"Ser homossexual não é crime" diz o Papa. Mas e o pecado?

Uma matéria da Folha diz que o Papa afirma que a homossexualidade não é crime, mas é pecado. Essa afirmação não está tão explícita no vídeo da entrevista. Ele afirma a importância da descriminalização e aponta como é contraditório as pessoas julgarem a homossexualidade como pecado sem olhar para a própria vida. Independente disso, essas entrelinhas da igreja sempre deixam brechas que podem motivar situações de violência.

O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo, segundo a Aliança Nacional LGBTI+. Em um país majoritariamente cristão como o nosso, as igrejas precisam se responsabilizar pelos discursos que promovem direta e indiretamente a violência, exclusão e morte deste grupo social.

É possível ser cristão e LGBT?

Para muitas pessoas a espiritualidade e a vivência religiosa são partes fundamentais de suas vidas. Para jovens e adolescentes, as igrejas e grupos podem funcionar como um importante espaço de troca e autoconhecimento. Mas infelizmente ainda é muito comum que pessoas LGBT+  sejam afastadas ou precisem sair das igrejas por preconceito e discursos de ódio promovidos por fiéis e lideranças.

Quando eu era adolescente entrei em um grupo chamado Ruáh - O Sopro do Espírito Santo, lá vivi coisas incríveis e inesquecíveis. Tive experiências espirituais profundas, mas também sofria calado pelo fato de estar descobrindo minha sexualidade e ao mesmo tempo ouvindo que ser homossexual me levaria ao inferno.

Essas palavras tiveram grande impacto na minha formação, na minha relação com a autoimagem e até nos relacionamentos. Isso aumentava muito mais o desenvolvimento de pensamentos suicidas, que já são 3 vezes mais frequentes em pessoas LGBTs do que em pessoas heterossexuais.

O tempo todo eu era obrigado a recusar quem eu era e o que sentia, várias eram as recomendações de que eu fosse para o seminário. E infelizmente cheguei a passar por uma sessão de exorcismo, na justificativa de que era preciso expulsar o "espírito da homossexualidade". Na verdade, eu estava passando mal e tendo uma crise de pânico.

Em 2009 eu fundei aqui em Mandirituba no Paraná um grupo chamado Movimento Jovem Fonte do Sangue que Corre, mesmo ainda no armário, era possível perceber que os jovens que se aproximavam do grupo eram “diferentes”. Ninguém falava abertamente, mas todos sabiam qual diferença era essa. Essas temáticas ficaram em silêncio no grupo por muitos anos. Mas era perceptível que a comunidade também percebia e não éramos bem vindos por algumas lideranças e pelo padre da nossa paróquia.

Em 2012, quando surgiram boatos na cidade de que eu era gay, fui chamado às pressas para uma reunião secreta na casa paroquial. Duas amigas minhas também foram convocadas. Lá elas foram questionadas se eu estava me relacionando com algum rapaz. Elas surpresas, pois não sabiam da minha orientação sexual, disseram que não. Depois eu fui questionado e alertado que se eu estivesse em um relacionamento com um cara, eu seria afastado da liderança do grupo que eu mesmo fundei na paróquia.

Anos depois, fomos  percebendo que era importante falarmos e nos posicionarmos acerca das questões LGBTs, a pauta das mulheres, as questões raciais, porque descobrimos que o que nos uniu, para além da vivência da fé e da espiritualidade, foram as opressões que sofremos por sermos vistos como diferentes e pecadores. Nos posicionarmos cada vez mais era uma forma de agirmos para que nenhum outro adolescente passasse por aquela violência.

Essa semana conversei também com a Gyanny Real,  casada com a Janelle Real ,e moradora de Belo Horizonte em Minas Gerais.  As duas são diaconisas na Igreja Cristã Contemporânea e fundadoras do Jesus Hope, um projeto que visa propor reflexões e mensagens de aceitação para cristãos LGBTs, a partir de uma leitura inclusiva do Evangelho e de um entendimento de que a diversidade é um dom divino. Além disso, divulgam as igrejas evangélicas inclusivas, que tratam-se de igrejas cristãs que celebram e acolhem a diversidade sexual e de gênero.

“Aos 18 anos eu tinha um relacionamento com uma outra moça da igreja. Eu contei para minha mãe e ela foi contar para o pastor, buscando ajuda. Ele contou para os outros pastores e a partir de uma assembleia nós fomos afastadas da igreja”.

Gyanny Real - Jesus Hope

Gyanny conta esse triste episódio de sua vida e também relata que frequentemente o projeto Jesus Hope é atacado por fundamentalistas:

 “Sofremos ataques o tempo todo, sempre tem um conservador vindo nos dizer os versículos que sempre usaram para nos condenar. Antes sofríamos muito com isso, porque o trabalho que fazemos é justamente para reconstruir tudo que foi quebrado nas pessoas por causa dessas acusações. Então o que mais nos chateava era que os nossos seguidores que estão passando por esse processo lessem esses comentários e retrocedessem.”

 Mudanças estão acontecendo…

Além de projetos como Jesus Hope e as igrejas inclusivas nos contextos evangélicos, hoje existe, por exemplo, a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT que são coletivos que buscam criar espaços seguros e de acolhimento dentro da Igreja para pessoas LGBT católicas. Esses grupos são espaços de encontro, troca, reflexão e escuta.

Também existe um material chamado “Manual de Cristianismo e LGBTI”, organizado pela Aliança Nacional LGBT, pela Rede pela Igualdade de Direitos - Gay Latino em parceria com LGBTs cristãos. O e-book conta com 12 autores referências nas discussões sobre cristãos LGBTs.

Como posso ser um cristão aliado?

Se você ver alguma situação de exclusão, violência física ou verbal contra uma pessoa LGBT na sua igreja, é muito importante que você intervenha. Geralmente pessoas LGBTs sentem que estão sozinhas, ter você ao lado nesse momento fará toda a diferença. E depois disso converse com a pessoa que passou pela situação e pergunte para ela o que mais você pode fazer para ajudá-la. Isso evitará que você haja de forma que possa gerar mais exposição e constrangimentos para a pessoa.

Se você ocupa algum cargo de liderança dentro de uma igreja, proponha que o assunto seja abordado na catequese,  dentro de formações e demais encontros. Ofereça suporte para famílias que estão passando pela fase de descoberta da sexualidade dos filhos.  Use sua voz dentro da igreja e defenda as pessoas LGBTs que estão neste espaço desenvolvendo suas atividades e desejando viver livremente a sua espiritualidade.

Temos vivido avanços significativos nos últimos anos em torno da relação entre o cristianismo e as questões LGBTs. E cada vez mais estamos podendo contar com lideranças que tem se colocado como aliados na prática e também produzido material teológico para novas reflexões cristãs.

Para acompanhar essa movimentação, recomendo o projeto Jesus Hope, a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT ,  o padre Julio Lancellotti  e o Padre Lúís Corrêa Lima, os pastores Berlofa e Henrique Vieira , a teóloga Ana Ester  e o teólogo Walter Pinheiro.


publicado em 26 de Janeiro de 2023, 19:24
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Andrio Robert

Mestre e doutorando em Educação no PPGE- UFPR. É pesquisador de corpo, gênero e masculinidades. Suas investigações estão inseridas na linha LICORES - Linguagem, Corpo e Estética na Educação, no grupo de pesquisa Labelit - Laboratório de Estudos em Educação, Linguagem e Teatralidades (UFPR/CNPq) e na Diálogos - Rede Internacional de Pesquisa.


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