Semana de peão: o que aprendemos trabalhando em uma fábrica

“O cara tá trabalhando feito peão de fábrica... olha só a situação dele”.

O termo “peão” tem muitas definições: serve como o soldado da infantaria, o bom cavaleiro que trabalha como empregado no campo ou na roça, recebendo seus vencimentos diários.

Usa-se “peão” também para designar a classe mais baixa dos trabalhadores de algum lugar e, no xadrez, chama-se peão a peça que se sacrifica no jogo para realizar uma boa movimentação de ataque, ou simplesmente para proteger seu rei. Encurtando história longa, peão veio ao mundo pra ralar.

O peão é sempre o primeiro a se foder. No xadrez

Houve um breve momento da minha curta vida em que eu estava passando por uma situação não muito agradável no papel de recém-formado e desempregado. Fiquei sabendo, nem lembro como, de uma oportunidade para ingressar em uma fábrica de celulares. Era uma chance de pagar as contas e passar por uma experiência totalmente diferente. É assim que começo a contar como fui peão por uma semana.

Individual e intelectualmente, o peão não é fundamental para o andamento de determinado trabalho. Não vai trabalhar de um jeito característico e nem deixar a sua marca no ofício corriqueiro. Mas, em um grupo de “iguais”, ele se torna crucial para o andamento de qualquer corporação – um pode não fazer tanta diferença, mas dez sim. Para quem adora exercer a criatividade no ambiente em que vive, esse tipo de função pode ser massacrante. Foi o meu caso.

Já haviam me dito que, no geral, um peão não se mata de trabalhar, ganha um salário que paga as contas e encara a função com grande facilidade. Mas nada teria tanta graça se só houvesse pontos positivos.

Os cuidado para os recém-chegados

Tudo começou com a entrega do currículo. O candidato é informado da prova que deverá realizar, teste esse que toma algumas horas e, até então, serve para mostrar que o processo para se tornar um funcionário temporário é tranquilo. Claro que o teste estava só começando.

No final da semana, a história começa a mostrar que pontualidade se cobra antes mesmo de oficialmente entrar na empresa (qual chefe de fábrica quer ver seus funcionários batendo o ponto depois do horário?).

Fui convocado para um exame admissional, sendo informado que deveria chegar até às 11h no local. Os últimos candidatos (eu estava entre eles) saíram de lá depois das três da tarde. Nesse momento, parecia que o pior já havia passado. Isso até chegar à empresa de recursos humanos contratada para lidar com o processo seletivo e a admissão dos funcionários:

“Hmm, ótimo Felipe. O exame tá aqui, os documentos também. Agora você precisa ir correndo nesse outro endereço aqui para assinar o contrato. Precisa estar lá até às 16 horas.”

Cheguei bem entes e ainda me restou ficar sentado aguardando as instruções. Começaram quase às cinco. Terminaram às sete.

O primeiro dia de trabalho foi denominado “dia de ambientação”. Ninguém pôs a mão na massa. Todos os novos trabalhadores passaram quase doze horas sentados, ouvindo funcionários da empresa explicando o funcionamento da fábrica, os procedimentos de segurança, de ética e, mais importante, o zelo que eles têm pelo funcionário – os vídeos contextualizavam tudo mostrando trabalhadores contentes, revezando funções para não cansar as pernas e os braços. Tudo parecia melhorar após dois dias do que poderia ser chamado teste de resistência.

"Podexá, amigo. mais dois dias aí e a gente prova o teu potencial e te contrata!"

Mas, ah... se a vida fosse um vídeo corporativo...

Ainda no primeiro dia, os novos peões sentiram aquele beijo amargo da realidade: não havia revezamento de funções, como havia sido apresentado, pelo menos naquela semana. Na verdade, mal havia cadeiras para os novos funcionários. A vida em uma fábrica já começa com os castigos invisíveis.

A solução encontrada para a falta de cadeiras era chegar alguns minutos antes na ala de produção e roubar uma cadeira. O segundo a chegar fazia o mesmo, até que o último a chegar teria que passar o dia todo trabalhando em pé, sustentando nas costas o fardo de seu atraso, enquanto revezava o peso do corpo nas pernas.

Que tipo de funcionário eles querem?

O dia da ambientação causou certo medo em alguns. Os vídeos mostravam os cuidados da empresa para com os funcionários, mas mostravam principalmente cuidados para que o funcionário não ferre toda a linha de produção. Segundo um dos responsáveis pelas “boas-vindas”:

"Funcionário bom é aquele que tem determinação. Que trabalha concentrado, não fala, e que vem fazer hora extra. Funcionário competente é aquele que segue todos os procedimentos apontados por nós, visando segurança e bom andamento do setor. Analisamos tudo isso na hora de prolongar a estadia da pessoa na fábrica."

Fazer uma cara orgulhosa, de quem absorveu cada intuito do discurso, parece ser o consenso comum. Dezenas de expressões idênticas que misturam força de vontade e pró-atividade, evidenciando que entenderam bem o recado: o trabalho é moleza, mas a postura necessária é a de um robô.

Logo após a retórica fervorosa, os guias mostraram alguns equipamentos que os funcionários usam para evitar descargas eletrostáticas e, em seguida, outro vídeo para mostrar o que pode acontecer se não houver o devido cuidado: uma mulher foi abastecer o carro em um posto de gasolina, e, ao pegar a mangueira de combustível e encostar a mão em seu veículo, se viu envolta em labaredas. Tenho certeza que o meu pensamento foi o mesmo de todo o restante. “Fodeu”. Após o drama que, certamente funcionou, explicaram que a precaução é para que não haja descarga do funcionário no celular, fator que poderia queimar o sistema do produto.

De peão a garanhão

E você aí, achando que mulher gata não sabe por a mão na massa

Finalmente eu pude entrar no chão da fábrica para começar meu trabalho. A fauna e flora ali é muito mais variada do que eu esperava. Há gente de todo tipo, de diferentes classes sociais e de todos os sexos. Sim, tem muita mulher lá. Independente do local por onde passa, vai haver uma quantidade razoável de mulheres, principalmente exercendo funções mais delicadas que os ogros não conseguem executar eximiamente.

Engana-se aquele que pensa que só tem mulher feia lá. Desde o dia de ambientação os machos ficaram impressionados. O pensamento “porra, se for assim lá dentro eu to feliz” vigorava. E assim foi. Era muito comum trabalhar ao lado de beldades ali, fazendo o mesmo trabalho de peão que o seu. Só que, claro, você presta muito menos atenção no que está fazendo.

O problema é o excesso de procura por elas. O ego cresce e algumas não dão nem bom-dia. Aí resta elaborar sua estratégia para uma aproximação. Tentei um “quer brincar com minha parafusadeira lá em casa?”, mas não funcionou.

Os veteranos advertem: o setor de produção é uma putaria. Qualquer um consegue o que quiser ali – com a condição de evitar fazê-lo na fábrica. Não precisa ser chefe para garantir a caça, nem ser um galã que faz as garotas babarem. A conversa cafajeste funciona em algum momento. Se não com a primeira, a segunda. Se não, vai acontecer com a terceira.

Como funciona o trabalho em equipe?

Sem planejamento, aos poucos, os funcionários eram garimpados para pegar um posto de trabalho. Em quinze minutos havia uma fileira de novos funcionários em pé. Fim. Esse foi o primeiro dia de trabalho, exceto pelos poucos minutos que os novatos invadiram outra linha para aprender algo. Fora isso, mais de sete horas em pé. Todos.

Não houve qualquer preparo para receber as novas turmas. Jogaram quase todos em uma linha desativada, basicamente sem equipamentos. O setor mais desfalcado era o da parafusadeira. Fui parar lá.

Os jovens parafusadores receberam instruções de trabalho e disseram "moleza". Não havia como existir algum stress ali. Afinal, era só receber o aparelho, dar aquela parafusada marota, e correr pro abraço, digo, para a próxima peça. Um procedimento quase imbecil, feito por muitas pessoas. "Mel na chupeta".

Ah... a tranquilidade da ala das parafusadeiras...

O problema surgiu quando a linha foi ativada. Esteira em movimento, os celulares começaram a aparecer lá na frente, longe da parafusadeira. Era só esperar a chegada dos alvos. Tudo ia bem aos primeiros minutos, até perdermos alguns soldados. Algumas máquinas estavam desconfiguradas. A minha inclusive.

Supervisores chamados, problemas reportados à área de reparos. Era só esperar a chegada deles. "Só que demora". O jeito seria comicamente aguardar sentado, mas tragicamente a maioria ali não dispunha de cadeiras. A chegada de um deles parecia representar a salvação dos parafusadores... até ele falar "é, deu merda. Vou ter que trocar".

Enquanto isso, o setor da parafusadeira começou a complicar o resto da linha de produção. Por quê? As linhas são feitas com números pensados de funcionários em cada tarefa. Dessa maneira, todos os celulares que entram na esteira devem seguir o trajeto sem que haja qualquer acúmulo. E o que acontece se metade de um setor pára de funcionar? Acúmulo. Ou, como dizem, "bolha". Consequentemente, a produção dos setores seguintes cai. Aí é só esperar a coisa toda normalizar, não? Não, claro que não.

Os supervisores viram urubus à nossa volta. Os parafusadores eram, naquele momento, soldados abatidos durante o combate. Alguns urubus são mais filhos da puta e cobram um trabalho mais rápido, independente de tudo virar merda por causa de equipamentos ruins que não são de controle da "peãozada". A situação chegou ao ponto de um supervisor me dizer "tenta trabalhar com a máquina assim mesmo". Em minutos, me transformei em uma máquina de destruir celulares. A pane na área fez a missão falhar nesse dia. A produção ficou abaixo do esperado.

Mas, teoricamente, tudo deveria melhorar no dia seguinte: a equipe de parafusadores cresceria, e os equipamentos funcionariam bem. E, de fato, a equipe cresceu e os equipamentos funcionaram. Mas mesmo assim houve uma bolha gigante no setor. Porra, por quê?

Trabalho em equipe, ou a falta dela. A primeira equipe – eu e mais dois – fazia um bom trabalho em grupo. Um deles era nosso "cirurgião", pois os equipamentos dele funcionavam com uma configuração diferente e ele podia reparar alguns parafusos mal colocados. Com isso, o trabalho “tempomodérnico” dele não era tão intenso. Ele parava tudo para fazer as cirurgias. Para compensar a diminuição na velocidade dele, os outros dois trabalhavam mais rápido. Com equipamentos funcionando bem, dificilmente havia problemas nos celulares. Da nossa parte.

Isso aqui é um trabalho em equipe. O senhor de terno é um supervisor. Tá bom assim?

Dos outros três, não. Tirando um homem de mais idade, que se empenhava em manter um ritmo legal, tínhamos ali dois dos famosos "preguiçosos". Um não parava de falar (no geral, não há problema em conversar no trabalho, contanto que isso não prejudique a produtividade a ponto de seu trabalho ficar mais lento que a média esperada) e deixava o posto quando achava conveniente (a orientação era sair apenas com o consentimento dos supervisores, que geralmente tomavam o posto para manter o ritmo da linha). A outra (uma garota) trabalhava lentamente a ponto de virar para dizer que estava quase dormindo. Muito reconfortante, vendo que os outros estavam parafusando freneticamente para manter o funcionamento da linha.

Com essa produção em nível reduzido, o grupo todo ouvia merda. Foi bem estressante ouvir alguém gritando "parafusadeira tá com x celulares atrasados! Corre! corre!" a cada dez minutos. No chão de fábrica, o "todo" senta na mandioca pela "parte". O trabalho chegou a ser doloroso de tão rápido, numa tentativa de o grupo alcançar a meta de produção. Vontade de xingar não faltava, mas peão não tem muito o que fazer nessa hora, a não ser abaixar a cabeça e continuar o trabalho – claro, se quiser continuar empregado.

É nessas horas que entendemos a importância do trabalho em equipe.

Como funciona a hierarquia

A administração das fábricas está muito mais esperta atualmente. Sabem que devem deixar pessoas de confiança por todos os lados, a fim de evitar motins geralmente causados pela prática da "rádio-peão", principal meio de comunicação entre os níveis baixos da empresa que, a qualquer hora, pode render qualquer assunto. A fofoca lá de baixo chega rapidinho no topo da pirâmide.

Não havia um local sequer sem um supervisor. Eles estavam em todas as partes, cada qual agindo à sua maneira. Uns passavam olhando, outros nem ligavam. Havia os que paravam perto sem que você percebesse para ver quanta merda estava sendo feita, e os que cutucavam para dar alguma dica. Nos momentos mais tranquilos, a situação era saudável. Nada de chefes gritando e espancando funcionários displicentes – que eu tenha visto.

Nos momentos estressantes, no entanto, a situação era outra. Quando a bolha começou a crescer no setor da parafusadeira eu vi exatamente Tempos Modernos – foi o momento em que eu vi quase todos encenando o filme, de forma bem involuntária.

Link YouTube | O vídeo fala por si só

Ninguém parava de trabalhar e nem sempre as permissões para banheiro/água eram concedidas. Nesses momentos, os supervisores são condicionados a reprovar quaisquer pedidos. A resposta de praxe é "o setor tá com uma bolha muito grande. Vai piorar se você sair". Algo do tipo "pra nós, o tempo do seu mijo vale ouro".

No geral, os supervisores são bem gente fina. Certamente escolhem a dedo as pessoas mais “humanas” para ficar nessa parte, a fim de manter um bom relacionamento entre funcionário e chefia. Mas a rádio-peão não perdoa.

Os boatos sempre correm, por mais que as administrações evitem isso. Invariavelmente o nome dessas pessoas acabam em lugares inusitados, como as portas do banheiro. Fiquei até triste ao saber que uma das supervisoras, que era uma gracinha e bem simpática, também teve o nome gravado no banheiro, acompanhado das devidas pornografias. No final das contas, não dá para botar a mão no fogo por ela. Vai saber se ela não fez jus aos boatos espalhados pelos veteranos?

A despedida

Sábado foi o último dia de trabalho. Dia de horas extras e expediente reduzido. Enquanto deixava o ofício de lado, via as pessoas do turno seguinte entrando e já pulando em seus postos de trabalho. Fiquei imaginando se elas teriam esses pensamentos que passaram pela minha cabeça no meu pouco tempo de trabalho por lá.

Concluí que o fator “Tempos Modernos” é subjetivo.

Você é, sim, uma das centenas de pessoas que veste um uniforme da mesma cor. Sua função é a mesma de várias dezenas delas. Se você faltar, ninguém vai falar que a linha de produção não pode continuar sem a sua presença. Dependendo da situação do seu setor de produção, você não pode nem sair para beber água. Às vezes será deixado de lado, com a tortura de ficar em pé em uma função que é mais eficiente se feita com o funcionário sentado. Você vai chegar em casa cheio de dores e falar “dia de merda”.

No entanto, o funcionário é bem tratado lá. Há supervisores o suficiente para que cada trabalhador tenha o nome decorado e possa receber o devido suporte, caso necessário. Não há chibatadas pelo erro (depende do erro, claro) e é muito fácil terminar o expediente e sair sorridente com os novos amigos que você fez. Para alguns, dá para levar em consideração ainda o que é dito na rádio-peão no tocante a se dar bem com as garotas por lá.

Mas sei que nem todo lugar é assim. Alguns ali me relataram experiências em empresas mais rigorosas. Deve haver muitos lugares que dão tratamento melhor ou pior do que lá. E por isso é bastante válido haver uma troca de experiências nisso – tanto para o funcionário quanto para o administrador. Aguardo relatos da vida de peão dos leitores.


publicado em 13 de Agosto de 2011, 05:08
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Felipe Guerra

Jornalista, músico, fotógrafo e aspirante a professor. Já viu enchente levar tudo o que tinha em casa (menos os gatos e a mãe) e morou em seminário mesmo sendo agnóstico.


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