Por que a gente odeia tanto o que o outro faz? | Do Amor #75

A gente não esquece do que nos irrita na outra pessoa. E dá nisso.

Chegou em casa e, antes mesmo de fechar a porta, botou a mochila no chão e olhou em volta. Passaram o carnaval separados, decidiram após mais uma briga dar tempo para a cabeça não martelar as mesmas broncas, chegar às mesmas conclusões. Cada um pro seu lado, quatro dias mais a quarta de cinzas pra mudar o fluxo mental, ver outras pessoas, exorcizar as mágoas cotidianas.

Com isso, de volta em casa, preferiu analisar pistas antes de avançar. No chão da sala, pedaços de fantasias que ela usou nos blocos de rua, uma tiara, potes de glitter e pedaços de tecido cortado que virou saia e adereços para amarrar nos braços. O som estava ligado e tocava baixinho alguma coisa que ele não sabia identificar, só notava ser a cadência de um samba velho. Cheiro de café, chuveiro fazendo barulho. Ela devia estar tomando banho. Foi até o banheiro e fitou a figura turva dela pelo vidro jateado do box. Avisou que estava de volta. Ela não puxou a porta da vidraça, mas disse "que bom. Eu senti saudades". Ele imaginou que ela estava sorrindo do lado de dentro. Perguntou se ela estava bem e recebeu a notícia que sim, que foram ótimos dias, que ela estava se sentindo mais leve. "Pronta pra outra", ela comentou antes de pedir para ele ir ver se o café estava pronto.

No caminho para a cozinha, ainda no quarto, sentiu o cheiro do suor dela no travesseiro desarrumado, a calcinha jogada no colchão. Reparou na escrivaninha com a foto dos dois em Tibau do Sul e pensou que poderiam fazer uma nova viagem para alguma praia, juntos. Rememorou pedaços do relacionamento deles, de momentos em que um foi a grande ajuda do outro, quando o pai dele morreu, quando ela estava ficando maluca com o mestrado, os melhores dias da vida juntos tinham a companhia e tesão da outra pessoa, as melhores comidas, o melhor sexo, a risada mais gostosa e doída. E ela estava lá, se limpando para seguir. Pronta pra outra.

Ele não queria nem saber se ela saiu com alguém no carnaval, se botou a carne dela na rua, se ela estava pronta pra outra justamente por ter se esbaldado em outras camas. Sabia que ela não iria perguntar das intimidades carnavalescas dele, se ele tinha transado com alguém ou conhecido outra mulher. Ele estava de volta, ela tinha conhecimento pra saber que, se ele retornara, era para os braços dela. Estava tudo nos conformes. Era só fazer as pazes e tocar a vida. Talvez renovar algumas coisas da casa, trocar o sofá, comprar um liquidificador novo. "A gente aprendeu a lição", pensou consigo. O novo tava na cara deles, era só começar.

Desceu correndo, direto pelas escadas, e foi à padaria. Trouxe um bolo, pães franceses e uns de queijo. Comprou geleia de laranja e trouxe caldo de cana. Subiu as escadas correndo. Sentia-se leve, com fôlego renovado. Pronto pra outra. Queria deixar a mesa pronta para quando ela estivesse trocada e cheia de fome. E encontrou-a linda com os cabelos mais curtos. Havia anos que ela não deixava os cabelos abaixo do que ela considerava confortável para amarrar e poder fazer seus treinos, suas corridas. Renovada. Queria abraçá-la, queria transar com ela ali mesmo, como há muito também não faziam. E, quando ela se virou, deixou cair dos dedos moles a colher suja de café na pia. Não lavou a colher. 

Ele odiava a mania de ela acumular colheres de café usadas na pia. Era algo que ele sempre reclamava, do por que ela não usar só uma colher, ficar jogando um monte delas na pia, todas chupadas depois de adoçar o café.

O rancor, a irritação da fúria, animoso de novo, a odiosidade fazendo aquele amargoso na boca. Tudo de novo. "Eu vou me separar. Só vim pegar as minhas coisas e saio de casa ainda hoje", ele disse botando os pacotes da padaria na mesa.

O amor é feito de coisas triviais. Se sustenta em besteiras e acaba por besteira.

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publicado em 16 de Fevereiro de 2018, 00:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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