Três incômodos sobre as manifestações de domingo

Duvidar de todo mundo inviabiliza o sistema e provoca, em última instância, uma crise institucional cujos efeitos podem ir muito além do impedimento da presidente

Nota do autor: o texto abaixo foi escrito entre os dias 14.03.2016 e 15.03.2016, antes, portanto, da delação premiada do Senador Delcídio do Amaral (entenda aqui o que a delação traz de novo). Embora saiba que a delação é apenas parte da investigação e deve ser comprovada por outros meios, não nego a consternação com as declarações, mas sigo firme no propósito de acreditar na existência de políticos comprometidos com a coisa pública e no amplo direito de defesa.

O objeto do texto, as manifestações de 13.03.2016, pode ter sido colocado em segundo plano por tantas manchetes do noticiário político de ontem e hoje, mas talvez contribua de alguma forma para o debate político que surge.


Dessa vez, esperei um pouco para escrever sobre as manifestações.

Quis, antes, ver a reação das pessoas nas redes sociais, as discussões que surgiram e, acima de tudo, entender meu sentimento de antipatia pela manifestação, cujo motivo ainda não estava claro para mim no dia 13 de março de 2016.

Não sou contrário ao direito de se manifestar, pelo contrário: acho incrível viver em um momento em que não se impede a realização de qualquer passeata. Amigos queridos participaram das manifestações, todos com suas razões, e eu também não sou completamente contrário às reivindicações – eu mesmo já fui às ruas em alguns dos grandes protestos anteriores, como vocês leram em relatos meus aqui mesmo no PdH.

Achei ótimo, também, pelo menos em São Paulo, o protesto perdeu um pouco da seletividade de que falei nesse primeiro texto – sinal de que parte dos manifestantes estabeleceu um diálogo com a crítica e foi capaz de mudar o comportamento, ajustando suas próprias demandas de forma honesta.

O que me incomoda, então?

Primeiro incômodo: não podemos desprezar garantias constitucionais

Depois de pensar, e correndo o risco de parecer presunçoso, me parece que o incômodo se deve à superficialidade e à banalidade com que os temas políticos estão sendo tratados pela maior parte dos manifestantes.

Vejamos a questão do impedimento da presidente Dilma, que era pauta de 10 em cada 10 manifestantes. O processo atual que corre contra a presidente se baseia nas pedaladas fiscais realizadas em 2014 e que se estenderam até o início de 2015, avançando, portanto, ao mandato atual.

Após ler o pedido, fica muito difícil argumentar pela legalidade das pedaladas, que constituiriam crime de responsabilidade fiscal e, portanto, punível com o impedimento, como já expliquei neste outro texto. Claro que ainda não foi apresentada a defesa, que ainda pode mudar minha opinião, mas, no momento em que escrevo, acredito haver base jurídica para o impeachment.

Notem que, para eu formar a minha opinião e expressá-la sem constrangimento, foi necessário:

  1. ler o pedido de impedimento;
  2. entender o conceito de pedalada fiscal e como isso se enquadra na legislação criminal;
  3. interpretar o texto e refletir sobre seus fundamentos.

No processo todo, levei mais ou menos uma hora, mas conta a meu favor minha formação jurídica.

Sim, formar opinião demanda esforço, tempo e reflexão. Às vezes não o fazemos por falta de tempo. Às vezes, por pura preguiça. Mas todo mundo sabe que é melhor formar opinião com base na fonte do que em análises de terceiros.

Infelizmente, raros são os manifestantes que se dispuseram a ler o pedido, que compreendem o – difícil – conceito das pedaladas e o crime que elas implicam. Arrisco dizer que a maior parte deles age sob a emoção de palavras de ordem ou superficialmente fundamentados em opiniões alheias. Perguntem a seus colegas mais próximos, ou, exercitando o distanciamento crítico necessário, pensem consigo mesmos se vocês poderiam explicar, de forma simples e didática, a conduta da presidente que pode lhe custar o mandato.

A falta de conhecimento concreto sobre o impeachment acende uma luz amarela para mim, pois, das três, uma:

  1. os manifestantes defendem o impedimento sem nenhuma base, movidos por puro ódio contra a pessoa da presidente ou contra o partido ao qual ela se filia;
  2. estão pedindo o impedimento com base em suposições de cometimento de crimes, ignorando o princípio da presunção de inocência; ou
  3. defendem o impedimento pelas pedaladas fiscais sem sequer entender o que são e, dessa forma, agem com menos consciência do que seria desejável, com base na opinião alheia.

Este é o primeiro ponto que me incomodou no movimento deste fim de semana: manifestações, por vezes, baseadas em ódio, desprezo por garantias constitucionais e opiniões superficiais.

Não fiz nenhum estudo estatístico, mas pela minha rede social, parece que esse grupo é a maioria. Espero que entendam que a crítica aqui é construtiva (assim como a questão da indignação seletiva). Até antevejo pessoas dizendo que essa parcela é minoria, que não são massa de manobra etc.. Mas o que eu gostaria de ver, de fato, é essas mesmas pessoas indo atrás das informações básicas e, com base em argumentos próprios, debatendo a questão com seu círculo social, seja ele favorável ou contrário ao impedimento.

Também seria muito justo incentivar corajosos que admitam não ter opinião sobre um fato que eventualmente desconhecem (como eu faço, por exemplo, no caso do triplex do Guarujá, que não consegui acompanhar porque a vida segue independentemente das manchetes).

Segundo incômodo: entre os extremos da indignação seletiva e a indignação generalizada

A segunda questão é a generalidade das afirmações.

Parte dos manifestantes, como disse, ouviu a crítica da indignação seletiva e, num exercício hegeliano, passou para o outro extremo, o da indignação generalizada. Se antes eram alguns políticos supostamente corruptos, agora o são todos.

Duvidar de todo mundo inviabiliza o sistema e provoca, em última instância, uma crise institucional cujos efeitos podem ir muito além do impedimento da presidente.

Gosto de citar Marguerite Yourcenar, que, no livro O Golpe de Misericórdia, fez seu personagem Eric dizer: “sempre encontrei uma certa baixeza naqueles que acreditam tão facilmente na indignidade dos outros.”

Não me considero uma pessoa ingênua. Mas, entre condenar alguém precipitadamente e me passar por ingênuo, prefiro a segunda opção à primeira.

Evito ao máximo ser injusto com alguém, em qualquer instância (e, mesmo com tanta vigilância, acontece vez por outra). É uma opção racional. E vivo em paz com ela. Acredito que existem políticos dedicados à função pública. O problema é que separar o joio do trigo é mais trabalhoso do que simplesmente adotar uma postura “política” e mostrar “esperteza” alegando que ninguém merece nossa confiança quando, na verdade, queremos a certeza de nunca nos decepcionarmos.

Vou usar o gancho da decepção para criticar, agora, o lado “contrário” às manifestações deste domingo.

Vejam que acreditar na virtude das pessoas é diferente de seguir credo, uma religião dogmática. É preciso enxergar claramente os fatos e se permitir decepcionar. Este é um ponto que me incomoda no discurso governista.

Pelo que eu tenho lido sobre o sítio de Atibaia, por exemplo, fica muito difícil defender o ex-presidente Lula cegamente: há indícios de beneficiamento indireto que, se não me fazem condená-lo, colocam pelo menos uma pulga atrás da orelha. Vamos aguardar sua defesa e o pronunciamento do Judiciário, mas trabalhemos com a possibilidade de ele ser, sim, culpado.

Terceiro incômodo: ódio, fechamento e falácias lógicas por todos os lados

Terceiro e último ponto: vamos combinar, de uma vez por todas, que:

  1. assertividade e agressividade são substantivos distintos – xingamentos, ironias, sarcasmos fazem qualquer parte perder a razão e minam um debate necessário e sério;
  2. argumentos contra o debatedor não afetam seu raciocínio lógico;
  3. pontos de vista distintos não significam pontos divergentes; e
  4. abertura ao diálogo com pontos de vista contrários é sinal de maturidade.

Vamos juntos.

Para aprofundar:


publicado em 16 de Março de 2016, 11:45
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Thiago Trung

É advogado de propósito. Gosta de arte, música e política e acredita que sempre dá para mudar. Acredita também que Yourcenar está sempre certa, e que isso não muda nunca.


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