O empoderamento também está no lápis cor de pele

E na princesa de conto de fadas, no clipe da música pop ou no desenho infantil.

A gente conhece bem a história. Quando aquele pedacinho de gente solta o primeiro grito na sala de cirurgia da maternidade, um carregamento inteiro de expectativas já o espera em casa. Do primário à tese de doutorado com a cura do câncer. Do primeiro namorado à quantidade de bem casados da cerimônia em frente ao mar. Da lembrancinha de dia dos pais feita com palito de sorvete ao dia da formatura na faculdade de direito.

Junto com as esperanças, são compradas algumas bonecas. Aquelas que as crianças costumam ganhar nos aniversários, pra depois cortar o cabelo, fazer maquiagem com canetinha, afogar no copo de água e quebrar o braço.

Minha primeira boneca foi uma barbie bailarina. Ela tinha o cabelo loiro brilhante, pareciam fios de ouro. O tom da pele plastificada, se é que dá pra chamar assim, era branco. Cintura fina, pernas longas, olhos verdes. Linda.

Levava ela para o dia do brinquedo da escola, toda toda. Na hora do recreio, sentávamos eu e outras meninas pra decidir qual das barbies cada uma ia representar. A regra era uma só: tínhamos que parecer com a que fossemos escolher.

Meu cabelo não era liso nem loiro, minha pele não era branca. No “aí faz de conta que eu sou ela”, eu nunca tive uma boneca parecida comigo. Isso me incomodava de uma forma que eu não sabia explicar. Era quase como um tampão invisível na minha boca. Mas eu ia dizer o que?

Na aula de artes, os desenhos que pediam pra gente pintar eram, vez ou outra, de pessoas. O espírito competitivo tomava conta de todas as crianças nessas horas, e a correria pra conseguir o lápis cor de pele só não era maior que a minha vontade de entender: cor da pele de quem? Não passava nem perto da minha. 

O tampão invisível mandava lembranças novamente.

Em 2015, uma marca lançou um conjunto de giz de cera com várias "cores de pele"

Anos mais tarde eu descobri que o nome do tampão era falta de representatividade.

Nos brinquedos, nas músicas infantis, nos desenhos, nos cargos públicos, nas cadeiras das universidades, nas novelas, até nos comerciais de margarina. E isso já deu o que falar. Durante um tempo eu comprei o lado da discussão que gritava sobre o quanto é genérico e precipitado enxergar racismo nessas pequenas situações. 

Mas desde a época das bonecas muita coisa aconteceu. Eu comecei a sentir na pele e ter consciência de muitas daquelas pequenas situações que, antes, eram só um incômodo no estômago. Quando entrei pela primeira vez na sala do ensino fundamental II, por exemplo, a sensação foi brutal. Todos lá eram como aqueles lápis cor de pele que eu usava pra pintar meus desenhos da infância, enquanto eu era a única "moreninha".

Aqui eu faço um adendo necessário. Morena: era assim que me chamavam. "Fica tranquila, você não é negra. Só um pouco queimadinha". Ouvi isso a minha infância inteira e sei que muitas crianças também escutam. Isso entra na cabeça de tal forma que o descobrir-se negra vira um processo complicado.

Eu só fui tirar a limpo esse papo muito tempo depois, e entre as tantas discussões que passaram por mim, poucas conseguiram resumir tão bem meu sentimento quanto esse vídeo que eu compartilho com vocês:

 

Adendo feito, vida que segue. Na faculdade a questão se manteve, e o número de pessoas brancas era absurdamente maior; os negros apareciam depois, na hora de fechar as salas e limpá-las. E é assim nos eventos e nos locais de trabalho também. 

Aos poucos, eu fui me dando conta de que aquelas bonecas pretas que não existiram nas brincadeiras de infância contavam muito mais do que eu podia saber. Elas eram um retrato do que tá escancarado por aí.

Quando se é uma criança negra, crescer rodeada por princesas brancas, de olhos claros e cabelos loiros, acaba criando diversos ideais, inclusive de beleza, que afetam a auto-estima e a identidade. Por que isso é o bonito? Por que nenhuma daquelas atrizes da novela se parecem comigo? Como eu deixo meu cabelo naquele tom? Porque praticamente nenhuma princesa é negra?

Agora eu vejo o quanto todas essas questões tem continuidade durante a vida. Os pequenos detalhes do racismo começam na infância e vão se estendendo cada dia mais. É claro que resolver essa questão não é tão simples, mas o empoderamento das crianças é essencial, e parte disso também é sobre lápis de cor e bonecas com cabelo cacheado, crespo, pele negra, boca grande, nariz largo. Afinal de contas, qual o problema? 

Deixo pra vocês essa música da Mc Soffia, que me enche de orgulho sempre que escuto, e um pedido de conversa. Trocar experiências sempre me anima e enriquece o debate. Como é esse papo pra vocês?  

Ah, e é sempre bom lembrar: representatividade importa!

 


publicado em 16 de Setembro de 2016, 00:05
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Carol Rocha

Leonina não praticante. Produziu a série Nossa História Invisível , é uma das idealizadoras do Papo de Mulher, coleciona memes no Facebook e horas perdidas no Instagram. Faz parte da equipe de conteúdo do Papo de Homem, odeia azeitona e adora lugares com sinuca (mesmo sem saber jogar).


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