Os Desviantes (Outsiders): você é um deles?

You may say, I'm a dreamer. But I'm not the only one. I hope someday you'll join us. And the world will be as one.

De Kurt Cobain a Jack Kerouac, do jovem que inspirou o filme (e livro) Na Natureza Selvagem até aquele nosso vizinho que passa horas na internet auxiliando os ataques do grupo Anonymous, há meio século um garoto prodigioso tentou traçar o perfil desses eternos inconformados.

Esta é a breve história de uma busca que o levou a escrever o mesmo livro 109 vezes.

Colin Wilson

Em 1955, um jovem inglês de 24 anos que, quase sem um tostão, passava noites ao relento no parque londrino de Hampstead Heath, protegido por seu saco de dormir e os dias no Museu Britânico, abrigando-se do frio europeu, decidiu escrever um livro ali, na Sala de Leituras do museu.

Não se tratava de um romance.

Era um curioso e ousado estudo sobre um tipo específico de humano. Após publicada por um editor entusiasmado com as ideias do talentoso desconhecido, a obra fez um estrondoso sucesso. Êxito de mídia e de vendas por cerca de um ano, Colin Wilson, então considerado pela mídia um gênio precoce, a seguir voltou ao anonimato com rapidez extraordinária – um fenômeno até hoje visto como difícil de explicar.

Escrito com paixão e habilidade, The Outsiders propunha a existência, entre nós, de um determinado tipo de indivíduo, cuja principal característica seria o fato de possuir a sensação íntima de que seus valores não correspondiam aos de nossa sociedade, de que se encontrava desconectado do mundo moderno e de que a vida era muito mais fascinante do que seus contemporâneos demonstravam perceber. Descontentes com os caminhos tradicionais estabelecidos pela sociedade, tais pessoas tentariam, não sem riscos, construir seus próprios caminhos de forma criativa, produzindo arte e ideias pouco usuais durante sua trajetória pessoal.

Analisando as vidas de gente como Van Gogh, William Blake, Herman Hesse, Ernest Hemingway e Nietzsche, o curioso livro pretendia ser um verdadeiro tratado sobre pessoas que possuíam dois elementos em comum: a noção de que não se identificavam com os valores desta sociedade e o anseio de criarem sua própria forma de viver. Colin Wilson decidiu chamar-lhes de "Outsiders".

Outsiders não tem uma tradução literal possível para o português. Há muitas possibilidades de tradução aproximada, mas prefiro a alternativa poética de utilizar a expressão "Desviante". A palavra possui, na língua portuguesa, uma riqueza de significados e ajusta-se ao tema com perfeição: é aquele ou aquilo que se desvia do caminho "usual", que diverge do comportamento majoritário".

Na sociologia, o estudo do comportamento desviante é o estudo do "fora da lei", do "louco" e de todo aquele que foge às normas sociais.

Kurt Cobain

Entre os exemplos de Desviantes famosos apresentados por Colin Wilson, o leitor facilmente pode associar outros como Dylan Thomas, David Foster Wallace, Kurt Cobain, Jim Morrison, Roberto Freire (para falar de Brasil), Janes Joplin, Thoreau, Anais Nin, Kerouac, Hendrix, Lou Andreas-Salome, Ginsberg, Lenon e Bukowski. Santos e doidos, tolos e gênios a um só tempo, seu traço em comum seria a sensação íntima de que algo está errado, de que a sociedade está tomando ou sempre tomou um rumo que não atende às suas expectativas, o que faz com que sigam um trajeto discordante da maioria, ao menos em parte.

Desse trajeto do Desviante, surgiria o atrito com seus contemporâneos, a sensação de incompreensão e estranheza. Se não se encontram isoladas no âmbito emocional (um Desviante pode ser alguém muito popular), tais pessoas sentem, ao menos, uma forma peculiar de solidão, decorrente da dificuldade de expressar sua forma de ver o mundo, seus anseios pessoais e, principalmente, a exata razão pela qual não se consideram representados e tampouco legitimam a sociedade moderna.

Na tentativa de superar essa sensação de incomunicabilidade, de aliviar o atrito, os Desviantes recorreriam à criação artística, à formulação de ideias inusitadas ou à elaboração de formas inovadoras de viver. Assim, a um só tempo enriqueceriam a comunidade cujos valores questionam e denunciariam as deformações que ela tenta ocultar.

Mas seria um equívoco supor que apenas encontramos Desviantes entre artistas e filósofos. Não é difícil lembrar de exemplos reais de várias pessoas "comuns" que correspondem à descrição que faz Colin Wilson. O filme Na Natureza Selvagem levou para os cinemas a história real de Christopher McCandles, um jovem americano comum que levou até as últimas consequências sua tentativa de enfrentar a situação de ser um Outsider, de sentir-se desconectado do entorno social em que vivia.

E creio não ser preciso ir muito longe para que cada um de nós, em nossas relações pessoais, lembre-se de, pelo menos, uma pessoa que, dotada de certo espírito criativo ou poético, parece não se adequar aos papéis tradicionais que a sociedade lhe oferece, rompendo laços ou levantando questionamentos constantes sobre o modo "normal" de viver.

Ernest Hemingway

Nesse sentido, o livro Apanhador no Campo de Centeio, de Salinger, oferece um fiel retrato do adolescente sensível e inteligente que encara a vida na sociedade moderna como um estranho jogo do qual não quer participar. Embora tal perfil corresponda ao de muitos jovens, não se pode supor que tal característica seja própria apenas de jovens ou de adultos que se recusam a amadurecer: seria, na verdade, a característica de uma espécie de indivíduo muito peculiar.

Há algo de gloriosamente ingênuo na juventude, de modo que nos sentimos portadores de um passe livre para expressar e fazer coisas que, em um adulto, pareciam vergonhosas não fosse nossa idade, razão pela qual é nessa faixa etária que a maioria dos Desviantes costuma manifestar mais vivamente sua sensação de "não pertencimento" à sociedade.

Daí o costumeiro equívoco de confundir o sentimento típico do Desviante com a imaturidade da adolescência. Mas essa sensação de estranhamento é algo perene que acompanhará o indivíduo até mesmo na terceira idade, ainda que, em geral, guarde então a conveniente reserva de quem está sujeito a um julgamento mais rigoroso do que aquele reservado aos jovens.

Colin Wilson, ainda vivo e com oitenta anos, escreveu The Ousiders de modo febril e sem suspeitar que aquele trabalho o alçaria à fama e à fortuna rapidamente. Atordoado com o súbito sucesso e lucros, é possível que sua mente um pouco delirante tenha deixado-se levar por uma excessiva autoconfiança: entre festas e escândalos, escreveu ao longo da vida 109 livros sobre diversos assuntos aparentemente desconexos, tais como civilizações alienígenas, criminologia, poltergeists e existencialismo.

Para ele, nenhum desses temas era desconexo. Estariam, em sua cabeça, intimamente relacionados, de modo que afirmava ter escrito o mesmo livro cento e dez vezes.

O autor de The Outsiders, percebemos, não deixa de ser um pouco maluco. Como Philip L. Dick e Willian Reich, ele é, a um só tempo, louco e gênio, misturando verdades fundamentais sobre o desenvolvimento humano com excêntricas teorias em que comete o pecado de literalizar ideias que deveriam permanecer no mundo simbólico, tomando-as ao pé da letra (veja, por exemplo, o conceito de "orgônio" de Reich).

Em algumas de suas obras, como Atlantis and the Kingdom of the Neanderthals, Wilson propôs que os Desviantes possuiriam certos traços genéticos do "Homem de Neandertal", primatas que coexistiam com nossos antepassados, eram tão inteligentes quanto o Homo Sapiens e que foram extintos por algum motivo ainda não descoberto lá pelos idos de 30 mil a.C.

Jim Morrison

Mas não devemos colocar o bebê fora junto com a água da bacia. Os delírios posteriores de Wilson não devem ofuscar a lucidez de suas observações iniciais. Isso porque, às vezes, é preciso que um espírito destemido flerte com o insano a fim de que, ingressando no labirinto do inconsciente, retorne dessa jornada com percepções inusitadas e relevantes sobre a condição humana.

Muitas vezes, tal espírito, tentando compreender racionalmente as informações que lhe chegam, literaliza metáforas que, se compreendidas como símbolos e não como realidade fática, apontam para verdades fundamentais.

Portanto, descontadas as pirações posteriores de Colin Wilson, seu primeiro livro é de uma clarividência reveladora – e a favor disso está o estrondoso sucesso da época. Em The Outsiders há trechos eloquentes a respeito de quem seriam e do que pensariam os tais Desviantes. Para Wilson, "aquele que está interessado em como deveria viver ao invés de simplesmente aceitar a vida tal como ela se apresenta, automaticamente é um Desviante" (1).

Ou seja, é: "alguém que não pode viver confortavelmente isolado no mundo dos conformados, aceitando as coisas que vê e toca como a realidade. O Desviante enxerga demasiado e de forma muito profunda, e o que ele vê é caos" (2). Tal tipo peculiar de pessoa percebe que "a maior parte dos homens não possuem nada em suas cabeças que não seja suas necessidades físicas" e esses homens, se colocados em "uma ilha deserta, com nada para ocupar suas mentes, enlouquecerão, por faltar-lhes verdadeira inspiração". Por tal razão, "a maldição de nossa civilização é o tédio" (3).

Desse modo, o Desviante sentiria "profundamente a injustiça que há em seres humanos terem de viver em tal anestesiante nível de cotidiana trivialidade" (4). "Somos todos prisioneiros – um Desviante sabe disso, e ele deseja escapar dessa prisão, mas não se unindo às fileiras das multidões, que 'trocam de camisa todo dia, mas nunca mudam a compreensão que têm de si mesmos'"(5).

Para um Desviante, "os homens são como rádios quebrados, e antes que possam funcionar adequadamente, precisam se concertar" (6). "Às vezes, o esforço de um artista que é Desviante faz com que pense em suicídio, mas, antes de chegar a esse ponto, o universo repentinamente parece fazer sentido novamente, e ele tem uma visão de seu propósito", e o sentimento que disso surge "não é a cômoda e vaga harmonia de um bebê adormecido, mas, antes, o encandecimento de todos os sentidos, e a percepção de um estado da consciência que é desconhecido do homem comum" (7).

Charles Bukowski

Porém, a importância da obra do errático Colin Wilson não é tanto a de apresentar um conceito rigoroso do que seriam os tais "Outsiders". A principal importância do livro seria a de sugerir, pela primeira vez, a existência de uma espécie de ser humano que, embora composta de indivíduos distanciados entre si no tempo e no espaço, compõem uma só comunidade, um só grupo.

Aqui, qualquer semelhança com a concepção apresentada por Herman Hesse a respeito dos "cainitas" em Demian não seria mera coincidência (9): os Desviantes, ao contrário do que parece, não seriam indivíduos isolados. Formam, na verdade, uma espécie de Diáspora, uma comunidade de indivíduos geograficamente dispersos no planeta, mas unidos por uma só experiência de estranhamento em relação ao mundo atual, uma só percepção de que a vida é muito mais sublime do que os outros demonstram supor.

À essa distância geográfica que possivelmente os separa, estaria contraposta a existência um terreno emocional comum entre os Desviantes. E a Internet, talvez, fosse uma forma de iluminar esse terreno até agora obscuro, envolto em névoas que não permitiam a um Desviante perceber a existência de outros.

Seria, portanto, errado supor que o Desviante quer permanecer Desviante. O "desvio" quer tornar-se a norma, mas não pelo retorno ao caminho tradicional, e sim pela condução de todos ao seu caminho ou até mesmo à ideia de que cada qual deve construir seu próprio caminho.

"O Desviante quer deixar de ser um Desviante", diz a introdução de The Outsiders, "o Desviante quer sentir-se integrado como ser humano, atingindo uma fusão entre coração e mente" com os outros seres humanos". Afinal "o homem não é uma unidade, ele é muitos", e a humanidade é composta dessa multiplicidade de indivíduos, e qualquer coisa só é digna de ser realizada se o homem tornar-se uma unidade.

Portanto, "o reino dividido precisa ser unificado". Como Christopher McCandles descobriu ao final de sua jornada, "a felicidade só é real quando compartilhada".

Se antes o Desviante "via o mundo como um lugar principalmente estável, no qual toda espécie de banalidades assumem a importância que teriam em uma pequena cidade do interior", ao perceber o caráter relativo dos valores predominantes na sociedade ele "vê o mundo como o campo de batalha de imensas forças" que se digladiam (8).

Capa do disco Electric Ladyland, do Jimi Hendrix

O Desviante, por assim dizer, é o portador de uma "Meme", de uma ideia sobre como o mundo deve ser e que, rejeitando a ideia atualmente majoritária, quer tornar-se, um dia, ela própria predominante.

Talvez tenha sido de forma acidental que, na sala de leitura do Museu Britânico, ocorreu àquele jovem escrever, de forma talentosa e com a inspiração adequada, a respeito de um assunto que seria recepcionado como de fundamental importância por seus contemporâneos. Há algo em comum entre Colin Wilson e outros talentos inusitados que surgiram naqueles tempos.

Como The Denial of the Death de Ernst Becker, The Doors of Perception de Huxley e The Origin of Consciousness de Julien Jaynes, sua obra The Outsiders encontra-se no descolado e exclusivíssimo rol de livros que, escritos no fluxo e refluxo do movimento hippie (entre as décadas de 50 e 70), apresentavam visões inovadoras e desafiantes a respeito da natureza humana, sintetizando essas ideias com rigor erudito e certa poesia.

De tais obras, poderia ter surgido a base para o fortalecimento dos valores propostos pela contracultura. Infelizmente, a maior parte do movimento hippie largou os livros e optou por seguir o caminho das viagens licérgicas e do misticismo oriental mal digerido.

Deu no que deu.

Texto original das citações de Colin Wilson, extraídos de The Outsiders - Ed. Tarcher, reissue edition, 1987:

1 "The man who is interested to know how he should live instead of merely taking life as it comes, is automatically an Outsider."
2 "The Outsider is a man who cannot live in the comfortable, insulated world of the bourgeois, accepting what he sees and touches as reality. 'He sees too deep and too much', and what he sees is essentially chaos."
3 "Most men have nothing in their heads except their immediate physical needs; put them on a desert island with nothing to occupy their minds and they would go insane. They lack real motive. The curse of our civilization is boredom."
4 "He has a deep sense of the injustice of human beings having to live on such a lukewarm level of everyday triviality".
5 "We are all imprisoned- an Outsider knows it- and he wants to escape it, but not by joining the ranks of the masses (the men with business cards) who 'change their shirts every day, but never their conception of themselves".
6. "Men are born like smashed radio sets, and before they can function properly, they must repair themselves."
7. "Sometimes the strain makes the Outsider-artist think of suicide, but before he gets to that point, the universe is suddenly making sense again, and he has a glimpse of purpose. Moreover, that sense of accord is not the warm, vague harmony of a sleeping baby, but a blazing of all the senses, and a realization of a condition of consciousness unknown to the ordinary bourgeois."9 "Man is not a unity; he is many. But for anything to be worth doing, he must become a unity. The divided kingdom must be unified".
8. "While before, he had seen the world as rather a static place, where all sorts of trivialities assumed importance as they would in a dull country village, he now sees the world as a battle-ground of immense forces."
9. Em Demian, a lenda sobre a maldição que Jeová impôs aos descendentes de Caim após seu crime seria uma ancestral metáfora a respeito de indivíduos dotados de certas peculiaridades desviantes.


publicado em 08 de Maio de 2013, 07:00
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Victor Lisboa

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