Como a morte de Marielle Franco afetou uma pessoa que não entendia quem sai na rua pra protestar

Um breve relato sobre o reacender de um certo espírito dentro de nós

Nota editorial: muitos acreditam que a cobertura da morte de Marielle é excessiva. Por isso sugerimos ler o artigo "O que Marielle Franco representa no Brasil de 2018". Por aqui também tomamos nosso tempo lendo mais sobre o assunto antes de publicar algo.

Agradecemos Lorena, a autora do texto a seguir, pela confiança em nos compartilhar um relato tão pessoal e sincero.

* * *

Meu irmão, Felix, é uma pessoa política e ativista, defende aquilo no que acredita. E também um excelente comunicador. Sua timidez favorece a introspecção e o que fala costuma ser bem pensado, rico em conteúdo e sentido. 

Há 5 anos, quando ele e todo mundo estava na rua brigando pelos “vinte centavos”, eu me perguntava: “esse povo não trabalha não? Vão fazer alguma coisa de útil, ver se tem louça em casa pra lavar!”.

Enquanto todos ocupavam os espaços públicos nas manifestações dos "20 centavos", voltei de ônibus pra casa, troquei de roupa e desci até a piscina pra comer rodízio de pizza. Na tela da TV passavam as imagens das passeatas e injustiças — sem som, claro, pois o barulho não deveria atrapalhar nossa conversa informal e vazia.

Legenda

O movimento de 2013 foi tão significativo para meu irmão decidiu tornar esse o tema central de sua tese de doutorado. Hoje, 5 anos depois, está com dificuldade para terminar a tese. Me disse que ainda não consegue encontrar "o fim da história".

Corta.

Um certo evento no dia 14/03, quatro horas antes da morte de Marielle Franco

O convite do evento

Vi no facebook dele esse evento do dia 14 e falei “vai lá, leva um gravador e depois transforma em texto e termina logo a tese!”.  E aí ele aproveitou o gancho e pediu pra eu estar presente. Ele nunca me pede nada, e senti que seria importante ir. Meu namorado pediu pra não ir de bicicleta (moro pertíssimo da Cinelândia) e tomar cuidado, ir informando do que ia acontecendo.  

Cheguei no horário. Contando comigo, meu irmão, a namorada dele e uma outra amiga, formávamos um grupo de quase 10 pessoas.

O restaurante amarelinho emprestou duas mesas para eles apoiarem o projetor.  A banca de jornal permitiu que ligassem a extensão de energia. O pipoqueiro e o vendedor de cerveja pararam na frente pois viram que ali tinha um público em potencial. As pessoas foram chegando, comprando suas cervejas, se abraçando e esperando para começar, já que o telão estava montado e o cabo de áudio esquecido foi comprado.

Os bastidores, pouco antes de exibirem o documentário

A jornalista produtora (de vestido azul) abriu os trabalhos informando que este documentário está na fila para ser passado há 8 meses, e desconfiam que algum tipo de censura está acontecendo pois ninguém entendeu porque não foi ao ar ainda.

O documentário é chocante. E para mim foi pessoalmente vergonhoso, pois me fez questionar “onde estava há 5 anos atrás?”. Então me lembrei do dia da pizza no condomínio, com a TV sem som passando imagens das passeatas ao fundo.  

Teaser do documentário

Tem um momento no qual o documentário mostra a imagem de uma pessoa que decide lindamente sentar-se em frente a um tanque numa manifestação em SP. A moça que filmava diz “meu, que lindo, olha lá o cara sentado na frente do tanque”, e aí logo em seguida ela grita “não acreditoooo, atiraram no cara, que injustiçaaa!!”.

Após o documentário (deveríamos ser já em umas 100 pessoas na escadaria) houve uma performance muito bonita.  

Uma senhora, vestida de preto e com a cara coberta por um pano escuro, pediu para que chegarmos perto e enviar energia positiva (como se se ela precisasse da nossa expressão para ter coragem para a performance).  Então pegou um batedor de bife de madeira e gritou ‘em caso de emergência quebre o vidro’.

Quando ela quebrou, caíram pendurados bonequinhos negros, bonequinhos brancos e corações. Ela explicou: “aqui estão representados os negros que lutaram, mas também os brancos que lutaram, nossa compaixão e nosso coração...” e continuou falando das coisas simbólicas que estavam dentro da caixa.

Um breve momento da performance

Apesar de curta, achei a performance muito significativa. 

A frase “em caso de emergência, quebre o vidro” quer dizer que, por alguma razão, aquelas pessoas que ocuparam as ruas 5 anos atrás guardaram novamente sua força em uma caixinha de cristal. Quem sabe para preservá-la.

Bati papo rapidamente com meu irmão sobre a conclusão de sua tese. Será que tamanha força de manifestação se dissipou? Será que o povo não consegue encontrar mais força em si próprio? É fácil assim dissipar essa energia com o tempo? Essa foi nossa conversa.

O deixei  no debate enquanto voltava para casa “sã e salva”.  E muito feliz em ter ido. Muito feliz pelo documentário, que me ofereceu uma pequena luz.

Eu não sou ativista. Não me considero materialista e não gosto de convencer ninguém de nada.

Gosto da troca, da conversa, e de pessoas que aspiram fazer o bem. Toda vez que penso “aonde esse mundo vai parar?”, minha resposta interna é: não consigo mudá-lo, mas consigo fazer diferença no âmbito à minha volta, com os mendigos da minha rua, com meus vizinhos, com meus alunos, com meus colegas de trabalho. 

Sempre tento colocar a pulga atrás na orelha das pessoas em relação ao que podemos ser e fazer de melhor. Mas quando se trata de política, tudo está tão longe e distante que me sinto incapaz. Só que depois do documentário, pensei “não estou sozinha”.  

E aquelas quase 100 pessoas na escadaria tinham uma coisa em comum, todo mundo ali tinha ‘uma cara muito boa!’. Cara boa de: cara de feliz, cara de pessoas com energia, cara de que eu queria ter ficado batendo papo e ser amiga de todo mundo.

Então acho que consegui me conectar com meu irmão e finalmente entender porque ele protesta. O admiro ainda mais por isso.

O dia seguinte

Pela manhã entrei no facebook e notei que sua foto de perfil do Felix era a de uma mulher, junto da mensagem “tá muito difícil dormir hoje”. Postada às duas da manhã.

Olha que significativo: 5 anos atrás houve um movimento gigantesco de protestos no Brasil.  

Foi feito um documentário que, após 5 anos, “é notícia velha, não é necessário resgatar aquela confusão”. E um grupo de pessoas criou um evento no face para ‘ver quem ia aparecer, ver se conseguimos formar um grupo a partir de hoje’.  

Após o documentário disse a ele “que coisa, talvez a conclusão da sua tese seja que o tempo dissipa nossa capacidade de mobilização mesmo, né?".

"O que fazer para reacender esse espírito?", dizia o convite do evento do facebook. Quatro horas após o fim da exibição do documentário, Marielle é assassinada. E vemos que o espírito estava apenas dormente, esperando ser aceso novamente.    

O tempo não dissipa tudo. Ele permite uma distância que nos ajuda “ligar os pontos” com mais facilidade. Ver a figura que está se formando.

O texto do convite do evento também dizia que  ‘pessoas e coletivos despertos ou contagiados pela intensidade do momento não se sentem contemplados pelos grupos que prevalecem’, e isso me chamou a atenção.  

Nunca tive um grupo com o qual tenha me identificado a ponto de dizer, "eles me representam". Mas tenho reconsiderado minha posição.

Tem feito cada vez mais sentido me importar com o outro, entendê-lo, lutar por ele e com ele. Meu irmão conhecia Marielle. Eu não a conhecia nem de nome, mas a admiro. 

Não é qualquer um que consegue, em vida e na morte, reacender o espírito de tantos outros.

Os convido, independente de sua posição política, de ser ou não ativista de algo, para seguirmos a conversa nos comentários. Que nosso papel como cidadãos e nossa capacidade de diálogo siga adiante, mais forte do que nunca.

Legenda

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publicado em 19 de Março de 2018, 15:32
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Lorena Jacobson Berzins

Acredito que toda auto-definição nos limita de algum modo. Sagitarina (diz muita coisa já), sabe que não pode mudar o mundo, mas ganha o dia quando consegue deixar o coração do outro mais leve.


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