Direta já: e se realmente colocássemos a mão na política? | WTF #6

O que é exatamente a Democracia Direta Eletrônica? Quais as vantagens e desvantagens de eliminar, em parte ou totalmente, o sistema de representação política?

 

Direta Já

O maior problema para as democracias é a concentração de influência.

O teórico do fascismo Robert Michels propôs que oligarquias, particularmente das elites intelectuais, são inevitáveis (“A Lei de Ferro da Oligarquia”). Porém, talvez seja possível desenhar um sistema participativo que diminua a concentração de influência, e onde as diversas tendências tendam ao equilíbrio (usando conceitos de teoria dos jogos e economia, como equilíbrio de Nash, ótimo de Pareto e criticalidade autoorganizada).

Algumas vezes aponta-se a causa principal da concentração de influência e outros defeitos das tentativas democráticas atuais como vinda de noções éticas: ainda esperamos que o político ideal não aja em autointeresse.

Sabemos que ele não vai ser um santo, mas ainda ficamos chocados quando percebemos que ele está usando a estrutura que comanda para, talvez principalmente, se manter no poder. Será que isso é mesmo tão chocante assim?

É óbvio e inevitável: por mais bem-intencionados que os políticos sejam, eles operam com interesses próprios. Boas intenções sem poder de mudança não adiantam muito, e todos sabem disso: então antes de quaisquer boas intenções, os fins acabam justificando os meios... nem há nada de tão errado com isso. O fato é que nossa expectativa com relação aos políticos beira a da santidade, e é claro que em nenhum dos mundos possíveis teríamos tantos santos.

A pior parte é nossa inocência em achar que é possível confiar em valores num esquema de coisas que não promove valores.

A ideia da democracia direta eletrônica (um sistema onde pelo menos boa parte das decisões e legislações são feitas com participação direta da população, através da web, em ferramentas parecidas com redes sociais) carrega a noção de tornar a participação mais imediata, e, principalmente, não espera dos participantes comportamentos ideais.

 

Um monte de gente participando da democracia

Todas as modificações estruturais, afinal, surgem naturalmente do não esperar um comportamento ideal dos participantes, mas de já desenhar as interações e ações dentro de escopos e funções que incentivem e promovam valores universais, tais como os previstos em constituições.

Isto é, podem ser propostos vários mecanismos para tornar o autointeresse menos interessante.

 

Marionetes da concentração de interesses

Atualmente, a eleição de representantes é o maior fator para a concentração de influências. Essas eleições dependem de campanhas que só podem ser pagas por agentes de grande poder econômico. Corporações.

As corporações, por sua vez, são consideradas “cidadãos”, e geralmente têm mais direitos do que o “cidadão humano”, baixíssima accountability*, e nenhuma consciência – em outras palavras, não são seres humanos. São meras máquinas de lucro determinados por estatutos e leis que necessariamente precisam beneficiar, economicamente e unicamente economicamente, seus acionistas.

 

(*”Accountability” significa algo próximo de “responsabilização”: ou seja, as corporações são difíceis de punir e regular. Manipulam pesquisas científicas e possuem indústrias de relações públicas.)

É importante frisar que essas estruturas não agem sequer exatamente de forma racional, que poderia ser considerada “autointeresse”, mas segundo perspectivas limitadas de lucros previsíveis, sem levar em conta nem as externalidades (isto é, tudo que não entra em negócios com essa companhia: outras pessoas ou o meio-ambiente), nem as necessidades humanas de seus próprios acionistas, funcionários de alto escalão e clientes/consumidores.

Assim a democracia representativa consiste em manipular a opinião pública para eleger o maior número de marionetes possível. Esses são os “interesses especiais“ que dominam governos inteiros, como a indústria armamentista e boa parte da indústria de energia domina os EUA. Outras indústrias possuem seus quinhões. Dessa forma são muitas camadas de abstração entre o eleitor e as ações políticas e legislativas: a publicidade, o representante, seus patrocinadores, algorítmos contratuais, legislação, regulação, pesquisa científica, ideologias, etc.

Na prática, os políticos eleitos para te representar ficam ocupados representando muitos outros interesses mais urgentes. Para eles.

 

Uma legislação que opere na velocidade da Tecnologia da Informação

Imagine agora uma espécie de wiki, fórum ou rede social onde as propostas são votadas diretamente pelos participantes voluntários.

Como uma wiki, até mesmo a estrutura de votação e opções podem ser decididas participativamente.

Em termos de opções, temos uma vasta gama de ferramentas possíveis:

 


  • Votação aberta ou fechada, opcional ou obrigatória, caso a caso;

  • Granularidade (quão gerais ou específicas, quão abrangentes ou microgerenciadas serão as questões votadas);

  • Varidade de apresentações das questões através de cálculos estatísticos de relevância de votações e resultados;

  • O cidadão poderia assinar e acompanhar certos temas de seu interesse por palavras-chave, assim como segue um usuário no Twitter;

  • Compartilhamento como nas redes sociais;

  • Diversos estilos e possibilidades de modificações e emendas (com históricos);

  • Uma estrutura hierárquica orgânica (como ocorre na Wikipedia ou no Pirate Bay, onde informação enganosa tende a ser corrigida, e onde se premia a participação em termos dessa retificação e outras contribuições);

  • Frequências de etapas e durações para determinadas votações ou votações sequenciais.


  •  

Seria possível mapear dados estatísticos sobre um único usuário, e até mesmo avaliar o seu entendimento de um tópico ao criar redundâncias (como se faz em testes psicológicos, por exemplo), ou através de outros meios, sendo cada um dos ítens votáveis. O peso dos votos pode ser variável e determinado através de qualquer deliberação conjunta, e assim por diante.

Na democracia direta eletrônica, nós poderíamos governar como numa imensa simulação ao estilo de SimCity, gamificandotodas as ações políticas através de simples prerrogativas coletivas e embasadas em valores também coletivamente definidos, como as constituições atuais.

 

Um monte de gente jogando SimCity

Todos ficam livres para agir eticamente e em prol do bem estar social. E a grande vantagem, nesse caso, é que se, por acaso, todos os funcionários de uma empresa agirem em autointeresse e beneficiarem sua própria empresa, não há problemas. Isso é esperado.

A granularidade do autointeresse, isto é, a pouca concentração da influência, tornaria isso apenas um fato corriqueiro do mundo competitivo dos negócios. Ninguém nega que isso aumenta a eficiência relativa de bens e serviços.

Isto é, trata-se simplesmente o lado positivo/natural que o capitalismo vê na competição quase darwinista por recursos e oportunidades. O foco na eficiência porventura tornou-se demasiado? Há limites para o crescimento? Nesses casos a própria participação permitiria naturalmente soluções mais equilibradas, já que o modo de participação é naturalmente elaborado com base em diminuir o incentivo ao autointeresse.

No que o autointeresse não é interessante à coletividade, ele é controlado pela coletividade com incentivos e punições (isto pode ser mais ou menos imposto numa determinada sessão da coletividade, mas pode ser também simplesmente mais ou menos poder sobre determinadas questões pontuais). O que interessa passa a ser a “consciência coletiva”, agindo através de toda informação disponível, com seus diversos graus de distorção e parcialidade: as modificações no sistema vão surgindo e se embatendo também darwinianamente.

A única prerrogativa é que os direitos tendam minimamente a uma igualdade ideal.

A questão do autointeresse torna-se meramente uma questão matemática: como há uma tendência em concentrar em benefício próprio (da própria economia familiar, bairro, empresa, cidade, etnia, time de futebol, e assim por diante), o sistema sempre amortizaria as externalidades com incentivos a ações desinteressadas. Em certo sentido, toda forma de governo faria isso: idealmente trabalharia pela coletividade, sem grupos de interesse especial. É essa a proposta de qualquer associação.

Dessa forma, todos concordarão que algoritmos que punam o autointeresse exacerbado e incentivem o benefício coletivo são bons, certo?

A legislação, do jeito que ela é hoje, já não serve para isso? Basta que aceitemos a ideia de uma legislação que opera na velocidade da TI, com revisões constantes, e correções de bugs, com a participação de todos.

 

Não seria tão difícil implementar

Estatísticas e teoria dos jogos já são utilizadas pelos atuais jogadores: apenas extenderíamos o jogo a todos, indistintamente. (Ideias como o Governo Aberto também paulatinamente viriam a ser necessárias.)

A própria representação pode não ser abolida totalmente: com ferramentas de responsabilização e incentivos e punições, o político (participante do fórum, com seu currículo público acessível – explícitos cada voto, cada proposta, cada ação, estatísticas, comparações) é fiscalizado diretamente, e tratado de forma particular: cada representante está sob avaliação e observação constantes, recebendo o sinal da coletividade.

Em contrapartida, ao representante podem ser atribuídas ações e votações que não funcionariam de forma direta: por exemplo, enquanto o orçamento pode ser decidido, pelo menos em parte, de forma direta, pela participação eletrônica, coisas como impostos não parecem poder ser totalmente determinadas pela participação direta, sob o risco de uma Tragédia dos Recursos Comuns.

De qualquer forma, uma radical abertura da legislação e votação seria facilmente implementável com recursos atuais, se apenas houvesse pressão para tanto. Um estudo científico multidisciplinar, envolvendo economia, matemática, psicologia, sociologia e computação aplicada pode elaborar um sistema inicial, começando em âmbitos menores, tais como escolas e condomínios, passando para bairros e cidades e assim por diante. Nesse momento alguns experimentos estão sendo feitos em escolas e universidades com a Democracia Direta Eletrônica, e governos como o da Suíça já são bastante geridos de forma direta, ainda que não eletrônica.

Também a Islândia está votando uma Constituição escrita coletivamente pelo povo. Em verdade, pode levar bastante tempo, mas é algo que naturalmente ocorrerá se a situação atual não for sacudida por grandes guerras ou catástrofes.

 

...mas também não seria completamente fácil

Basicamente o maior risco seria o de uma tecnocracia. Isso se a considerarmos evitável, o que pode não ser o caso. Com a nossa já presente sinergia com a tecnologia, é fato de que as maiores empresas e as maiores forças políticas já são tecnocratas: dominam não só o conhecimento sobre a mente, a publicidade, e as midias, mas também sobre a matemática, as teorias de decisão, e assim por diante.

Cada vez mais os representantes fazem campanha com “economês” na ponta da língua, e equipamentos de medida do impacto de cada ação são examinados de forma científica. A máquina do estado nunca foi tão máquina, e na verdade os regimes totalitários e as reflexões de Kafka e de todas as distopias da Ficção Científica só se tornaram possíveis pela cientifização e tecnologização das burocracias.

A panoptização é universal, mecanismos que limitam os direitos civis a privacidade já abundam, e, combinados com concentração de influências, tornam-se um tanto piores.

O que precisamos é botar consciência nessa máquina, socializá-la: e isso se obtém através de ideias de participação, de que já temos exemplos tão bons, tais como a própria Wikipedia (ou até mesmo o Reddit ou ferramentas de colaboração como o GitHub).

O potencial é tão grande que com certeza passaremos por grandes coisas fantasticamente boas e ruins até que a matemática e as ideologias estabilizem-se num grande equilíbrio taoísta. É o caminho.

 

*   *   *

Na coluna “WTF”, Eduardo Pinheiro tem total liberdade para nos ajudar a ver o que precisa ser visto.

WTF” no sentido do espanto que dá origem à filosofia, à ciência, às tradições de sabedoria. E WTF no sentido do impacto que isso talvez nos cause, quebrando cegueiras, ilusões.

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publicado em 25 de Outubro de 2012, 07:42
File

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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