Meu pai e algumas músicas de presente para o futuro

A música é um presente de geração a geração.

Meu pai sempre foi uma forte influência musical em minha vida. Com um gosto apurado e eclético que vai de Chico Buarque a Freddie Mercury, passando por Cauby Peixoto, Taiguara, Tim Maia Tom Jobim e Roberto Carlos.

Sempre me recordo, quando menino, de ouvir com ele suas músicas favoritas em CDs e vinis. Ele, por sua vez, foi bastante influenciado pelo meu avô, que era radialista em Campanha, uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, nos tempos de Ângela Maria e Nelson Gonçalves, quando a música era só no gogó.

Lembro de um amigo do meu pai comentar certa vez que Elis Regina havia sido a primeira cantora a registrar sua própria voz como um instrumento musical na Ordem dos Músicos do Brasil.

Fiquei admirado com aquilo, afinal, a voz é um instrumento poderoso de transformação social e de rebeldia. Não à toa, que uma das piores formas de opressão é o silêncio manifestado na indiferença em relação ao próximo.

Aqueles que ousam quebrar esse silêncio são perseguidos e reprimidos, como é o caso do músico e poeta Arnaldo Antunes, com o recente single “O Real Resiste”, que esteve envolvido em um episódio de censura pela TV Brasil.

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Sua música brinca com a imaturidade da nossa democracia, como se fosse uma “canção de ninar” para as consciências políticas do nosso tempo, cercadas de bichos papões. Ironicamente, ele escancara os absurdos que tentam confundir o senso crítico da realidade e usurpar nossa voz. Como quem grita em meio à “tirania eleita pela multidão”, Arnaldo saca sua voz não mais como instrumento, apenas, mas como uma arma, no estilo Facção Central, em seu polêmico clipe “Isso Aqui É Uma Guerra”.

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Assim como ele, Geraldo Vandré, em 1968, ousou cantar “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, que ficou em segundo lugar no emblemático Festival da Canção da Canção. Sob as vaias ensurdecedoras da plateia que discordava da decisão dos jurados, a música foi escolhida pelo povo como a favorita, se tornando um símbolo de protesto até os dias de hoje. Em dezembro daquele ano fora decretado o AI-5, constantemente assediado e cobiçado pelos reacionários de plantão como forma de calar qualquer opinião dissonante.

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Nos anos de chumbo que se seguiram, Geraldo Vandré teve seus direitos políticos cassados pela Ditadura Militar. Por sua conduta considerada subversiva, ficou exilado no Chile e depois de uma auspiciosa “visita” ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), em 1973, nunca mais se escutou ele cantando sua famosa canção.

Após 50 anos de silêncio, ele voltou aos palcos com a Orquestra Sinfônica da Paraíba, vestindo um uniforme branco, batendo continências e prestando homenagens à Força Aérea Brasileira.

Geraldo nega veementemente ter sido vítima de tortura, afinal, como diz Arnaldo em sua canção: “torturador não existe, deve ser ilusão, monstro, vampiro, assombração.”

Por sorte, eles não estão sozinhos nessa luta de vozes afiadas. Aliás, este ano nos presenteou com o lançamento de três obras primas da música brasileira, daquelas que certamente ecoarão pelas próximas gerações, como é o caso dos discos Planeta Fome (Elza Soares), Bloco na Rua (Ney Matogrosso), Amarelo (Emicida) e Amar é Um Ato Revolucionário (Chico César).

Aqui meu pai aparece de novo na história. Sintonizado em amplitudes moduladas no seu rádio de pilha, ele sempre está a descobrir coisas novas para o seu repertório.

Foi assim que descobriu o novo disco de Elza Soares, “Planeta Fome”. Depois de escutar o álbum umas 30 vezes, ele me liga empolgado dizendo como estava encantado por aquele disco e que eu precisava escutar.

Sem dúvida, com seus 89 anos de carreira, Elza Soares está na sua melhor fase, lançando este novo disco na sequência do vívido “Deus é Mulher”. Em parcerias com expoentes da música como BNegão e BaianaSystem ela se reinventa, misturando estilos para escancarar as contradições e a diversidade dos Brasis. 

No disco, Elza também empresta sua voz inconfundível e poderosa para ressuscitar Gonzaguinha, cantando dois de seus clássicos “Comportamento Geral” e “Pequena Memória de Um Tempo Sem Memória”, como quem oferece um bis ao público deste cantor tão importante da nossa música popular, por vezes esquecido, mas sempre atual. Destaque também para a belíssima arte de Laerte Coutinho que estampa a capa do disco. O sucesso foi tanto que duas faixas já viraram trilha sonora de novela e minissérie. Depois desse trabalho, esta cantora guerreira certamente não vai sucumbir, como deixa claro na música “Libertação”! 

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Outro gigante da MPB que resolveu soltar a voz ano passado foi Ney Matogrosso, com o novo álbum “Bloco na Rua”. No repertório farto de 20 músicas, resgata canções lançadas na barra pesada da década de 70 como “Coração Civil”, “Sangue Latino” e “Eu Quero Botar Meu Bloco na Rua”.

Os destaques ficam para “Tem Gente Com Fome” e “Mulher Barriguda”, inspiradas nos versos do poeta do povo Solano Trindade. Com a sutileza de um pavão misterioso, Ney consegue ser rebelde sem ser panfletário. Como ele próprio diz: “Não sou de discurso, mas isso não me impede de falar e cantar o que eu quero. Eu sou o discurso. Dizem: ‘pega a bandeira’. Eu sou a bandeira, não preciso pegar.”

 

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Mais um disco impactante lançado ano passado foi o álbum “AmarElo”, do rapper Emicida.

Há uns nove anos atrás, meu pai estava assistindo o programa “Manos e Minas” na TV Cultura, sobre a cultura periférica da cidade de São Paulo. Então, ele me chamou e disse: “filho você precisa escutar esse cara”. Era o Emicida! Desde então, acompanho toda a trajetória dele e admiro bastante seu trabalho como compositor e produtor. 

Com trechos da música “Sujeito de Sorte”, do lendário Belchior (meu pai também é fã dele), e participação especial de dois ícones pop LGBT, Majur e Pablo Vittar, a faixa “AmarElo”, que dá nome ao disco denuncia a violência machista, homofóbica e racista, em um dos países que mais mata negros, mulheres e transexuais no mundo.

Não são apenas números, são vidas humanas resistindo para sobreviver.

Com uma atitude afirmativa e corajosa, a música declama: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.”

A letra, que pede licença para não falar das dores que roubam a voz dos oprimidos, é um banho de empatia para lavar a alma!

 

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Para fechar essa excelente safra de músicas, Chico César lançou também o disco: “O Amor é Um Ato Revolucionário”. Nascido em 1964, o cantor paraibano que se tornou um símbolo da consciência negra com seu sucesso “Mama África”, vem quebrando tudo. Chico César consegue, literalmente, transformar suas palavras em pedras contra o fascismo no reggae “Pedradas” e satiriza o circo da política com a canção “Cruviana”. Nesse disco, ele revela a voz negra de Agnes Nunes para somar no coro da rebeldia de mulheres que não se deixam calar, como Nina Simone e Elza Soares.

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Depois desse êxtase sonoro efervescente, só tenho a agradecer ao meu pai pela formação cultural que recebi e que me abriu os ouvidos para a diversidade de gêneros e estilos musicais, que é onde mora a beleza dessa arte. Mais grato ainda por poder ouvir junto com ele todos esses discos fantásticos. 

Afinal, a música é uma experiência coletiva que só faz sentido se puder ser compartilhada. Por isso, estou aqui dividindo com vocês essas canções que entoaram este ano que passou e certamente ficarão de presente para o futuro!


publicado em 24 de Janeiro de 2020, 00:00
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Lucas Prado

Lucas Prado, 35 anos, manaueiro (nascido em Minas Gerais com raízes em Manaus), servidor público, entusiasta de inovação, cinéfilo, colecionador, escritor e poeta, autor do livro "Ninho".


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