Amores à distância

Já estava no terceiro ano da faculdade de Turismo, mas ainda precisava ver muita coisa do mundo. Carla tinha dezenove anos e estudava na Zona Leste da cidade, em um bairro industrial onde a universidade se instalara, dentro de uma fábrica antiga que foi reformada por dentro para receber milhares de alunos todos os dias.

Havia um lotação que levava os estudantes do metrô até o campus, mas muitos alunos preferiam fazer o trajeto à pé, evitando assim a enorme fila que se formava todas as manhãs.

Descendente de orientais, quase não chegava a bater um metro e meio de altura, mas possuía formas deliciosas. Cabelos extremamente lisos e prateados, olhinhos puxados e sempre se remexia para tudo que é canto, daquele jeito envergonhado e sincero dos nipônicos.

Tinha tudo encaixadinho no devido lugar: seios empinadinhos e firmes, barriguinha seca e delineada, quadril contido, uma bundinha delicada e pés pequeninos e sempre apoiados em grandes saltos. Suas mãos eram também pequenas e de dedinhos gordos, com as unhas pintadas de preto. Gostava de usar decotes, blusinhas de alças finas, saias com penduricalhos e tudo o que se possa imaginar que uma garota poderia usar para tentar aumentar sua tacanha figura no mundo.

Estudava excursionismo, mas queria mesmo era viver de excursão, passeando o mundo junto com alguma banda de hardcore que ela sempre escutava. Queria viver de rock n’ roll, de festas e bebidas e cigarros e fazia o máximo para se mostrar assim ao mundo. Era blasé e cheia de marra e farra na cabeça, mas, filha de nisseis, só o que conseguia era botar alguns pôsteres no quarto e transmitir tais significados em seu vestuário.

Carla tinha três grandes amigas na faculdade e, sempre que estavam juntas, falavam sobre sexo, putarias e as festas mais legais que aconteciam na cidade, às quais nunca poderiam ir. Faziam só o que estava ao alcance de suas mãos. E línguas.

Três vezes por semana, Carla saía das aulas e ia até próximo ao Largo da Batata ver uma banda ensaiar. Era um estúdio mofado e escuro, mas que continha toda a aura que ela buscava. Ficava atrás da cuba de vidro que isolava o som e assistia a um bando de garotos, que pensavam já serem homens, tocar notas repetidas e em velocidade.

Era aquele som sujo e áspero que ela adorava e, ao final das passagens de músicas, ia para o banheiro com o vocalista e lhe fazia um sexo oral inocente, tentando parecer com aquelas atrizes pornô que ela via na internet. Ajoelhava-se no chão engordurado enquanto ele abria as calças e se sentava no vaso sanitário.

Não havia cerimônias e nem carícias, só uma situação urgente e vergonhosa, um ritual acelerado em que ela enfiava o máximo de pinto na boca e se debatia, babava, fazia sons e gemidos abafados pela glande até ele encher a boca dela de porra. Ao final, não dava nem para uma conversa ou carona. Ele tinha aulas de inglês do lado oposto ao caminho da casa dela. Ela nunca gozava, mas se sentia orgulhosa de achar o ponto certo do prazer dele.

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Em casa, passava o resto da tarde trocando afetividades com um garoto que conhecera virtualmente, um menino um ano mais novo que preenchia suas necessidades de carinho. A mãe era enfermeira e aparecia em casa a cada par de dias, enquanto o pai, engenheiro, estava preocupado demais em encher a cara assim que chegava da empresa.

Seu irmão mais velho era o que podemos chamar de autossuficiente e não estava nem aí para os problemas com a bebida do pai, com os sumiços da mãe e muito menos para a solidão e as manias estranhas da irmã. Para ele, o que importava era apenas sua parte em alguma herança. Como presente para o amigo cibernético, falava delícias picantes para ele se masturbar pensando nela. Como o computador de casa ficava na sala, ela tinha que se conter. Nunca gozava. Ia dormir ouvindo alguma banda de punk.

Na manhã seguinte, seguia caminho andando para a faculdade e conversando com suas amigas. Falavam safadezas o tempo todo, uma tentando se posicionar melhor que a outra no topo da cadeia sexual. Carla contava para as amigas sobre o dilema de continuar sua tentativa de ter algo mais com o vocalista da bandinha que ela acompanhava ou se conhecia, finalmente, seu companheiro de internet.

Na classe, as quatro meninas discutiam os possíveis futuros da Carla com cada pretendente, assinalando prós e contras de continuar uma rotina de estilo e rispidez do cantor de hardcore ou tentar iniciar um namoro com um cara que ela nunca tinha visto ao vivo, mas que falava as coisas certas sobre amor, namoro e morar juntos. Todas elas queriam liberdade para explorar a feminilidade dentro de si, mas estavam mesmo presas aos moldes comuns de convivência e relacionamento. Todas concordaram que Carla deveria conhecer e dar uma chance ao moleque da sala de bate-papo.

À tarde, foi ao estúdio perto do Largo da Batata para terminar o que quer que tivesse com o vocalista que estava ensaiando. Não entrou no banheiro daquela vez e disse que não iria mais ver os garotos tocando. O cantor nem olhou na cara dela. Estava enrolando alguns cabos do microfone e disse ser uma pena, que gostava das chupadas dela. Ela explicou que estava com o coração balançado, que tinha que tentar a sorte em algo que pudesse dar certo. Ele botou a mochila nas costas e disse que estava atrasado para a aula de inglês. Foi embora sem desejar boa sorte à ela.

Em casa, Carla já estava em transe quando entrou no computador e marcou seu primeiro encontro com o namoradinho virtual. O menino não escondia o êxtase em receber a notícia e agendou o compromisso para o dia seguinte, no shopping. Poderiam comer alguma coisa e conversar. Ela disse que estava ansiosa para vê-lo no dia seguinte e contou como queria que fosse o final do encontro, explicou como queria fazer sexo com ele no estacionamento, dentro do carro dele. Ele bateu uma pensando nela. Ela não gozou.

A menina passou todas as aulas pensando no tal encontro, olhando para sua roupa, olhando-se no espelhinho que levava na bolsa. Suas amigas faziam perguntas o tempo todo, davam dicas de como proceder, contavam maluquices que já haviam feito dentro de um carro. Carla ficou empolada em divagações, estava cheia de vontades. Saiu mais cedo da faculdade para ver se comprava alguma roupa bonita no shopping, antes do garoto chegar. Escutou mais sugestões das amigas, devia comprar uma calcinha, devia arrumar a maquiagem. Pediu para uma delas assinar seu nome na próxima aula e foi embora.

No caminho para o metrô, repetia dentro da cabeça algumas coisas que queria falar para o garoto, montava em um mapa mental quais seriam as etapas do dia: comprar uma calcinha, trocar a roupa íntima no banheiro, encontrar seu futuro namoradinho em frente à loja de discos, comprar uns cds e ir com ele até a praça de alimentação, ver se havia algum filme bobo no cinema para aproveitarem a sala quase vazia na sessão das quatro, ir para o carro com ele. Tinha tanta coisa na cabeça que só ouviu o chamado lá pela terceira vez.

A rua estava vazia, só fábricas de portões enormes e fechados, alguns carros estacionados, o lotação indo e voltando na linha campus-metrô/metrô-campus. Parada e curiosa, seu corpo todo gelou quando avistou o homem dentro da caminhonete. Estava há menos de dois metros dela, tinha a porta do motorista aberta. Dentro da cabine, o homem. Um senhor de meia idade de barba nojenta e voz gutural chamando pela pequena. Ele tinha as calças arriadas e uma rola na mão. Estava chamando a japonesinha enquanto se masturbava.

Disse, do jeito mais repugnante que poderia, que só queria comprar a calcinha dela. Enquanto sua mão apertava a cabeça do pau, ele dizia para a menina que sentia de longe o cheiro de foda que ela soltava, que era o maior tesão e ele só queria pagar pela calcinha dela para cheirar, para enrolar na pica e lambuzar a rendinha. Ele queria apostar com ela que era de rendinha a calcinha.

Enquanto falava, começou a gaguejar e seus espasmos o levaram ao orgasmo. Sujou o volante da caminhoneta e soltou uma gargalhada saburrenta. A pequena Carla fingiu não ter visto nada e apertou o passo. Foi ouvindo, cada vez mais longe, os berros encardidos do homem que pedia para limpar as mãos na calcinha dela.

Chegou ao shopping tremendo. O garoto não entendia nada do que ela falava, um relato esbaforido e medroso. Levou a menina para a praça de alimentação e ela contou todo o trauma que acabara de enfrentar. Detalhes da cena, do que ela sentiu, toda a humilhação, o pavor, o abuso visual, a violação à distância. Enquanto ela vomitava informação, ele tentava identificar se ela tinha mesmo uma visão tão boa para ter todas as particularidades na cabeça ou se o choque havia inserido minúcias em seu relato.

Ela descrevia o saco do velho, o bafo extravagante que escapava por entre os dentes crespos dele, o chacoalhar da caminhonete que obedecia aos movimentos pélvicos do punheteiro.

Carla ficou quieta enquanto o garoto a abraçava. Fizeram um longo silêncio quebrado por ele, que insinuou que ela deveria ir para casa. Ela fitou os olhos doces do garoto e pediu desculpas, que logo foram aceitas. Disse que queria vê-lo de novo e que queria começar a ter algo com ele, mas que não tinha a mínima cabeça para qualquer conversa. Ele disse que entendia tudo, ofereceu-se para levá-la para casa, mas recebeu uma negativa. Ela disse que tinha dinheiro para pegar um táxi, que preferia ficar sozinha um tempo.

Ao se levantar da mesa fixa na praça de alimentação, o garoto segurou sua mão. Ele perguntou se, antes de partir, elapoderia deixar com ele sua calcinha. “É por segurança”, ele disse enquanto ela prestava atenção no volume que ele tinha no meio das pernas. Carla nunca mais viu o homem da caminhonete, nem o vocalista da banda de punk e nem o namoradinho virtual. Tentou apagar aquele trauma de sua vida ignorando os fatos, pessoas e lugares. Depois de tudo aquilo, ela passou a pegar o ônibus todos os dias – do metrô para a faculdade e da faculdade de volta para o metrô – e nunca mais passou pelo Largo da Batata e nem em frente ao shopping

em questão.

Mal sabia ela que encontraria todos os três nos outros homens que ela conheceria. Toda investida de cunho sensual ou sexual, qualquer traço lúbrico vindo do sexo masculino dava ao inconsciente dela o alerta que lhe embrulhava o estômago. Simplesmente não havia maneira de ela se desvencilhar disso e se entregar. Não dava mais.

Hoje, já com mais de trinta anos, ela ainda não conseguiu gozar com ninguém.

* * *

Tem mais contos inéditos no "Ela prefere as uvas verdes"

Esse conto faz parte do livro "Ela prefere as uvas verdes", o primeiro de autoria de Jader Pires, autor da casa. Já disponível nas livrarias Saraiva e Cultura.

Tem também um vídeo foi feito pela Monstro Filmes, a edição do livro realizada pela Editora Empírio, e o resultado final, incrível, foi esse:

Link Vimeo


publicado em 09 de Maio de 2014, 19:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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