"Meu luto constrangia as pessoas". Cara, como você lida com o luto?

Você já tentou fugir da experiência do luto dizendo que estava tudo bem e "vida que segue?" Já se recusou a pedir ajuda nesse momento de dor por medo do que poderiam pensar de você, homem?

 

O luto dos homens

O impacto de crescermos sem aprender a identificar, expressar e regular as nossas emoções, tendo assim um repertório emocional pequeno e confuso na vida adulta, faz com que a gente tenha poucas ferramentas para lidar com o luto. Nas nossas conversas não falamos sobre a morte ou sequer sabemos como, de fato, dar suporte a um amigo, a companheira, familiar ou conhecido que perdeu alguém. 

O texto a seguir foi escrito por Rafael Sette Câmara, autor do livro "Dos que vão morrer, aos mortos", no qual ele narra sobre a sua relação com o luto ao perder sua mãe:

"Dos que vão morrer, aos mortos..."

Minha mãe fazia o almoço quando o telefone começou a tocar. Ela atendeu, deixou as panelas no fogo e saiu de casa. Nunca mais voltou. O corpo dela foi encontrado em outra cidade, 36 horas depois. Isso tem 13 anos.

Foi naquele dia, um domingo, que entendi o luto. Eu tinha vinte e cinco anos e já havia perdido pessoas antes, mas nada poderia ter me preparado para viver o resto da vida sem mãe. Eu acho que o luto é como uma planta suculenta. Espalhado pelo sopro mais leve, capaz de brotar até na falha do rejunte dos azulejos e nutrido por uma gota d’água, logo ele toma conta do jardim. 

No caso da minha mãe, à dor da perda se somou o peso da dúvida. O que aconteceu? Foi suicídio? Foi assassinato? Quem telefonou para ela? Como ela foi parar em outra cidade? Por que ela morreu? 

Por um tempo, conseguir essas respostas virou uma obsessão, ainda mais quando eu percebi que o poder público não daria uma explicação definitiva. E o caso de minha mãe passa longe de ser o único: entre 2011 e 2021, o número exato é de 126.382. Sim, mais de cento e vinte e seis mil pessoas que morreram de forma violenta, mas sem que o Estado conseguisse explicar a causa, segundo dados do Atlas da Violência no Brasil. 

Em luto, eu tentei fugir

A morte mudou minha vida. A primeira consequência foi uma fuga, mas eu demorei anos para perceber que foi isso que eu fiz: sim, eu fugi. Na época eu trabalhava num veículo de comunicação em Belo Horizonte, minha cidade natal. Era a empresa que eu tinha sonhado em trabalhar por anos, mas, em meio ao luto, resolvi pedir demissão. 

Vendi meu carro, juntei minhas poucas economias e fui viajar pelo mundo e morar na Ásia. Eu nunca tinha pensado em fazer nada disso, mas dessa fuga saiu o 360meridianos, blog de viagem que fundei com duas amigas e que é minha principal fonte de renda até hoje - é por isso que todos os outros textos que publiquei no PdH são sobre viagem. 

Em luto, fui aprisionado pelo medo

Quando eu era criança, nunca ouvi aquela frase tradicional de criação masculina. Por saber que sim, meninos choram, passei anos com as lágrimas surgindo espontaneamente e sem vergonha. Hoje, se as lágrimas descem, elas são só de saudade. Há alguns anos, elas eram também de negação, raiva e pavor.

Eu sei que o luto é sempre múltiplo e que nunca perdemos uma pessoa só. Quando enterramos alguém que amamos, começamos também a perder pessoas que ainda vivem, ponteiros de um relógio que passam a andar e marcam a próxima notícia ruim. 

No luto pela partida da minha mãe, fiquei aprisionado pelo medo. Passei a ter pânico do telefone que toca e traz más notícias - em especial se a ligação chega à noite. 

Em luto, aprendi que falar sobre a morte é um constrangimento 

Queremos proibir a morte. Por isso, fazemos dela um tabu. Não demorei a perceber que meu luto constrangia as pessoas - e que falar sobre a morte de minha mãe quase sempre gerava uma série de silêncios, pessoas caladas ao redor de uma mesa e claramente desconfortáveis e doidas para que eu mudasse de assunto. E eu mudei. Alguns meses após a morte da minha mãe, parei de falar sobre isso. 

Só que isso não foi fácil. Quem diria que “mãe” é um assunto tão corriqueiro e difícil de ser evitado, né? 

— Você largou o emprego? O que sua mãe achou disso? 

— Sua mãe deve estar orgulhosa dessa conquista! 

— Sua mãe mora em Belo Horizonte? 

— Você vai passar o Natal com sua mãe? 

Quando era mesmo necessário contar sobre a morte da minha mãe para alguém, passei a dar respostas evasivas. Era mais fácil dizer que minha mãe tinha morrido num acidente de carro do que contar a versão real. Eu não tinha condições de preencher os silêncios e constrangimentos que nasciam de conversas assim. 

Resolvi transformar minha história mais triste em algo belo

Minha mãe queria ser escritora. Ela ensaiou isso algumas vezes e eu guardo até hoje as folhas de um original que ela deixou, um livro sobre meu avô materno, que morreu em 2006. 

A vida, tão cheia de frustrações, não permitiu que minha mãe realizasse o sonho dela. Em 2023, eu realizei o meu. É o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”, publicado pela Editora Urutau. O livro fala de luto, amadurecimento e da passagem do tempo. É uma ficção, mas baseada em minha própria vida. É um livro sobre minha mãe. 

Rafael Sette Câmara - autor do livro “Dos que vão morrer, aos mortos”

Ao transformar minha história mais triste em algo belo, este livro virou minha libertação e meu exorcismo. A literatura criou uma onda de carinho e cuidado. Desde a publicação do livro, recebi centenas de mensagens de pessoas que também passaram pelo luto. Gente que perdeu pai, mãe, irmão, irmã, filho, marido ou esposa. Gente que ainda não perdeu, mas já começou a sentir o luto, ao notar os sinais do passar do tempo. Enfim, pessoas que querem ler, falar e conversar sobre luto - e que se encontram nas dores dos outros.

De minha mãe herdei um baú cheio de sonhos, dores, fotografias, utensílios de cozinha e inúmeros bilhetinhos e recados. Utilizei algumas frases e pensamentos dela para escrever parte do livro. Por isso, sinto que realizei o sonho dela, que agora também é escritora.

A publicação do meu livro veio num momento fundamental e de muita dor. Quando recebi o “sim” da editora, meu avô paterno estava numa UTI. A pré-venda começou no dia em que ele foi enterrado. Ele foi uma das pessoas mais importantes da minha vida; me ligava várias vezes por dia e eu passei os últimos anos cuidando dele. Eu cheguei a contar sobre a publicação do livro para meu avô. Lúcido, ele já não conseguia falar, por conta de uma traqueostomia. Mas soube da minha conquista e escutou atento quando eu li um capítulo do livro - um trecho feliz e de superação. 

Publicar o livro foi uma grande conquista e ocorreu no momento certo, me ajudando a suportar outra dor. Apesar disso, eu estava aterrorizado com a ideia de publicá-lo. Eu tinha medo do que minha família ia pensar, do que meus amigos diriam, de quais comentários eu iria receber - enfim, eu tinha medo de ser lido

Quatro meses depois e com milhares de pessoas conhecendo minha história, acho que já posso dizer que todo aquele medo era desnecessário. 

Ninguém vive impunemente numa cidade

A frase acima é do escritor Autran Dourado. Somos pequenas partes dos lugares onde moramos, mas a cidade é um pedaço gigante da gente. Belo Horizonte está em mim. Está na minha maneira de falar, no que eu gosto de comer, no time que eu torço e nos meus hábitos. 

Belo Horizonte também era parte de minha mãe. É por isso que resolvi escrever uma história que não apenas se passa em BH: a cidade é personagem da obra. Os personagens andam, vivem, crescem e sofrem nas ruas da minha cidade. “Dos que vão morrer, aos mortos” é uma frase importante para Belo Horizonte. Essa inscrição está no pórtico do cemitério do Bonfim, o mais antigo da capital mineira. O lugar onde minha mãe e meu avô dormem profundamente. 

Quer ler meu livro? Você pode comprar seu exemplar no site da Editora ou em marketplaces - inclusive, o livro já bateu um recorde e virou a maior pré-venda da história da editora! Mas, se possível, peço que compre diretamente comigo: basta me chamar pelo Instagram ou no Twitter

O preço é o mesmo, a vantagem é que eu mando com dedicatória. Além disso, a fatia de direitos autorais é bem maior para vendas que eu mesmo faço, então essa é uma forma de me ajudar a seguir escrevendo. Pois é, descobri que tenho outras histórias para contar. 


publicado em 22 de Maio de 2024, 17:55
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Rafael Sette Câmara

Virou mochileiro ao mesmo tempo em que se tornou jornalista. Desde então, se acostumou a largar tudo para trás - inclusive empregos - e cair na estrada. Ele escreve sobre viagens no 360meridianos, mas pode ser encontrado também no Facebook e no Instagram.


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