Os limites da empatia

Como escolhemos as pessoas de quem gostamos?

Polidez não é fingimento

Acontece muito comigo. Saio de uma festa e minha amiga comenta:

"Poxa, parecia que você estava adorando!"

Saio de um encontro e minha amiga comenta:

"Você e Fulana estavam numa conversa animada, você deve gostar muito dela!"

Se respondo que não, que para mim a festa estava intolerável e Fulana, insuportável, as pessoas invariavelmente ficam horrorizadas:

"Meu Deus! O horror! O horror! Então, era tudo falsidade? Era tudo mentira?"

"Não. Era tudo polidez e boa educação."

(Aliás, mantenho que esse negócio de hipocrisia não existe.)

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Argumentar com as pernas

Se não estou gostando de algum compromisso social, tenho duas opções:

A) Ir embora.

(Minha opção mais comum: desde que decidi não mais debater, eu frequentemente argumento com as pernas.)

Ou se não for possível:

B) Ser uma pessoa agradável enquanto estiver ali.

Ficar no canto, calado, de braços cruzados, bufando, fazendo bico, batendo o pé, é coisa de criança de cinco anos. Ninguém precisa saber que estou insatisfeito. Os meus sentimentos são meus, para eu lidar com eles, e não um espetáculo transmitido ao vivo para a plateia à minha volta.

* * *

A autenticidade da insinceridade

Minha amiga não se conforma:

"Mas e a sinceridade? E a autenticidade? Como ficam?"

A criança que diz que a tia está gorda, a colega de trabalho que diz que o penteado da recepcionista está horrível, o ominho que fica bufando de braços dados no canto da festa, não são pessoas autênticas nem sinceras: São apenas pessoas rudes, que agem como se palavras não tivessem consequências, que não se importam com os sentimentos das outras.

Ninguém precisa saber quais são minhas opiniões ou meus sentimentos. Não fui nomeado fiscal dos penteados ruins do mundo.

Quem bate no peito pra se dizer "sincera", "transparente", "autêntica", etc, está apenas justificando sua própria insensibilidade. Quase sempre, nessa nossa espécie tão gregária, poucas atitudes podem ser mais autênticas do que engolir em silêncio minha sinceridade.

(A Prisão Verdade aborda algumas dessas questões.)

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Quem está debaixo da máscara

Não acredito em "pessoas autênticas". Não acredito que essa tal autenticidade seja possível ou mesmo desejável.

O Alex-com-a-Namorada, o Alex-com-a-Mãe, o Alex-Professor-em-Sala-de-Aula são diferentes máscaras que eu visto: Essas várias pessoas falam e agem, demonstram emoções e escolhem vocabulários, de maneiras completamente diferentes. São todas falsas? São todas verdadeiras?

Por debaixo de tantas máscaras, quem é o autêntico Eu? Aliás, poderia existir um autêntico Eu? Mais ainda, seria desejável que existisse um autêntico Eu?

A verdade é que só existem as máscaras: Debaixo delas, não existe nada.

(A Prisão Eu é sobre isso.)

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A autenticidade da adaptabilidade

Uma de nossas principais características, enquanto espécie, é nossa adaptabilidade.

Então, nada pode ser mais autêntico do que eu me adaptar da melhor maneira possível às diferentes situações e ambientes nos quais me encontro.

Nada pode ser mais polido e bem-educado do que ser uma pessoa agradável, que evita constranger as outras, mesmo quando estou insatisfeito em uma festa insuportável.

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Aquelas regrinhas de boas-maneiras

Minha mãe era cerimonialista: passei a infância oprimido por todas aquelas regrinhas mais arcanas da polidez e das boas maneiras.

(De fato, esse código é literalmente excludente: ele serve para excluir pessoas que vieram de um mundo onde as preocupações são mais urgentes do que "qual garfo usar".)

Mas, com exceção dessas regras mais operacionais, o objetivo comum de todas elas é o mesmo.

Como na história da proverbial anfitriã que, ao ver sua convidada bebendo o potinho de água de lavanda, não hesitou e também bebeu.

Naturalmente, a aguinha não era para ser bebida e sim para limpar os dedos, mas a anfitriã estava seguindo uma regra ainda mais importante, a mãe de todas as regras de conduta:

Evitar constrangimentos a sua convidada.

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Gentileza não é fingimento

Uma outra coisa que me acontece frequentemente:

Faço uma pequena gentileza e a outra pessoa reage como se aquilo tivesse sido uma prova de amor, um gesto de amizade, uma demonstração de carinho, como se nunca ninguém tivesse sido amorosa, amiga, carinhosa com ela.

E eu, apesar de saber que não enganei ninguém, ainda assim me sinto um fingidor, pois meu simples gesto de gentileza deu àquela pessoa uma impressão totalmente equivocada dos meus sentimentos.

Por um lado, diante de uma recepção tão desproporcional, meu consolo é pensar:

"Tomara que ela só tenha dito isso por educação!"

Ao mesmo tempo, por outro lado, também sei que nossos padrões de polidez estão cada vez mais baixos: Em um mundo bruto, um mero gesto de atenção parece mesmo prova de amor verdadeiro.

Se eu tivesse a sinceridade de uma criança de cinco anos, responderia:

"Perdão, eu nem te conheço, você não significa nada pra mim. fiz apenas um pequeno carinho que faria por qualquer pessoa, por simples respeito humano, e que não significa nenhum tipo de conexão significativa. Sinto muito a vida ter te tratado tão mal, as pessoas terem sido tão brutas, que uma besteirinha dessas parece tão maior do que realmente deveria ser."

Mas nunca falo nada: como o cachorro que você estica a mão para fazer um carinho e ele afasta a cabeça, essa pessoa também já apanhou demais. Aceito sua gratidão, lhe dou um abraço apertado e faço votos que a vida passe a lhe tratar melhor.

Às vezes, ao ouvir isso, ela pergunta, desconfiada, me olhando como se eu fosse algum leitor de mentes:

"Como você sabe que a vida me tratou mal?"

E eu, pra fugir do assunto, incorporo o mestre zen do meu koan favorito, e digo apenas:

"Beba mais chá!"

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Gostar de quem não gosta de mim

Acontece muito também: Amigas que se impressionam ao me ouvir falando com carinho de pessoas que abertamente não gostam de mim. Algumas vezes, os olhos das minhas amigas chegam a brilhar, empolgadas de serem as mensageiras da má-notícia, de terem o privilégio de compartilhar a megafofoca:

"Alex, você sabe o que essa Fulana anda falando de você? Sentaí, deixa eu te bater uma real..."

Mas eu gosto ou desgosto da Fulana por ela ser-quem-ela-é e por ela fazer-as-coisas-que-faz; por suas ideias e por sua militância, por sua produção artística e por sua integridade.

Ou seja, eu gosto ou desgosto dela por causa de centenas de coisas possíveis e imaginárias... que não têm nenhuma relação com os sentimentos dela por mim.

Afinal, quem sou eu? Que importância eu tenho? Que relevância eu tenho? Faz sentido gostar-ou-não-gostar-de-mim ser prova decisiva do valor (ou da gostabilidade) de alguém?

(Um pedido: se ouvirem alguém falando mal de mim, não me contem.)

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Quem pauta meus afetos sou eu

Eu me dou ao direito de gostar de quem não gosta de mim. Não delego a ninguém o privilégio de pautar meus afetos, nem mesmo através dos ódios que me dedicam.

O que poderia ser mais pequeno e mais mesquinho do que não gostar de alguém... só porque a pessoa não gosta de mim?

Mas diz minha amiga, exasperada:

"Porra, Alex, claro que as pessoas só gostam de quem gosta delas!"

E eu respondo:

"Ah."

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Porque o mundo está assim

Outra amiga:

"Porra, Alex, claro que o Juca ficou achando que vocês eram BFF (best friends forever)! Você hospedou ele na sua casa uma semana!"

"Ué. Mas eu nem gosto dele. Quer dizer, na verdade, ele me é indiferente, como quase todo mundo. Hospedei o homem na minha casa uma semana porque ele pediu, porque ele precisava, porque eu podia ajudar. O que qualquer uma dessas coisas tem a ver com eu gostar dele? Por acaso, as pessoas só ajudam e só são gentis com quem elas gostam?"

"Claro, Alex! Claro!"

"Ah."

E, lentamente, vou entendendo porque o mundo está assim.

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Os limites da empatia

Um dos limites da empatia é o fato de praticamente só conseguirmos sentir empatia por quem gostamos, por seres com os quais sentimos algum tipo de conexão.

(As abelhas são infinitamente mais importantes para a polinização das colheitas e para o futuro do nosso planeta do que os fofíssimos e quase inúteis ursinhos panda, mas recebem muito menos doações, verbas, atenção.)

Outro limite da empatia é o fato dela ser apenas uma emoção, não uma ação: é possível sentirmos muita empatia por alguém e, ao mesmo tempo, não levantarmos um dedo para ajudá-la.

(A enorme maioria das pessoas que acha os pandas a coisa mais fofa do mundo nunca abriu a carteira para contribuir para sua conservação.)

Ou seja:

Se o nosso critério para gostar de outras pessoas é 100% egocêntrico...

Se o nosso gostar é que determina nossa empatia...

Se nem sempre vamos efetivamente ajudar todas as pessoas por quem sentimos empatia...

... não fica difícil de entender porque vivemos em um mundo onde estamos todas pretensamente borbulhando de empatia (pelas pessoas que nos afagam o ego ou que são parecidas conosco) mas, mesmo assim, ninguém ajuda ninguém.

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Notas pós-texto

Esse texto é parte de uma pesquisa que estou desenvolvendo sobre empatia e altruísmo que deve, em breve, desembocar na Prisão Empatia.

Um autor que estou usando bastante, aliás, acabou de publicar um livro chamado Contra a Empatia e deu essa polêmica entrevista para a Folha.

Todos os meus textos são rigorosamente ficcionais: leia meu aviso de ficcionalidade.

Ilustrações originais por Flávia Tótoli. Confira o trabalho dela aqui e aqui.

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imersão "as prisões"

as próximas imersões "as prisões" vão acontecer em areias, sp (a meio caminho entre rio e são paulo) e em viamão (a 20km de porto alegre), nos meses de junho, outubro e novembro de 2017.

para saber mais e se inscrever, assista o vídeo abaixo ou clique aqui:

 

Link Youtube | imersão "as prisões", de alex castro.

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publicado em 28 de Março de 2017, 15:45
File

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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