Meu pai fumava Minister

Ilustrações fodonas de Felipe Franco

Eu tinha cinco anos quando meu pai saiu para comprar cigarro e não voltou. Ele fumava Minister.

Naquele domingo, minha mãe esperou por ele com o resto da lasanha do almoço no forno. Ela sempre queimava a borda. Nunca teve jeito para cozinhar. Ninguém comia os pedaços com borda queimada.

Quando deu 11 da noite, minha mãe foi dormir. Imaginou que ele estivesse em algum bar com os amigos e havia se esquecido das horas. Era comum isso acontecer.

Na manhã seguinte, com a ausência de meu pai, eu tinha uma certeza instalada no cômodo central do meu cérebro: ele havia partido para sempre. Tudo culpa da borda queimada da lasanha.

***

O chefe dele ligou. Queria notícias do homem que não fora trabalhar. Minha mãe disse que ele estava com diarreia.

Mentiu.

Não sabia ainda o que responder. Se dissesse que meu pai não havia dormido em casa, o homem do outro lado da linha imaginaria que meu pai estivera com outra mulher. Isso doeria no ego de minha mãe mais do que a ausência de meu pai em si.

***

Eu esqueci o rosto do meu pai no quinto dia de ausência.

***

Minha mãe não ligou para a polícia ou para o único hospital da cidade. Se houvesse acontecido algo ruim, ela já saberia. Coisas ruins voam. Sobrou imaginar que ele estivesse com outra. Ou que havia sido sequestrado. Mas ninguém sequestraria um mecânico que ganhava dois salários mínimos por mês.

Ele estava com outra. Certeza.

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No aniversário de um mês de ausência, minha mãe decidiu voltar a trabalhar. Costurava de casa. Costurava com a mesma inaptidão com que cozinhava. Mas os parcos trabalhos que apareciam dariam conta de manter uma mulher e seu filho.

Fazia uma barra aqui, um cós ali, e teríamos comida na mesa. A vida segue.

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Qual o rosto de meu pai? Talvez ele fosse tão barbudo quanto o velho que passava toda terça na rua de casa vendendo biju. Talvez tivesse um olho de cada cor, como o carteiro que entregava cartas aos vizinhos e quase nunca em casa. Talvez sustentasse orelhas de abano com a mesma pompa que o vilão da novela. Talvez ele fosse o Moacyr Franco.

***

Surgiu um certo Tio Jurandir. Nunca o havia visto nas festas da família, mas foi assim que minha mãe o apresentou a mim: nome Tio, sobrenome Jurandir. Ele aparecia em casa quase todo dia, às 9 da noite. Logo em seguida, minha mãe me colocava na cama – às vezes, aos gritos.

Duas semanas depois, minha mãe parou de costurar.

***

Eu sempre fui branquelo. Minha mãe sempre foi branquela. Meus avós sempre foram branquelos. De onde surgiu o negro Tio Jurandir? Quando eu perguntei isso na escolinha, me mandaram voltar aos meus desenhos.

Eu desenhava gente sendo morta.

***

No Dia dos Pais, a classe toda fez recados com macarrão. Usamos macarrão argolhinha, padre-nosso, estrelinha, rigatone, anelzinho, ave-maria, pena lisa. Eu fiz o meu cartão e entreguei ao vendedor de biju na terça seguinte. Recebi um biju de graça.

***

Eu tinha um dente mole quando revi meu pai. Cheguei da escola e ele estava em casa, sozinho, sentado numa poltrona, com a roupa suja de lama, bosta e sangue. Mostrei meu dente. Ele sorriu os últimos quatro que lhe restavam na boca. Disse que precisava sair. Sumiu de novo.

Quando falei pra minha mãe que havia encontrado meu pai, ela me deu um tapa e me proibiu de contar mentiras.

***

No dia seguinte, encontraram o corpo do Tio Jurandir no terreno baldio ao lado de casa. Ele fedia. Estava todo cagado. O policial disse que um cachorro estava lambendo o sangue encrostado na cara do Tio Jurandir. Fiz um desenho sobre isso na escola algum tempo depois. Ficou lindo.


publicado em 03 de Fevereiro de 2012, 22:01
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Rodolfo Viana

É jornalista. Torce para o Marília Atlético Clube. Gosta quando tira a carta “Conquiste 24 territórios à sua escolha, com pelo menos dois exércitos em cada”. Curte tocar Kenny G fazendo sons com a boca. Já fez brotar um pé de feijão de um pote com algodão. Tem 1,75 de miopia. Bebe para passar o tempo. [Twitter | Facebook]


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