Para refletir sobre a política

O que precisamos deixar de lado e o que precisamos considerar na hora de refletir sobre política

“A política é uma questão séria demais para ser deixada para os políticos”- Charles de Gaulle

Quando eu tinha por volta de 25 anos, gostava de dizer que não me interessava por política. O processo político era complicado, com muitos nomes, partidos e direções confusas. Colocava todos os políticos na sacola da corrupção e dizia por aí que não iria discutir o assunto, já que para mim nada ia mudar mesmo.

Mas eu estava errado. Não em relação aos políticos — já que corrupção parece ser um traço inerente ao sistema político vigente, e não uma característica natural do indivíduo — mas quanto a necessidade de entender e me aprofundar no assunto.

Antes de começar, é importante entender que possuo meus próprios vícios políticos. Tenho certas inclinações. Acredito que algumas ideias funcionam melhor que outras para o desenvolvimento de uma sociedade. Isso não é errado, mas preciso deixar explícito de onde minha visão está partindo, para que você não seja contaminado com uma falsa impressão de imparcialidade. Seria desonesto tentar falar sobre o assunto ocultando uma informação tão importante. E isso não tem nada a ver com não abordar muitos dos lados da questão, mas ser justo quanto ao ponto de vista que tenho.

Fiz recentemente o teste de coordenadas políticas e o resultado precisa ser explicado com um pouco de calma. Isto ajudará na compreensão das nossas direções políticas, aumentando a precisão do debate. O que quero mostrar aqui é que não existe apenas esquerda ou direita.

A maioria das pessoas que conversam comigo diria que sou de esquerda. Sou completamente a favor da legalização das drogas, casamento e adoção por casais do mesmo sexo e da liberdade/igualdade de gênero. Inclusive, eu e minha esposa temos uma brincadeira interna, onde dizemos que somos membros da “ditadura feminazi gayzista”, já que defendemos liberdades individuais e as causas das minorias.

Temos divergências na visão política, mas nesse ponto tendemos a concordar. Essas são pautas amplamente abraçadas pela esquerda no Brasil, mas na prática isso me define apenas como Liberal, não como esquerda. De forma simplificada, ser enquadrado como Liberal quer dizer que sou a favor do máximo de liberdade. Individual e econômica.

Liberdade é o principal pilar da minha orientação política.

No entanto, sou extremamente receoso em relação às intervenções governamentais. Acredito que o governo é ineficiente em todas as esferas que se propõe atuar, fazendo todo processo se tornar mais caro e burocrático do que realmente deveria ser. De forma clara, para mim, o governo deveria intervir o mínimo possível, quanto menos atividades são atribuídas ao Estado, melhor para a população.

Isso não significa, por exemplo, que eu não seja a favor da redistribuição de riquezas. Algo me diz que se não houver o custo da redistribuição, a existência de pobres e miseráveis exigirá um aumento ainda maior no gasto com segurança e proteções individuais. Um custo pelo outro, parece fazer sentido ajudar os que precisam, reduzindo os possíveis incentivos criminais baseados em necessidades extremas.

Entendo que se estivéssemos começando do zero, um modelo de liberdade econômica total e o destaque de cada indivíduo pelo seu mérito pessoal seria um cenário praticamente perfeito, mas historicamente sabemos que não é assim. Estamos modificando políticas em ambientes caóticos, com um enorme rastro de injustiça e dívida pelo caminho. É necessário que grupos que foram prejudicados ao longo da história tenham o mínimo de possibilidade de entrar na competição da sociedade, para aí sim, exigirmos que o mérito pessoal seja o fator nivelador entre que é bem ou mal sucedido.

“A liberdade do indivíduo deve ser, portanto, limitada; ele não pode fazer de si uma perturbação para outros” - John Stuart Mill

É preciso tomar um cuidado adicional para não confundirmos o mapa com o território (mais sobre isso adiante). Um mapa é uma abstração simplificada de uma realidade, o território é bem mais confuso e irregular do que pode ser representado por linhas e legendas. Um Estado extremamente reduzido é desejável quando pensamos na teoria, mas sabemos que na prática vamos esbarrar em milhares de obstáculos que não foram passíveis de previsão.

A sociedade é orgânica demais para acreditar em interpretações literais para qualquer direção. Eu considero a agenda liberal como o esboço de um mapa, sabendo que na prática, é preciso ir navegando através do território e fazendo os contornos necessários em cada um dos casos.

Quem faz o governo

A democracia como vivemos atualmente é bem distante do modelo concebido na Grécia Antiga, mas pelo que podemos observar em nossa história mais recente, é o modelo que melhor tem funcionado. Se observarmos a matriz de países por nível de democracia, encontramos uma boa correlação entre a qualidade de vida/riqueza dos países e seu nível de democracia. Lembrando sempre que o fato de duas coisas estarem relacionadas entre si, não significa que uma é a causa da outra, mas que aqui é um indicador que parece consistente.

Em nosso país, o presidente é eleito diretamente pela população, que aponta um candidato considerado capaz de exercer a função. Vejo muitas discussões, principalmente de amigos libertários, atacando falhas na democracia como parâmetro para invalidar o modelo político. A democracia tem suas falhas, mas goste ou não, é o sistema político vigente, é o trilho onde o trem da política está deslizando. Todo processo político deve obrigatoriamente seguir através deste trilho, a menos que estes trilhos sejam modificados.

O governo é composto por pessoas que geraram algum nível de identificação na população. Cada um dos 513 deputados e 81 senadores são representantes dos (cerca de) 204 milhões de habitantes do território brasileiro. Isso significa que precisamos ter, nesse cenário, pessoas que se comuniquem e entendam das mais diferentes realidades e, mais importante que isso, que estejam dispostos a lutar por essas causas, por mais específicas que algumas sejam.

O caso mais comum é o do deputado Tiririca, semi-analfabeto e eleito com a maioria de votos nas eleições de 2010. Seu sucesso eleitoral foi resultado do chamado “voto de protesto”. O parlamentar assumiu seu cargo sob grande ceticismo e ninguém acreditava que o palhaço, cearense e analfabeto fosse mesmo assumir como deputado. Ao final de seu mandato, o deputado figurou as notícias como um dos melhores parlamentares brasileiros, sendo reeleito para o período seguinte, dessa vez quase sem polêmicas.

Nosso deputado-palhaço representa um traço importante da democracia de que nem sempre o mais capacitado será  — ou deve ser  — eleito. Isso, lendo friamente, pode parecer algo ruim e absurdo, mas não funciona bem assim. Tiririca entende uma realidade muito específica. Veio de uma região pobre, conhece as dificuldades de quem não tem acesso à educação e viveu os problemas de uma região desfavorecida. Ele é a pessoa que melhor compreende uma fatia da população. Cenário que, para alguém que estudou numa universidade renomada e cresceu nos grandes centros com a vida da classe média alta, acaba sendo incompreensível e distante.

O mesmo podemos dizer sobre o deputado — tão odiado pela direita conservadora brasileira — Jean Wyllys. Ele é um dos poucos representantes na Câmara dos Deputados a se preocupar diretamente com os direitos LGBT. Você pode até ser contra suas pautas, mas precisa entender que essas pessoas existem, pagam impostos e merecem ser representadas no governo. Homos e Trans são contribuintes ativos e devem ter representantes que busquem defender seus direitos. Toda essa mistura é parte do jogo democrático. Da mesma forma que existem representantes mais orientados para a direita conservadora, que também defendem ideais e representam outras realidades.

O congresso representa o país, se existem particularidades do lado de fora, é preciso que existam pessoas que comuniquem essas necessidades do lado de dentro.

Deve existir espaço para todas as diferentes visões no tabuleiro político, concorde ou não com a pauta defendida. É preciso lembrar que não são todas as propostas sugeridas que acabam sendo aprovadas. Tudo será votado e, novamente, a maioria define o que faz ou não sentido para aquele momento. Muitas vezes isso é bom, muitas vezes isso é ruim.

No fim, a bola volta pro campo e todos se movimentam tentando marcar o seu gol.

Relembrando as regras do jogo

Um princípio básico para se discutir política é ter conhecimento de quais são as regras vigentes. É muito simples — quando olhamos pelas lentes da televisão — definir um ato como bom ou ruim, responsável ou irresponsável, sem nos preocupar em consultar quais são as regras utilizadas para definir esse parâmetro.

As leis brasileiras são bastante confusas. Temos uma quantidade esmagadora de códigos, leis e emendas que desenham o contorno das ações políticas, tudo isso como apoio do nosso guia principal, a Constituição Federal de 1988. Este link contém os arquivos com as principais leis e códigos do Brasil, devendo ser favoritado e frequentemente consultado por qualquer pessoa que queira opinar abertamente sobre os acontecimentos políticos, principalmente os que provavelmente estão infringindo alguma lei.

O entendimento das regras garante o funcionamento básico do debate político, evitando que a discussão caminhe para caminhos que não façam sentido. Vamos tomar o popular caso dos justiceiros de rua como exemplo. Pessoas amarrando suspeitos em postes e aplicando punições desproporcionais, muitas vezes terminando em tragédia.

A inconsequente repórter televisiva pode dizer que ele mereceu. O desatento comentador político pode dizer que sim, esse tipo de ação é necessária, tendo esse discurso repetido pela população, que acaba agredindo suspeitos e matando inocentes.

Todos sabemos que não existe pena de morte no Brasil. Em nenhuma situação é autorizado que o sistema judiciário tire a vida de um condenado, muito menos que um suspeito seja executado por presunção de crime. A pessoa que acusa não pode ser a mesma que condena, isto poluiria a integridade do julgamento.

A nossa legislação exige que criminosos sejam levados a julgamento, ação que pretende impedir erros e abusos por parte da população e dos próprios policiais. Não é uma discussão de lado, de proteger ou ser contra. É simplesmente o conhecimento de que a regra básica do jogo não autoriza determinado comportamento.

Os discursos inflamados, normalmente da direita mais conservadora, tendem a ir contra essa lógica, dizendo que a regra deve se aplicar apenas para pessoas que também as respeitam. No entanto, a legislação não é — felizmente, nesse caso — baseada no que eu ou você achamos que deve ser. O processo é desenhado para ser o mais justo possível.

A mesma analogia serve para outros muitos exemplos, onde vemos discussões exageradas apoiando ações que claramente vão contra as regras mínimas da sociedade. Antes de cair neste tipo afirmação, vale uma lida na lei relacionada e entender até onde sua opinião faz sentido.

Vale apontar que a justiça possui suas falhas, nem de longe é um processo perfeito, mas é o melhor que temos até o momento. A ausência dessas premissas transformaria a sociedade num cenário caótico. Não precisamos ir muito longe para saber que “olho por olho, dente por dente” não é exatamente o melhor modelo de justiça.

Desobediência civil não é desculpa criminal

Leis, no entanto, são falhas e frequentemente não representam o comportamento da sociedade. Seres humanos são orgânicos e a sociedade modifica seu comportamento muito mais rápido do que as regras são reformuladas. Algumas determinações prejudicam alguns e favorecem outros e esse ajuste deve ser feito com o apontamento dos que são afetados.

É muito fácil concluir que algumas regras precisam mudar, enquanto outras precisam apenas de leves ajustes. Basta lembrar que trabalho escravo já foi permitido para entender que a sociedade evolui e comportamentos que antes eram aceitos, não podem mais ser tolerados. Essa postura é alcançada com protestos, com uma minoria se levantando contra o Estado e o pensamento das maiorias.

Mas infelizmente essa ideia acaba sendo confundida em uma frase rasa e simplificada. É bem comum, quando alguém acaba encurralado por uma lei que caracteriza determinado comportamento como reprovável, surgir com o que podemos chamar de falácia da desobediência civil, a afirmação: “nem toda lei precisa ser respeitada.”

Essa é uma declaração perigosa por dois motivos muito simples. O primeiro é que, se nem toda lei precisa ser respeitada, quais deveriam ser? Ou ainda, quem define o que deve ou não ser respeitado? Se for de livre decisão pessoal, existirá um sério conflito de interesses. Posso pedir que a lei contra roubos e furtos seja aplicável quando alguém tira algo meu, mas fazer vista grossa, e dizer que não é bem assim quando for flagrado desviando dinheiro em contratos públicos. O segundo problema é que essa declaração simplifica demais a visão sobre o funcionamento das leis, tratando-as como uma imposição social trivial, que deve ser respeitada de acordo com a vontade de cada um.

Esta é uma clássica distorção de significado, quando tentam justificar atitudes ilegais sob a desculpa da desobediência civil, ofuscando o real sentido proposto por Henry David Thoreau.

Desobediência civil: é uma forma de protesto político, feito pacificamente, que se opõe a alguma ordem que possui um comportamento de injustiça ou contra um governo visto como opressor pelos desobedientes.

O conceito de Thoreau tem origem na ideia de que o Estado tende a se tornar abusivo, funcionando como um veículo perpetrador de injustiças, principalmente quando os cidadãos aceitam suas decisões de forma passiva. O nosso senso de natural de justiça muitas vezes vai além da permissão do governo ou visão das maiorias.

Nas palavras de John Raws, em “Desobediência Civil segundo Raws”:

A desobediência civil é como um aviso prévio da minoria à maioria, um protesto público não violento endereçado ao sentido de justiça da comunidade ou da sociedade como um todo, no intuito de reverter situações de injustiça

Fica evidente que não podemos desrespeitar as regras buscando benefício próprio, a desobediência civil é uma ferramenta de protesto para conquistar direitos básicos como a liberdade e a vida. Esta forma de protesto se iguala ao direito de greve, que protege trabalhadores e o direito de revolução, garantindo o exercício de soberania do povo quando se sente oprimido.

Notícias confundem nossa interpretação

Recentemente escrevi um enorme texto sobre as notícias e os problemas que podem causar, então não quero me estender demais sobre o assunto, mas existem algumas ressalvas específicas que preciso fazer.

O trabalho mais difícil quando falamos de política, é navegar entre todos os ruídos gerados pelos meios de comunicação. Alguns sites possuem uma visão política clara, sendo de conhecimento público o lado que estão defendendo. Outros são mais confusos, transparecendo a direção pessoal de cada um dos autores, mas não concordando — de forma ampla — com nenhuma direção.

A tarefa, para os que gostam de acompanhar notícias, é diferenciar informações importantes de iscas que apenas contaminam a opinião pública.

 

Leia a notícia acima, observando o título, e pense com carinho. A maioria acreditar que o ex-presidente foi beneficiado, faz o fato se tornar verdade? O processo de justiça deve ser baseado em evidências ou no que a considera verdadeiro? Qual objetivo de publicar uma notícia que não informa verdadeiramente, apenas usa um dado sem relevância para direcionar opiniões?

É preciso deixar claro aqui que não acredito que o ex-presidente seja inocente, mas não sou eu, nem mesmo a opinião da maioria que vai defini-lo como culpado, são as apurações e recolhimento de evidências por parte dos policiais e investigadores. Acreditar que algo é verdade não é suficiente para julgar ninguém.

Utilizei o exemplo acima por ser muito simples de ilustrar, mas às vezes essas influências surgem de forma sutil, passando despercebidas, principalmente quando confirmam uma crença pessoal muito forte. Alguns anos atrás, quando Thor Batista atropelou fatalmente um ciclista, as notícias faziam questão de mencionar o modelo do carro esportivo, quem é seu pai e como iam os negócios da família, apresentando inclusive o valor obsceno do carro.

 

Informações como essas, além de irrelevantes, conversam diretamente com a crença pública de que os ricos são pessoas más e, por consequência, ele é automaticamente culpado. Novamente, não está em jogo minha opinião pessoal sobre o caso, apenas o questionamento sobre a forma como a notícia influencia nosso posicionamento.

Cuidado com padrões duplos

Em tempos de polarização, observamos as pessoas assumindo lados como torcem para times de futebol.

De um lado temos o time vermelho, do outro o time azul. Não importa se o time azul também está perdendo, o time vermelho é sempre o pior. Não importa se os dois times tiveram jogadores expulsos, o outro é sempre o que joga sujo, o meu foi injustiça. Sabe como é, o juiz foi comprado.

Quando vemos lados gritando palavras de ordem, sentimos uma certa incoerência de ambas as partes. Os defensores do Partido dos Trabalhadores protegendo seus políticos como heróis, usando um jogo sujo e perigoso para ofuscar as investigações. Do outro temos a suposta direita brasileira, que esconde seus esqueletos, fazendo um jogo de seletividade para atacar seu adversário..

Geraldo Alckmin está envolvido em inúmeros escândalos no Estado de São Paulo, Beto Richa, do Paraná, não está se saindo muito melhor. O mesmo vale para a “esperança da política brasileira”, Aécio Neves, diretamente citado na Lava Jato inúmeras vezes, mas que faz questão de esquecer tal detalhe ao se pronunciar sobre o envolvimento do Partido dos Trabalhadores na lava jato.

Lula está cada vez mais envolvido em escândalos, sua relação na operação lava jato parece ser cada vez mais evidente. A oposição não é muito diferente, o PSDB nem de longe representa a mudança política positiva que seus apoiadores parecem acreditar.

Quando avaliamos um lado e condenamos seus comportamentos negativos, é imprescindível que apliquemos os mesmos parâmetros para julgar aqueles que apoiamos, o nosso lado. Quando defendemos visões extremas de forma cega, aplicando justificativas rasas para nossos padrões distorcidos, não apenas estamos ferindo o debate político, estamos sendo desonestos.

Religião não é argumento político

Pessoas religiosas utilizam suas crenças como uma forte bússola moral, um conjunto de valores que apontam como devem se comportar diante de determinada situação. Não cabe aqui a discussão sobre as pessoas que se intitulam membros de uma religião mas não seguem as diretrizes propostas, esse assunto é outro. Também não estamos fazendo julgamento se é bom ou não seguir as tais orientações.

Religiões possuem a forte característica de construir valores e transmiti-los como tradições através dos anos, influenciando o comportamento da sociedade em várias direções. No entanto, o mundo está mais globalizado do que nunca, as visões religiosas se diversificaram, fazendo com que seja extremamente difícil definir o que deve ou não ser permitido com base em doutrinas sagradas. Muitas vezes religiões sustentam visões opostas sobre um mesmo tema.

O que caracteriza o Estado laico e faz com que esta seja uma definição favorável à democracia, é a ausência de influências religiosas nas decisões políticas. Essa posição é a garantia de que qualquer pessoa poderá congregar sua fé e seus valores pessoais, sem que alguma religião assuma o poder e se torne opressora, eventualmente proibindo os rituais de outras crenças.

A laicidade do estado anda de mãos dadas com a liberdade religiosa.

Nossa percepção sobre as crenças costuma ser rasa, e quando pensamos sobre o assunto, tendemos a considerar apenas as religiões cristãs, já que teoricamente possuem poucas diferenças entre si. Mas se lembramos que os adventistas guardam o sábado, os testemunhas de Jeová possuem sérias restrições médicas, e que algumas vertentes evangélicas costumam ser intolerantes com as imagens de entidades das outras religiões, o cenário caótico começa a ficar bem evidente.

Por isso é importante evitar, sempre que possível, citar escrituras ou doutrinas religiosas como parâmetro para o funcionamento da sociedade. É abusivo quando uma religião tenta impor sua visão para pessoas que percebem a fé de forma diferente, incluindo aqueles que não possuem um modelo de crença.

O mapa não é o território

Nós, seres humanos, não somos muito bons em abstrair ideias complexas. Nossa mente tende a remover os detalhes e adicionar um significado amplo à elementos similares, mas que são diferentes entre si, em sua essência. Isto nos auxilia na compreensão geral, mas acabamos desconsiderando diferenças importantes em toda essa simplificação. Ao adotarmos visões reduzidas como uma descrição do todo, deixamos de lado algumas particularidades cruciais.

Quando digo que tenho uma direção política liberal, normalmente me reconhecem como o capitalista truculento, a direita reacionária, o explorador da classe operária. Me identificam como alguém que é contra pautas de esquerda — mesmo que no Brasil muitas pautas da esquerda sejam, na verdade, liberais , como já expliquei — e que como consequência, acabo diretamente categorizado como alguém que não respeita as causas sociais.

O mesmo tipo de simplificação é aplicada dos apoiadores dos partidos conflitantes no Brasil. Se você é a favor das quotas para negros, automaticamente é petralha, mas se critica o governo Dilma e cobra uma investigação mais rigorosa em cima do PT, é coxinha.

Essa adoção rasa de significados acaba criando uma falsa dicotomia perigosa. Eu, para servir de exemplo, sou contra o governo do PSDB no Paraná, mas apoio muitas da ações do PT na cidade de São Paulo, ao mesmo tempo que o governo Alckmin, no mesmo estado, não me agrada. Na mesma linha, acho que as investigações em cima do ex-presidente Lula são um passo essencial para o nosso momento político, mas não acredito que o impeachment — a qualquer custo — seja algo realmente positivo, mesmo não sendo aprovador do governo Dilma.

Fica confuso de entender as opiniões quando olhamos diretamente para cada pessoa.

Digo isso para explicar que as visões não precisam — e não podem — ser tão simplificadas. Cada caso tem sua particularidade, cada situação precisa de uma análise que vai além de qual partido está envolvido. Não podemos cair no engano de simplificar cada uma das opiniões nos baseando na categorização exagerada, estereotipada.

Apoiar um partido ou candidato político pode dizer bastante sobre uma pessoa, mas pode também não dizer nada. Esse é o ponto onde devemos aplicar o senso crítico, fazendo uma análise pontual de cada um dos cenários.

As alianças políticas e o que cada um desses rótulos defende é virtual, podendo mudar a todo instante, dependendo apenas do que estão tentando proteger e quem buscam atacar. Um novo acordo entre partidos pode representar uma mudança radical de postura. Se nos atermos aos simples rótulos, defendendo-os como fazemos com nossos times no campeonato brasileiro de futebol, podemos acabar apoiando elementos que anteriormente não faríamos, simplesmente porque agora parece tarde demais para mudar um discurso de apoio sustentado por tantos anos.

Na próxima vez que um marciano visitar a Terra, tente explicar-lhe por que aqueles que são a favor da eliminação de um feto dentro do útero da mãe são também contra a pena de morte. Ou tente explicar-lhe porque aqueles que aceitam o aborto são favoráveis a uma alta carga tributária, mas contra um militarismo forte. Por que aqueles que preferem a liberdade sexual precisam ser contra a liberdade econômica individual?”[…]
[…]A aliança atual entre os fundamentalistas cristãos e os lobistas israelenses intrigaria um intelectual do século XIX — os cristãos costumavam ser anti-semitas e os muçulmanos eram os protetores dos judeus, a quem preferiam em relação aos cristãos. Libertários costumavam ser de esquerda. O que acho interessante, enquanto probabilista, é que algum evento aleatório faz com que um grupo que apoia inicialmente uma questão alie-se a outro grupo que apoia outra questão, resultando na fusão e unificação dos itens.. Até a surpresa da separação.[…]
[…]Qualquer redução do mundo ao nosso redor pode ter consequências explosivas, pois exclui algumas fontes de incertezas; as reduções levam-nos a uma compreensão errada do tecido do mundo. Por exemplo, você pode pensar que o islã radical (e seus valores) são seus aliados contra a ameaça do comunismo, e com isso pode ajudá-los a se desenvolver, até que joguem aviões no centro de Manhattan.
- Nassim Nicholas Taleb

É importante ter um lado, saber qual direção política representa o que acreditamos ser melhor para a sociedade e participar do debate em torno do que está acontecendo, inclusive mudando de opinião conforme novas ideias forem surgindo. O que não podemos é tentar fazer tudo a qualquer custo, ignorando algumas premissas básicas e ferindo os limites do convívio social.

O modelo democrático é complicado, principalmente por exigir dedicação e esforço por parte dos membros da sociedade. Se virarmos as costas para o que acontece em Brasília, dificilmente conseguiremos melhorar as coisas. A cada quatro anos todos nos juntamos para escolher as pessoas que estarão ocupando as cadeiras do poder. E entender o que cada detalhe realmente significa, sem simplificações grosseiras, sem clubismo e aplicando a mesma régua para todos, é essencial para que exista qualquer mudança verdadeira.

Adendo: Comecei esse texto buscando escrever um simples guia de coisas a serem observadas quando formos discutir política. O título inicial era “Como discutir política”, assim, de forma ampla. Tentei reescrevê-lo diversas vezes para alcançar este resultado, mas se provou, pelo menos pra mim, impossível escrever imparcialmente sobre o assunto. Meus viéses sempre tornam as coisas mais claras para o lado que eu concordo, fazendo o texto incorporar a minha visão sobre política, mais do que uma direção que instrua os outros em suas direções.

***

Nota da edição: o texto foi originalmente publicado no Blog do Autor e gentilmente autorizado para recirculação no PapodeHomem.


publicado em 25 de Março de 2016, 00:05
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Alberto Brandão

É analista de sistemas, estudante de física e escritor colunista do Papo de Homem. Escreve sobre tudo o que acha interessante no Mnenyie, e também produz uma newsletter semanal, a Caos (Con)textual, com textos exclusivos e curadoria de conteúdo. Ficaria honrado em ser seu amigo no Facebook e conversar com você por email.


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