O mundo por trás das nossas lentes

Eu uso óculos e usei óculos a vida toda. Tenho 7 graus de miopia e 3 de astigmatismo, além de algum desvio na visão que eu não sou capaz de explicar bem. O mundo que eu vejo sem óculos é todo borrado, desfocado, pálido e desfigurado. Ele sempre foi assim meio modernista. À noite as luzes são grandes bolas coloridas cheias de raios de luz dentro, difícil de explicar. É horrível, parece uma bad trip de alguma droga bizarra.

O mundo é feio para mim e sempre foi.

Eu era bem novinha quando descobri que precisava de óculos. Quando usei óculos pela primeira vez foi como se eu estivesse vendo colorido um filme que sempre foi preto e branco. E como era lindo esse mundo novo! O óculos me deixava feia, mas eu precisava dele para enxergar melhor a vida.

"É pra te ver melhor..."

O mundo que eu vejo de verdade sempre foi por trás das minhas lentes dos óculos, esses pedacinhos mágicos de vidro que deixam tudo mais nítido e colorido. Você já experimentou ver uma paisagem por trás de uma janela e depois abri-la? As cores são diferentes. Totalmente diferentes. Com os óculos eu sei que eu não vejo o mundo como ele é, mas sim uma edição dele, com um enquadramento novo, com um filtro de cor. É como se fosse aquela edição que é feita depois de todas as cenas de um filme terem sido gravadas.

Sair sem óculos é algo que eu sequer consigo conceber. Eu durmo com eles, tomo banho com eles, transo com eles. Quase literalmente posso dizer que não vivo sem eles. Sem os óculos eu me sinto nua – e não é uma nudez natural, é um sentimento de nudez como naquele típico pesadelo de se descobrir sem roupa em um ambiente público.

Até que um dia eu resolvi usar lentes de contato. E a sensação foi... absurdamente ruim. Tão ruim quanto não enxergar nada.

O mundo todo que eu via por trás das lentes, por trás da minha armação, era o mundo que eu conhecia. Sem o enquadramento dos óculos, tudo parecia grande demais e eu não sabia mais para onde olhar, não sabia qual era o meu foco. Era como se antes eu visse o mundo tamanho 3x4 e repentinamente ele virou uma foto panorâmica. A sensação me acompanhou por todo tempo que usei lentes. Passei a me achar feia sem os óculos, e costumava dizer que não sabia mais me maquiar. Sentia que ficava com aquele olhar de míope, meio perdido, meio estrábico. Na verdade era eu que não sabia ver o mundo como ele realmente era – ou perto disso. Eu havia me acostumado a ver o mundo através de um quadrado e não sabia mais enxergar fora das bordas. E desisti das lentes de contato.

Eu precisava da minha tela, do meu quadradinho. Da limitação.

SmartÓculos

Você pode estar vendo uma das paisagens mais maravilhosas e inebriantes que já viu. Sentado ali na areia macia e aconchegante, o pôr-do-sol começa, lindo, lindo, e a primeira coisa que você faz é sacar o smartphone, tirar uma foto, colocar um filtro do Instagram e compartilhar em todas as suas redes. Esse é o seu quadradinho, essa é a sua tela e o seu mundinho limitado, como é o meu com os óculos.

Em qualquer lugar que você vá, não importa quão legal seja a festa ou quão deliciosa seja a comida ou quão maravilhosa seja a companhia, sempre tem alguém que vai tirar uma foto, comentar, ficar tuitando sobre. Eu já fiz isso, você provavelmente já fez também. Todas essas novas tecnologias, aplicativos e gadgets dão a sensação que tudo na vida precisa ser compartilhado, filtrado, editado.

Não basta ver, temos que fotografar. Não basta estar lá, temos que dizer que estamos lá. Não basta assistir a um show, temos que filmar e jogar no YouTube. Não basta amar, temos que atualizar o status de relacionamento. E essa vida de aparências e anúncios faz com que o mundo todo que você vê seja uma luz de tela em um dispositivo eletrônico. A vida por si só é tão bonita... ela não precisa de filtros, nem cortes, nem edições. Você não precisa dirigir o filme da sua vida, só precisa atuar com a sua melhor técnica de improviso.

Não precisa.

Como diria o filósofo de comunicação Marshal Mcluhan, todos esses dispositivos eletrônicos e tecnologias novas são extensões de nós mesmos. A câmera digital é a extensão dos nossos olhos, a filmadora é a extensão da nossa memória visual, o smartphone é a extensão da nossa voz ou do nosso cérebro. Mas precisamos mesmo de todas essas extensões e braços mecânicos? Será que nossos olhos não são capazes de registrar adequadamente o mundo que vemos? Será que precisamos de um smartphone para contar para as nossas centenas seguidores no Twitter algo que talvez pudéssemos contar muito melhor para uma ou duas ou três pessoas tomando um café?

As tecnologias nos dão poderes e possibilidades que antes eram apenas imaginadas na ficção científica. Mas também atrofiam, assim como meus óculos também estão atrofiando meus olhos. Já parou para pensar há quanto tempo você não decora um número de telefone simplesmente porque tem a todo momento sua agenda do celular com você? Ou ainda muito pior: há quanto tempo você não conhece alguém puxando papo na rua em vez de sair adicionando nas redes e pesquisando todas as informações da vida da pessoa?

Estamos atrofiando as nossas reais capacidades, nossa memória, nosso olhar, nossa capacidade de observar, porque a tecnologia parece fazer melhor por nós, parece deixar tudo mais bonito, parece filtrar a parte feia da vida, parece se limitar a tudo aquilo que é bom, que devemos ver. Queremos ser o Homem Aranha, quando na verdade precisaríamos passar mais tempo sendo Peter Parker.

Sair de casa sem os nossos super poderes, sem o smartphone, sem os amigos no bolso, sem os milhões de aplicativos úteis, dá uma sensação muito parecida com a que eu tenho quando fico sem óculos. Parece que falta algo que você precisa, do qual você depende; você se sente correndo pelado no corredor do ensino médio logo quando a sua paixonite te nota.

Da mesma forma que o mundo que eu vejo sem óculos é um mundo que eu não consigo entender porque eu me condicionei a ver limitado, o mundo por trás das telas também é um mundo que aos poucos estamos deixando de entender porque gostamos da limitação, da luz das telas, da edição. Aos poucos estamos ficando cegos para ver a beleza. E há tanta beleza no mundo.

Vamos ficar juntos e apenas respirar?


publicado em 15 de Dezembro de 2011, 11:07
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Jana Santos

Jana é curitibana do tipo que fala "vina" e tem medo de conversar com estranhos. Ruiva, publicitária e jogadora de Rock Band no modo expert. Já foi vocalista de metal, aspirante a cantora de ópera e hoje é uma exímia musicista de chuveiro. Autora do Por que eu sou solteira. Twitter: @janadehavaiana


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