção textual ou prática budista exemplifica bem todos os fatores descritos acima: contextualismo semântico, comunicação imperfeita, discurso indireto, situação, função e motivação. E essa é a famosa prática da escola C’han Rinzai chamada de koan.
Devido à influência do romantismo alemão sobre a cultura japonesa e sua interpretação, a literatura mais comum em língua ocidental sobre koans vai enfatizar sua irracionalidade, isto é, o divertimento com soarem como conversa de loucos. É fato que a não conceptualidade é uma porta para a experiência direta, e que o zen é crítico da conceptualidade. Mas a forma pela qual o koan rompe a conceptualidade não é a simples loucuragem. Pelo contrário, esses diálogos normalmente ocorrem num contexto de debate, em que há uma densidade semântica absurda, e em que a fixação pelo sentido de determinados termos é exposta em conjunto com as neuroses da relação de poder entre professor e aluno.
O resultado é que o koan produz a não conceptualidade como resultado de uma crise emocional, quase física (e algumas vezes que chega ao físico, como tapas, ou, num caso, cortar a garganta de um gato na frente de 500 monges). Não há, como no ocidente se leva a acreditar, entendimento de menos e aleatoriedade no koan, que seria uma mera leve brincadeira de palavras, com alguns monges andando com a sandália no topo da cabeça, ou algo assim.
Tanto é assim que a prática de koan, alguns séculos atrás, foi famosamente corrompida. Havia manuais do tipo “se o mestre disser tal coisa, sem hesitar lhe dê um tapa na cara”, e assim por diante, já que quem “vence” a disputa de koans recebe o inka, uma confirmação de realização espiritual que com o tempo passou a representar prestígio social e econômico. Então essa tentativa de burlar ou burocratizar um processo de credenciamento de fato ocorreu, e isso só foi possível porque os koans possuem estruturas reconhecíveis e lógica, ainda que essa lógica escape a todos que não estão cientes das inúmeras “piadas internas” embutidas na prática.
Essa pasteurização, com manuais para como se passar num concurso público, enfim, indica que a prática de koan envolve vários tipos de comunicação. Você é testado, num sentido último, em termos do ensinamento budista, em como reagir imediatamente e diretamente na experiência direta de situação, função e motivação. Dentro disso, os debates históricos da tradição são relembrados e referenciados, no uso de palavras e gestos específicos – que você conhece por estar lendo e discutindo sobre isso há anos. Eles têm um sentido, e eles são explicados, comentados e lembrados vez após vez durante os ensinamentos semanais.
Por exemplo, “qual é o som de uma só palma” não é só um “som que não existe” ou uma afirmação paradoxal, visando a aporia, uma situação de “perplexidade iluminada”, como os românticos afirmam. Quando você bate na madeira, tem o som da madeira. Quando você bate na cerâmica, tem o som da cerâmica. Mas qual é o som da sua baqueta, daquilo com que você bate? Se você bate com um metal o som é diferente do que se você bate com uma vareta de plástico. Os fenômenos, inclusive o contexto semântico das palavras, não surge de um lado da experiência, de um dos conversadores.
Há uma coemergência, que é uma palavra bonita para se dizer “qual é o som de uma só palma?” Qual é a comunicação que não tem um receptor? Como é que você existiria sem todos os outros?
Durante a prática de koan, efetivamente, se testa qual é o “som de uma palma só”, e não se você pode explicar o koan como eu fiz, mas se você vivencia a natureza interdependente da comunicação direta, num exame radical com seu professor.
Jabá
Já tratei desses assuntos de comunicação aqui no PapodeHomem, e a origem dos meus estudos sobre isso foi ao preparar os textos do meu livro Filosofia: forma de vida & passarela de egos, que finalmente concluí.
Há um pouquinho mais sobre koan ali, mas outras formas de comunicação indireta e implicações diversas são tratadas. Ele está disponível também para Kindle.
publicado em 08 de Janeiro de 2015, 00:00