Não diga "não" ao não

Um "não" desarticula o mundo.

Uma das tiradas de Oscar Wilde:

"Adoraria ir a sua festa, mas, infelizmente, não quero."

* * *

Estávamos em Ilha Grande, grupo de quatro amigas. Tínhamos planejado um passeio de barco para o qual estávamos muito empolgadas. Quase na hora de embarcar, o Alessandro Martins falou:

"Ah, gente, vão sem mim, perdi a vontade de ir."

Todas respondemos:

"Beleza. até a volta."

E fomos sem ele.

Até hoje, o Alessandro diz que esse foi um momento muito importante em sua vida, pois descobriu que tinha encontrado o seu grupo, a sua turma: ninguém tentou convencê-lo, ninguém encheu o saco, ninguém insistiu.

Todo mundo simplesmente respeitou seu desejo e pronto.

Parece pouco, mas é muito.

* * *

Gavin deBecker, em seu livro "As virtudes do medo", enfatiza que "não" é uma frase completa. Um "não" sozinho já se basta.

Reparem a diferença entre:

Ele: "Quer sair comigo?"

Ela: "Não, hoje estou ocupada..."

Ele: "Ok, então, quando desocupar, rola?"

ou

Ela: "Não, peguei uma gripe..."

Ele: "Assim que sarar, então, tá valendo?"

e

Ele: "Quer sair comigo?"

Ela: "Não, obrigado, prefiro não."

Como rapidamente aprendem as mulheres nesse nosso mundo machista, qualquer coisa dita depois do "não" já transforma sua negativa em negociação.

(O livro "As virtudes do medo", sobre como se prevenir contra violência, já salvou a minha vida e a de algumas pessoas queridas também. É o livro que mais presenteei ao longo dos anos. Se você só aceitar uma recomendação minha de leitura, aceite essa. Vale em dobro para quem é mulher.)

* * *

Já faz muitos anos, parei de dar desculpas.

Sou adulto, vacinado, pago minhas contas.

Portanto, tirando uma ou outra obrigação, me parece natural que eu só faça o que eu quero.

E, consequentemente, se me convidam para algo e eu digo "não quero", isso deveria encerrar qualquer discussão, sem eu precisar me explicar, apelar para outros compromissos, inventar justificativas.

Naturalmente, nada disso é natural, pois cada vez que eu recuso um convite dizendo simplesmente

"Não, obrigado, não quero."

Isso é uma quebra tão grande das expectativas que parece que as pessoas à volta ficam totalmente sem resposta, não acreditam, acham que não ouviram direito, pedem pra repetir.

E eu repito, sempre no tom mais bem educado possível:

"Quer ver uma foto linda da minha netinha?"

"Não, não quero, não, obrigado."

Ou:

"Aaahh, da próxima vez que você for à praia me chama pra gente ir junto!"

"Ahh, nah, quero não, mas obrigado."

Ou então:

"Alex, quer traduzir esse texto aqui pra mim?"

"Pô, cara, quero não, mas obrigado por perguntar."

E também:

"Meu filho, vamos visitar seu avô?"

"Valeu pelo convite, mãe, mas não quero não. Boa visita."

* * *

Muitas vezes, a pessoa fica tão desarticulada pela negativa que insiste:

"Ah, tem certeza? Vamos sim. Vai ser legal. Deixa de ser chato."

Aí quem fica chocado sou eu e respondo em um tom um pouco mais duro:

"Perdão, mas dado que eu manifestei claramente que não quero, qual é o sentido de insistir? Você quer realmente que eu te acompanhe contra a minha vontade?"

* * *

Algumas pessoas estrangeiras no Brasil demoram a se acostumar:

"Na minha terra, digo 'não, obrigado, não quero' e todo mundo respeita. Aqui no Brasil, todo e qualquer 'não', mesmo se falado da maneira mais delicada possível, é sentido como uma ofensa, a pessoa fica ferida, magoada, pode até afetar a amizade. A única maneira de evitar o insulto é efetivamente convencendo a pessoa de que minhas razões são fortíssimas, inadiáveis, inapeláveis. É uma coisa muito louca: eu me pego, todo dia, argumentando para pessoas que eu às vezes nem conheço que eu tenho sim o direito de não ir aos lugares onde eu não quero ir!"

* * *

Legenda

Não é questão de ser sincero.

Às vezes, eu não quero ir porque não estou a fim, porque estou num dia ruim, qualquer um de mil motivos pessoas.

Noutras vezes, eu não quero ir porque me será um sacrifício passar horas com aquela pessoa que considero chata, desagradável, tediosa.

De um modo ou de outro, não me considero obrigado a dar satisfações sobre os motivos de eu estar livremente exercendo meu direito de ir e vir.

Se considero algumas pessoas insuportáveis, nunca vou magoá-las com essa triste verdade, mas também não vou lhes oferecer meu corpo e meu tempo em holocausto no altar da sua chatice.

(Já escrevi na Prisão Verdade que nossa sinceridade é muita vezes utilizada com arma para magoar as outras pessoas.)

* * *

Não é questão de não ser empático ou de não dar atenção.

Existem sete bilhões de pessoas no mundo. Não tem como dar atenção para todas: é preciso escolher, os critérios sempre serão pessoais e cada pessoa terá os seus, baseados em suas vivências, em seus traumas, em suas biografias.

O mais importante é eu ter claro para mim que o meu tempo só pertence a mim e que é o meu bem mais precioso, o único realmente não-renovável.

Ninguém tem DIREITO ao meu tempo: eu o compartilho com quem eu quiser.

As pessoas confundem muito "ter empatia" com "se deixar subjugar" ou "obedecer":

"Ai, Alex, como você pode dizer não assim na lata pro Fulano? Você não sabe como ele é carente? Você não sabe como ele vai sofrer?"

Mas eu ter empatia por ele, eu conhecer sua biografia e as circunstâncias familiares que lhe tornaram carente, eu saber a dor da pequena rejeição que estou lhe causando...

... nada disso quer dizer que eu tenha obrigação de lhe ceder meu tempo.

Talvez eu tenha decidido que tem outras pessoas que eu posso ajudar mais. Talvez eu ache que ele precise de ajuda mas que eu não sou a pessoa certa. Talvez eu só não esteja a fim, porque ninguém é de ferro.

Flávio Bolsonaro foi um dos candidatos a prefeito do Rio de Janeiro. Sinto uma empatia enorme por esse moço. Ninguém pode imaginar o que ele sofreu nas mãos do deputado Jair Bolsonaro, até ser moldado no tipo de homem outrofóbico que se transformou hoje. Não tenho dúvidas de que ele é a maior vítima do pai.

O fato de eu não querer passar uma tarde "dando atenção para ele" não muda em nada a dor que sinto por ele.

* * *

Alguém sempre me fala:

"Se eu falar não, vou perder todos os meus amigos!"

Mas de que servem amigas que não respeitam as minhas vontades?

Quanto mais velho eu fico e quanto mais pessoas chatas eu vou deixando pelo caminho, mais eu me encontro cercado por pessoas verdadeiramente incríveis, pessoas com as quais eu me sinto plenamente visto, ouvido, contemplado, respeitado.

Isso não tem preço.

* * *

A novela "Bartleby, o escrituário", de Herman Melville, o mesmo autor de "Moby Dick", mostra um funcionário que finalmente aprende a dizer... não.

"Bartleby, pode ficar até mais tarde?"

"Prefiro não".

"Bartleby, pode ir buscar uma coisa ali na esquina?"

"Prefiro não."

Muitas vezes, basta um não para desmontar o sistema.

* * *

Exploro alguns desses temas na Prisão Obediência.

Todas as fotos que ilustram esse texto são do ensaio Bartleby, produzido pelo coletivo artístico Feedback Underground.

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publicado em 12 de Outubro de 2016, 21:40
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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