Futebol no radinho

Houve um tempo, sem ser saudosista nem nada, em que o mundo era mais fantasioso, mágico, fantástico, inocente. Era uma épica em que era necessária uma boa dose de imaginação pra fazer com que o mundo fosse, enfim, um mundo, e não só o bairro em que viviam as pessoas. Era assim com as histórias que os pais contavam pros filhos, sem livros, sem televisão, sem imagem pronta, definida.

Só que, mais que a necessidade de se imaginar, era de extrema importância a capacidade de saber contar algo, pra que toda essa mágica acontecesse da forma mais gostosa dentro da cabeça de cada um que imaginasse qualquer tipo de cena.

Achei um rádio antigo do meu pai. Sintonizei na AM mil e alguma coisa e estava passando um jogo do meu time. Me lembrei de quando eu ouvia futebol no rádio. Me lembrei de quando prestava atenção no que diziam os contadores de histórias da vida real.

Todos deliravam com os textos do Nelson Rodrigues sobre futebol. Era como torcer o memso jogo, mas no dia seguinte

Futebol no rádio não tem replay nem tira-teima. Apenas confia-se os ouvidos e se faz silêncio para escutar a história do jogo pelo narrador que pronuncia palavras mais rápido do que respira. Usa-se a imaginação. Desenha-se na tua própria mente cada jogada, cada drible. Idealiza-se cada lance.

Porque no rádio não se vê a cara do herói do teu time e nem do carrasco do adversário. Xinga-se e esmurra-se as ondas sonoras. E o ritmo delicioso da narração empolga e leva junto o torcedor. Nenhum jogo é mais sofrido e mais disputado, mais glorioso e mais raçudo e nem mais bonito do que aquele que é assistido no radinho.

Quando o atacante parte pro gol e dribla o zagueiro, sobe o tom de voz. Quando ele penetra na área e bate pro gol, pausa. Uma pausa para tomar ar para gritar. E não se sabe se ele vai gritar "pro gol" ou "pra fora". E o jogo se suspende no momento decisivo, que leva um segundo mas parece uma eternidade enquanto o maldito ainda toma ar. E vem, finalmente o grito que alivia ou que aflige, se foi gol do teu time ou do outro, se a bola do teu atacante foi pra fora ou se foi a do outro. E logo mais tem outro momento decisivo.

Dois de agosto de 1959. Rua Javari, Juventus x Santos. Segundo o próprio autor da obra, Pelé, foi neste jogo que fez seu gol mais bonito da carreira. Deu 4 chapéus, sendo o último no goleiro e cabeceou pra dentro do gol.

Uma obra de arte.

Pode procurar no Youtube, o máximo que vai ser encontrado é uma animação digital do gol, porque nenhuma câmera filmou o gol mais bonito do melhor jogador do mundo. Há, no máximo as narrações de rádio que foram usadas para fazer a reconstituição do gol. E como será que cada um que estava ouvindo o jogo no rádio naquele momento imaginou o gol de Pelé?

Anos 2000. Jogo histórico entre Palmeiras x Vasco, final da Copa Mercosul. Virada dramática do Vasco no último minuto de jogo, e no comando do rádio uma voz que conta os fatos com uma emoção que não importa para que time você torça, vai te arrepiar até o cabelo do saco. Luiz Penido, o cara é um mito.

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Quem gosta de futebol conhece a Batalha dos Aflitos. O jogo ficou eternizado pelo excesso de drama entre Gremio e Náutico disputando o acesso à série A do campeonato brasileiro.

Os narradores gaúchos se encarregaram de dar uma carga de emoção maior ainda. Parece que o narrador está chorando (se não estiver), parece que é o maior torcedor do time pelo qual narra o gol. É impressionante.

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E agora só pra fechar, mais uma dele. Luiz Penido, o narrador dos jogos dos times do Rio de Janeiro, narra a vitória sensacional do Flamengo sobre o Vasco que deu o tri-campeonato estadual ao rubro-negro.

Só para provar que ele não é vascaíno, como pareceu no vídeo anterior. Não há aqui amor a um clube específico, há apenas amor à profissão, ao futebol, à emoção.

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Como eu gostaria de estar em cada um desses jogos, na torcida do time que venceu ouvindo ao vivo cada uma dessas narrações pelo rádio. É história que ultrapassa preferência por camisa.


publicado em 25 de Novembro de 2012, 08:00
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Luis Guilherme

Pensou em ser militar mas não sabia lidar com a hierarquia. Pensou em ser jogador mas não sabia lidar com a bola. Pensou em ser padre mas não sabia lidar com a bíblia. Agora pensa que sabe lidar com palavras. Mas não engana a ninguém.


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