Rogério Ceni: a (des)construção do m1to

Rogério Ceni, definitivamente, não é unanimidade. No entanto, para grande parte da mídia e mesmo dos torcedores, o goleiro-artilheiro é um mito. Após seu 100º gol, a exaltação ao camisa 1 (na verdade 01 por questões de marketing) apenas aumentou. Igualmente, as críticas e dúvidas sobre seu valor também aumentaram consideravelmente.

Por estas e por outras, resolvemos usar nosso espaço aqui no PapodeHomem para desconstruir este mito e ver do que são feitas suas conquistas e onde se baseiam as principais críticas ao maior goleiro-artilheiro do mundo.

Reunimos dados, vídeos, depoimentos de torcedores (de outros times!) e de jornalistas.

Link YouTube | O centésimo gol

O mito em números

Antes de tudo, nada mais lógico do que recorrer às definições para iniciar o papo. E a pergunta que fiz ao Seu Google foi: o que é mito? Diria o mestre Wiki(pedia) que "um mito é uma narrativa de caráter simbólico, relacionada a uma dada cultura. O mito procura explicar a realidade, os fenômenos naturais, as origens do Mundo e do Homem por meio de deuses, semi-deuses e heróis.

Ou para simplificar, o Seu Houaiss dirá: "mito é a representação de fatos ou personagens históricos, frequentemente deformados, amplificados através do imaginário coletivo e de longas tradições literárias orais ou escritas".

Usando a simples análise do significado, digamos que este pode não ser o momento ideal para transformar a história de Rogério em um relato mitológico, ainda mais se tratando de um goleiro. O que pode confirmar a personificação de "fatos históricos" são suas conquistas.

Assim, vamos aos números que o capitão sãopaulino deixará para a eternidade, lembrando que ainda está em atividade:

Idade: 38 anos (22/01/73)
Clubes: Sinop-MT e São Paulo
Jogos: 20 pelo Sinop-MT, 965 pelo São Paulo, 17 pela Seleção Brasileira
Títulos: 23 pelo São Paulo, 02 pela Seleção Brasileira
Gols: 100, sendo 02 em amistosos.

Algumas marcas (com base no site oficial do goleiro):


  • Maior goleiro-artilheiro da história.

  • Jogador que mais disputou jogos do Campeonato Brasileiro.

  • Mais de 700 jogos como capitão do São Paulo.

  • Está vivendo uma sequência de mais de 85 jogos como titular.

  • Duas vezes eleito o melhor jogador do Campeonato Brasileiro (2006 e 2007).

  • Bola de Ouro (Placar): 2008.

  • Seis vezes Bola de Prata (Placar): 2000, 2003, 2004, 2006, 2007 e 2008.

  • Bola de Ouro do Mundial de Clubes da FIFA: 2005

  • Terceiro jogador que mais vestiu a camisa de um clube na história do futebol mundial (atrás de Roberto Dinamite, com 1065 jogos pelo Vasco da Gama e Pelé, 1114 partidas pelo Santos).

Na comemoração do centésimo

A questão é que seu legado será considerado imortal de acordo com o que será dito sobre ele (ou qualquer outro candidato a mito) depois de sua morte – primeira, quando se aposentar, ou segunda, a de fato, como diria Falcão, já reprisado por Ronaldo.

O outro lado: o que dizem os torcedores de outros times?

Partindo deste raciocínio, resolvemos sair do lugar comum e colocar seus principais rivais para falar e ver o que mais de 85% da população brasileira tende a achar de Rogério.

Mas não queríamos ouvir os adversários de Ceni dentro de campo, afinal, vamos nos manter longe de politicagem ou defesa de classe. Fomos consultar nossos representantes das torcidas que mais sofreram com o goleiro. Pedimos aos blogueiros de cada torcida para opinar sobre o jogador.

Thiago Fracarolli, Geral do Palmeiras (time que mais sofreu gols de Rogério):

"No atual futebol das cifras milionárias, é difícil acreditar que um cara pode conquistar o mundo, ser ídolo de toda uma torcida, admirado por adversários, tudo isso em apenas um time. Óbvio que estou falando do Marcão. Mas aqui o assunto é o rapaz do Jardim Leonor, que foi reserva do Marcão na Copa.

Apesar de o Palmeiras ser a maior "vítima" do rapaz, o palmeirense é o único torcedor que não precisa invejá-lo. Temos em nosso gol São Marcos.

Marcos e Rogério são os dois últimos grandes ídolos do futebol nacional, daqueles que honram a camisa que vestem. Os dois são ídolos incontestáveis (debaixo do gol o Marcão é melhor), mas a maior diferença entre eles é a simpatia. Marcão é gente boa em qualquer situação, já o Rogério é o politicamente chato. Por isso é muito legal vencê-lo e provocá-lo, como naquela semifinal de 2008: um frango e um "Cala a boca, mala". Boa, Valdívia! Ou com o golaço de Alex, com chapéu e tudo."

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Sandro Terranova, Geral do Timão (vítima do 100º gol):

"Rogério Ceni é mais um dos muitos mitos do futebol brasileiro. Não pelo centésimo gol, mas porque é bem difícil encontrar alguém com uma carreira tão longa e vitoriosa como ele. Mesmo sem os seus gols, aposto que sua carreira seria tão brilhante como é hoje. Ser o maior ídolo da história de uma torcida inteira, amigos, não é pra qualquer um. Homenagear Ceni faz sentido, é justo, é obrigatório.

O centésimo gol de Rogério foi contra o meu Corinthians, mas a gente também está na história do Rogério, afinal, o Corinthians é o time que mais vezes balançou suas redes. O jogo de ontem ficará na minha memória e vou contar até para meus netos.

Mas eu nunca vou elogiá-lo. Pra os outros eu vou continuar dizendo: Rogério Ceni é um arrogante, falastrão que nunca agarrou nada."

Danilo Hatori, Geral do Santos(contra o Santos, Rogério diz ter marcado seu gol mais importante, na final do Paulista de 2000):

"Respeito o Rogério Ceni, afinal, não é qualquer goleiro que chega aos 100 gols – na verdade, nenhum. Fruto de trabalho árduo, de treinamento, o que merece ainda mais admiração.

Dito isso, afirmo que não gosto nem um pouco da figura de Ceni. Vejo nele o estereótipo negativo do são-paulino: arrogante, com seu gigantesco nariz parecendo estar sempre empinado.

Foi de Ceni, por exemplo, a hipocrisia da paradinha, quando tentou dar lição de moral e esqueceu seu próprio passado. Típico de quem tem qualidades, mas acha que é perfeito.

Assim, nada na história de Ceni me traz mais alegria do que quando, do alto de seu salto de maior cobrador de faltas da história do universo, teve que correr atrás de Geílson, aquele que só não conseguiu errar o gol por baixo (ainda), e contemplar impotente o golpe de misericordia.

Afinal, fosse eu são-paulino, amaria de paixão tresloucada esse homem chamado Rogério Ceni. Mas, como aqui o papo é de homem, acho ele chato pra caralho."

"Chato? Fale mais sobre isso..."

Rafael Igor, Geral do Cruzeiro (time de Fábio, o goleiro mais vazado por Rogério):

"Em 2000, o Cruzeiro conquistou a Copa do Brasil sobre o São Paulo de Rogério Ceni com um gol de falta de Geovanni aos 46 do 2º tempo.

Deve ter doído muito no goleiro são-paulino, pois seu clube vivia um jejum de quase 7 anos sem grandes títulos. Depois daquela Copa do Brasil, o time celeste quase não ganhou do São Paulo com Rogério Ceni, uma pedra no nosso caminho. O Cruzeiro eliminou o São Paulo na Libertadores 2009, mas Ceni, machucado, não jogou. Não bastasse isso, Fábio, ídolo cruzeirense, é o goleiro que mais sofreu gols de Ceni: 6 no total, sendo 5 pelo Cruzeiro.

Esta "predileção" que ele tem por Fábio é mais um motivo para que nós, cruzeirenses, não tenhamos carinho pelo goleiro dos 100 gols. Porém, a China Azul sabe que o gol do Geovanni doeu mais em Rogério Ceni do que a dor pelos gols que ele fez em Fábio."

Rodrigo Branco, Internacional (ganhou uma Libertadores com um frango de RC01):

"Fazer um paralelo entre o Ídolo São Paulino com o clube de maior torcida do Rio Grande do Sul é uma tarefa fácil, mas ingrata.

Rogério Ceni tem uma forte ligação com o São Paulo, foi e ainda é um jogador referência por lá, mas nas horas mais decisiva contra o Time do Povo do Rio Grande do Sul fez valer a sua origem de Colorado de coração, assim como seu pai!

Como esquecer de 2006 onde Rogério solta a bola e Fernandão empurra para o fundo das redes abrindo o placar em pleno Beira Rio? Para nós Colorados, os méritos todos são do craque Fernandão, que por ironia do destino, hoje veste as cores do Tricolor Paulista.

Enfim, Ceni será para sempre eternizado no peito dos São Paulinos e na lembrança de todos nós, torcedores do Sport Club Internacional."

Bruno Nigro, Geral do Flamengo (time de maior torcida do Brasil):

"Como rubro-negro, me acostumei a ter aqueles que considero os maiores cobradores de faltas de todos os tempos no time: Zico, Júnior, Petkovic... muito aguçaram ainda mais o gosto que a Magnética tem por uma falta bem cobrada, indefensável, que deixa o goleiro sem alternativa.

Embora a animosidade e o clubismo exagerado dos nossos dias não permitam tal pecado, quando a contagem regressiva para o 100º gol de Rogério Ceni começou, eu também torci. Não fazia sentido que o maior goleiro-artilheiro do esporte mais brasileiro que existe fosse paraguaio. Ceni destronou Chilavert há muito tempo, mas queria mais. Merecia mais.

Um exemplo genuíno de ídolo de apenas um clube no país, recordista de jogos com a mesma camisa. Enjoado, chato e nem por isso menos genial. Rogério Ceni entra para a história do futebol como uma espécie de Pelé embaixo das traves."

Chato e trabalhador: o que escreveram os jornalistas?

O que fica razoavelmente claro após ler todas opiniões de torcedores adversários e buscar na memória outras manifestações como esta é que há um grande adversário para Rogério em seu processo de mitificação: o culto à malandragem.

Todos, simplesmente todos, os torcedores adversários não conseguem deixar de elogiar os feitos de Rogério. E nenhum deles deixará de manifestar a sua principal crítica ao arqueiro: a sua chatice. Um traço da sua personalidade que ele mesmo assume e que pode ser creditada a um fator em especial: sua não aceitação do erro e a consequente busca pela perfeição.

Rogério, ao contrário do estereótipo do brasileiro, é um trabalhador. Pior, ele gosta de trabalhar. E como pode um brasileiro, jogador de futebol, talentoso e ainda por cima preocupado em treinar, se aperfeiçoar e não poupar dedicação?

Para apresentar as qualidades de Ceni, resolvi trazer algumas opiniões de jornalistas sobre toda esta obstinação. Todas as palavras abaixo foram escritas após o 100º gol e mostram o quanto a sua dedicação pode ser creditado seu sucesso:

"Haverá outro goleiro com 100 gols? Pode ser. Talvez não com cinquenta e tantos gols em cobranças de falta. Mas pode ser. O que não haverá é outro goleiro com 100 gols marcados pelo mesmo time." –André Kfouri

"Além do dom natural para o ofício da bola, Rogério cultiva uma determinação férrea de se esmerar em tudo o que faz. Dedica-se de corpo e alma ao seu trabalho, cuida-se, treina feito o cão, enfim, não dá trégua à própria natureza." –Alberto Helena Jr.

"Do primeiro ao centésimo gol, Rogério pavimentou seu destino de mito do clube tricolor contando com tragédias, o acaso e ajudas providenciais. No entanto, não teria conseguido nada se não tivesse talento e uma inteligência acima da média do boleiro nacional.

A sua personalidade forte criou problemas. Ele muitas vezes fala como cartola e não como atleta, num discurso planejado para agradar ao torcedor são-paulino. Muitos acham que o goleiro extrapola o espaço do atleta dentro do clube. Ceni exala uma certa arrogância própria daqueles que sabem que são muito bons no que fazem." –Maurício Noriega

"Ele não é um goleiro-artilheiro apenas. É um profissional irritante, daqueles que você procura faltas e não encontra, que vasculha arquivos em busca de atrasos no treino e nem isso vai achar com facilidade. Ele falha, e quando falha, não aceita. Não porque é um nojento, mas porque é um insuportável vencedor. Ele não consegue aceitar a derrota. Então ele treina, trabalha e vence de novo." –Rica Perrone

O país do jeitinho e a postura anti-malandra

O que todos citam é a incapacidade de Rogério de aderir à maladragem. Ele não se curva ao "jeitinho brasileiro", que é ainda mais fácil de identificar no perfil boleiro. Ou não somos nós todos fãs do descompromisso talentoso de Sócrates, ou da marra goleadora do Romário e até capazes de perdoar as puladas de cerca travestidas de Ronaldo?

"Hum, jeitinho brasileiro, onde diz aqui que é proibido?"

A nós é muito mais fácil perdoar o malandro do que idolatrar o certinho.

Roberto Da Matta, um dos maiores nomes da antropologia nacional, discorre sobre a força do jeitinho e da malandragem em nossa cultura em O que faz do brasil, Brasil?:

“Entre o “pode” e o “não pode”, escolhemos, de modo chocantemente antilógico, mas singularmente brasileiro, a junção do “pode” com o “não pode”. Pois bem, é essa junção que produz todos os tipos de “jeitinhos” e arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social."

"É, sobretudo, um modo simpático, desesperado ou humano de relacionar o impessoal com o pessoal."

"A malandragem, como outro nome para a forma de navegação social nacional, faz precisamente o mesmo. O malandro, portanto, seria um profissional do “jeitinho” e da arte de sobreviver nas situações mais difíceis."

"Aqui, também, temos esse relacionamento complexo e criativo entre o talento pessoal e as leis que engendram– no caso da malandragem– o uso de “expedientes”, de “histórias” e de “contos-do vigário”, artifícios pessoais que nada mais são que modos engenhosos de tirar partido de certas situações, igualmente usando o argumento da lei ou da norma que vale para todos."

Um bom exemplo desta postura anti-malandra de Rogério está na declaração ao Lance! quando Rivaldo foi contratado:

"Hoje os mais jovens precisam de exemplos assim. Um cara de caráter e profissional, que venceu na vida. Afinal, é mais fácil aceitar o convite de um colega para ir à balada ou tomar uma cerveja do que dar uma corrida no final da tarde."

A tendência é que a imagem que fique de Rogério Ceni para a posteridade seja, de fato, a de perfeccionista. Mas como falei em um outro texto aqui no PdH, a sociedade brasileira está em plena evolução: "Nosso perfil atual, com políticos corruptos, desvalorização do bem-sucedido e endeusamento do malandro, entre tantos outros problemas sócio-culturais, nada mais mais é do que um estágio do nosso próprio aprendizado".

Com este aprendizado, espero que a leitura sobre o que significou Rogério Ceni para a profissionalização e evolução do futebol possa torná-lo um verdadeiro mito.

E, quem sabe, a sociedade brasileira entenda a malandragem como nas palavras de Jorge Ben Jor em "Caramba... Galileu da Galiléia":

Link YouTube

"Malandro que é malandro não bobeia
Se malandro soubesse como é bom ser honesto
Seria honesto só por malandragem, caramba"

publicado em 03 de Abril de 2011, 05:01
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Rodrigo Ferreira

Rodrigo Ferreira (@rferreira_) é jornalista ou publicitário, depende da ocasião. Criador e editor do OsGeraldinos.com.br. Adora escrever sobre esportes e não foge de um bom papo com cerveja gelada na mesa.


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