Blues: A Violência Sobrenatural de Skip James

Skip James (1902 – 1969) foi um cantor, guitarrista, pianista e escritor de canções de blues estadunidense

No início dos anos 60, aconteceu o impensável: o blues voltou à moda. Nas grandes cidades, audiências formadas por jovens brancos redescobriram a música feita décadas antes no Sul dos Estados Unidos e passaram a cultuar os antigos blueseiros como verdadeiros heróis. Para os novos fãs de blues, quanto mais crua e visceral a música fosse, maior respeito eles conferiam aos seus autores.

Não demorou muito até que começassem a organizar viagens ao Sul dos Estados Unidos em busca de discos. Foi uma jogada de gênio. Batiam de porta em porta, perguntando se as pessoas possuíam discos antigos de música e oferecendo-se para comprá-los, pagando em dinheiro vivo — algo que normalmente seus proprietários aceitavam imediatamente. Muitos clássicos foram redescobertos — e salvos do esquecimento — desta forma.

Mas algumas dessas caravanas tinham um objetivo mais ambicioso: queriam encontrar não os discos, mas sim os homens por trás das canções. Sabia-se que grandes nomes do blues como Robert Johnson e Charlie Patton estavam mortos e enterrados há muito tempo. Mas outros certamente ainda poderiam estar vivos.

A teoria se mostrou verdadeira quando Mississipi John Hurt foi localizado. Com 72 anos, não tocava mais e passava os dias cuidando do rebanho do proprietário da fazenda onde morava. Levado para a cidade grande, teve uma segunda carreira e se tornou astro no circuito de pequenos cafés, admirado como um deus por jovens mais novos que muitas de suas canções. E assim a moda explodiu de vez. Bukka White apareceu em Memphis, Sleepy John Estes foi encontrado em Brownsville.

Mas não havia sinal de Skip James. Ninguém no Mississipi sequer tinha ouvido falar de um blueseiro com esse nome, e todas as investigações terminavam em becos sem saída. Para todos os efeitos, nunca havia existido um blueseiro com o nome de Skip James.

A única foto de Skip James antes do seu desaparecimento do cenário musical

Entretanto, alguns pequenos discos com o nome de Skip James encontrados alguns anos antes mostravam duas coisas. A primeira é que sim, ele havia existido. Segundo, e mais importante, sua música era diferente de tudo o que os novos fãs de blues conheciam. Sua guitarra era afinada e dedilhada de uma forma única, o que dava muito mais profundidade à música.

E sua voz…

Bem, Skip James cantava usando uma espécie de falsete, que resultava num tom quase sobrenatural.

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Esta foi a gravação mais conhecida de Skip James. Se o som remetia ao sobrenatural, a letra não ficava atrás. Narrando um triângulo amoroso entre o blueseiro, seu amigo e uma mulher — a letra diz que ele roubou a mulher do amigo mas o sujeito a roubou de volta — a canção começa como um blues “tradicional”, maldizendo a vida, a solidão e a má sorte. Ao falar da mulher, outras canções teriam falado sobre como ela não tem caráter, ou implorado para que ela voltasse.

James segue um caminho totalmente diferente e, em uma estrofe, deixa clara a sua explicação para o comportamento da mulher:

“Minha garota, ela não bebe uísque
Minha garota, ela não bebe uísque
E eu sei que ela não é louca por vinho.
Não foi ninguém senão o próprio demônio
Que mudou a cabeça da minha garota.”

(Skip James — Devil Got My Woman)

O diabo aqui é uma metáfora para a tentação? Ou é como ele se refere ao amigo? Ou ainda ele estava falando de possessão demoníaca? Já li análises da letra feitas por diversos pesquisadores, que nunca chegaram a um consenso sobre o sentido da letra.

E é justamente por isso que a música reflete bem a personalidade de Skip James, contraditória em diversos aspectos. Como seu pai era um pastor, James era extremamente religioso… Aliás, o termo exato não seria “religioso”, já que ele não parecia se importar muito com a igreja, mas sim “temente a Deus”. Por outro lado, tinha um comportamento instável e não pensava duas vezes antes de apelar para a violência, de preferência usando a pistola Colt que carregava na cintura. “Eu nunca puxei minha arma sem a intenção de usá-la”, disse, certa vez.

Por outro lado, fica muito mais fácil entender a violência do comportamento de Skip James — e, por consequência, das suas músicas — olhando para o ambiente onde viveu. Além do fato evidente de que estamos falando de um negro vivendo no Sul dos Estados Unidos no início do século 20, a música nunca foi sua principal ocupação. Assim, ele dividia seu tempo entre tocar o violão e outras atividades, nem todas exatamente honestas. Trabalhou como operário e com dinamite, mas também se sustentou como jogador, produzindo bebida ilegal e até mesmo como gigolô.

E esta violência é um ponto chave em inúmeras canções de Skip James. Um dos seus maiores sucessos foi 22–20 Blues. Assim como diversos blues da época, é uma canção cujo título faz referência a uma arma — e que teria inspirado Robert Johnson na canção 32–20 Blues. Sem papas na língua, James afirma que vai partir a mulher em duas com sua arma de fogo. Para ficar ainda mais claro, anuncia que nem todos os médicos do mundo vão poder ajudá-la.

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Sim, você não ouviu errado. A canção não tem violão, apenas piano. Enquanto muitos blueseiros que tocavam violão sabiam tocar gaita, James foi um dos únicos blueseiros — se não o único — que tocava violão e piano. E não estamos falando de um sujeito que simplesmente sabia como tocar o piano, mas de um grande pianista. Se você escutar com cuidado, verá que entre cada verso cantado ele toca uma frase diferente, o que resulta numa variedade de sons, detalhes e nuances que não se encontra em qualquer lugar.

Entretanto, seu principal instrumento era o violão, e foi com ele que gravou sua obra-prima. Apesar de Devil Got my Woman ser muito mais conhecida, Hard Time Killing Floor é sua grande canção — e eu coloco entre as melhores músicas que ouvi, pensando não apenas em blues mas em toda a minha vida.

É uma música que trata da Grande Depressão, o que fica claro no verso “as pessoas estão vagando de porta em porta, e não encontram o paraíso em lugar algum”. Aos poucos, descobrimos que o cantor está trabalhando em um “killing floor”, gíria da época para os abatedouros (trabalhar num local desses era visto quase como um subemprego, então não é de se espantar que a maior parte dos funcionários fossem negros). Junte isso ao tom melancólico da canção e à voz sobrenatural de James, e o resultado é uma canção impressionante — amarga, dolorida, mas ainda assim com um pouco de esperança.

Se eu conseguir me erguer
Para fora desse abatedouro
Eu nunca mais vou descer
Tão baixo novamente.

(Skip James — Hard Time Killing Floor)

Entretanto, o tom levemente otimista da canção não se concretizou, ao menos na vida de Skip James. Se hoje essas canções são veneradas como algumas das mais importantes e influentes da história do blues, na época em que foram lançadas venderam muito pouco, justamente por causa da Depressão. Assim, James abandonou a música e passou a procurar outras formas de sobreviver. Chegou a ser diretor do coral na igreja de seu pai e até mesmo se tornou pregador, mas nada além disso se sabia, pois pouco depois desapareceu no Mississipi, logo caindo no esquecimento.

Mas os anos 60 chegaram junto com três jovens que percorriam o Mississipi atrás da lenda. A viagem durou semanas e deu os primeiros frutos somente quando um adolescente — que nunca tinha ouvido falar de Skip James — disse que estava certa vez em uma barbearia e viu um negro velho, que aparentemente alcoolizado, falava sobre a viagem que havia feito para o Norte, nos anos 30 para gravar suas canções de blues. Os três foram até o local e se certificaram que o sujeito era, realmente, Skip James. Mas também descobriram onde ele podia ser encontrado: no hospital.

Nehemiah James estava internado por causa de um tumor no pênis. Os médicos, que não faziam ideia de que seu paciente era venerado por fãs de blues, tentavam tratar seu câncer, enquanto James preferia o seu diagnóstico, que girava em torno de uma suposta maldição lançada por uma mulher ciumenta.

Vivia com a esposa e não fazia música há anos. Na verdade, nem mesmo tinha um violão, algo que foi prontamente arranjado ainda no hospital. Enquanto brincava com o instrumento que não segurava há anos, sentou-se na cama e compôs uma canção sobre sua situação, Sick Bed Blues, em poucos minutos, na frente de todos.

Os três jovens — todos eles se tornariam músicos e um deles, Henry Vestine, faria parte do Canned Heat — pagaram sua conta no hospital, quitaram suas dívidas com o proprietário da casa onde morava e rumaram para o Norte, onde a carreira de Skip James ganharia um novo recomeço, a exemplo do que havia acontecido com Mississipi John Hurt. Outro monstro do blues, Son House foi localizado quase ao mesmo tempo que Skip James, fazendo com que as duas histórias explodissem na mídia).

Son House, Skip James e Mississipi John Hurt: três lendas do blues redescobertas nos anos 60

Mas o sucesso parecia se recusar a abraçar Skip James enquanto ele estivesse vivo. Lançou diversos discos e se apresentou em festivais, incluindo o famoso Newport, sua primeira apresentação pública em mais de trinta anos. Porém, suas canções pareciam ser difíceis para o público, que preferia canções mais alegres, até mesmo festivas, no estilo de Mississipi John Hurt e pareceu deixar um pouco de lado as canções de Skip James, sombrias e profundas (e, em alguns casos, assustadoras) demais.

Isso não impediu que ele lançasse diversos discos — além de uma reedição das suas gravações dos anos 30 — mas nunca obtendo um sucesso digno do seu talento. Uma das poucas boas notícias veio quando ele recebeu os royalties pela gravação da música Glad, do Cream, cover de sua antiga I’m So Glad (Eric Clapton fez questão que o blueseiro recebesse todo o dinheiro que lhe era devido pela canção, numa atitude que poderia ter ensinado algo a Jimmy Page).

Para Skip James, sua redescoberta não foi boa como ele merecia, e também não teve longa duração, já que o cantor morreu apenas cinco anos depois do seu ressurgimento, em 1969. Mas, para o blues, o valor do seu reaparecimento é extremamente importante.

Sem isso, James seria hoje um nome praticamente obscuro e quase esquecido. E o mundo teria perdido um dos blueseiros mais importantes da história e que, hoje se sabe, só não tem o mesmo status que Robert Johnson apenas porque “não morreu nos anos 30”, o que o teria transformado em mito. Hoje, ele é apontado como um dos nomes mais influentes do blues. Mas sua grande força é o fato de que, graças ao tom sobrenatural de suas canções, Skip James permanece um nome único e inigualável.

Para encerrar, deixo aqui uma preciosidade: um dos poucos registros em vídeo de James, feito nos anos 60.

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Crow Jane — Novamente, a violência. Aqui, o cantor atira em sua amante, a mulher que dá título à canção, pelo fato de que “ela andava com a cabeça erguida”. Em meio a versos complexos como “quero cavar sua cova com uma espada de prata”, confessa sua tristeza pelo ato, que surge imediatamente após o funeral. (O link também é um vídeo de Skip James interpretando a canção).

Sick Bed Blues — Composta no hospital. Mostra mesmo uma mágoa com o fato de James ter sido abandonado pelos amigos — aparentemente, ninguém o visitou no hospital antes dos jovens que cruzaram o país para isso (“eu costumava ter amigos, mas eles queriam que eu tivesse morrido”). Mas também fala sobre a doença, com um verso especialmente amargo, quando o médico diz que “ele pode melhorar, mas nunca vai ficar realmente bom”.

Jesus is a Might Good Leader — A religião era uma das principais influências de James, tanto na vida como em sua música, por conta dos hinos religiosos que ouvia na infância. Aqui, ele usa uma letra simples para fazer quase uma pregação, dizendo ao ouvindo para que ele “deixe Jesus te guiar”.

Illinois Blues — Acredita-se que seja a primeira canção de Skip James, escrita no início dos anos 20. O falsete não é tão intenso quanto nas outras canções, em uma letra que fala sobre seus dias trabalhando como operário em diversas cidades.

* * *

Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 08 de Março de 2016, 00:05
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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