Obs.: sim, o texto contém informações da trama da série até o final dessa sexta e última temporada. Se você não está em dia com os episódios, volte uma casa, assista o que falta, e depois volta aqui pra ler tudo. The night is dark and full of spoilers.
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Em Westeros não faltam histórias emocionantes, batalhas épicas, criaturas fantásticas e transtornos. Se os white walkers soubessem da fria em que estão se metendo, com o perdão do trocadilho, dariam meia volta e ficariam bem tranquilinhos ao norte da Muralha.
Como a jornada no mapeamento do perfil psicológico dos personagens de Game of Thrones vai ser mais longa que a viagem de Daenerys a Mereen, convidei o psicólogo do Zenklub Lucas Simões Sessa para me ajudar.
Em primeiro lugar, este foi um exercício muito interessante. Principalmente quando pensamos que a teorização psicanalítica sempre se apoiou na literatura. Personagens como Édipo, Otelo e MacBeth sempre foram um prato cheio para os estudiosos da mente humana.
Contexto social
Estamos falando de pessoas que vivem no equivalente à nossa Idade Média, uma época em que a noção de individualidade estava soterrada por um sistema de castas implacável que ditava todas as possibilidades de existência de uma pessoa.
O Lucas completa: “É interessante notar que os personagens mais interessantes para o público são justamente aqueles que rompem com o destino imposto pela tradição”.
Sem mais delongas, abriremos o caderno do analista de Westeros. Lembrando que demos preferência a personagens vivos.
Jon Snow
A primeira palavra que pula à mente quando falamos do jovem Snow é: bastardo!
Este traço foi determinante em vários momentos da vida de Jon. Sem um sobrenome, parece que lhe falta uma direção a seguir. Se os Lannisters pagam suas dívidas e os Stark estão sempre se preparando para o inverno, quê faz um homem sem nome?
Talvez isso nos ajude a compreender o caráter hesitante na tomada de decisões de Snow. “Ele carece de referenciais parentais capazes de fornecer modelos e exemplos que pudessem orientá-lo diante da tarefa de fazer escolhas e decidir entre caminhos possíveis” diz Lucas.
É quando Jon percebe que existe uma pessoa além do sobrenome, que começa seu processo de tomada de decisão: geralmente impulsivo e cheio de consequências ruins.
O romance com Ygritte terminou com a amada atravessada por uma flecha; a aliança com os selvagens terminou com um motim de seus companheiros de Guarda. Snow é um idealista impulsivo. Não percebe que suas ações podem ter consequências desastrosas, porque para ele um fim bom justifica um meio destrambelhado.
Os Stark pensam assim: Ned denunciou o incesto de Cersei e Robb traiu a promessa que fez a Waldor Frey. Os desfechos não foram nada bonitos...
Tyrion Lannister
Os Lannisters se orgulham por pagar suas dívidas e por manter sua linhagem pura. A primeira premissa é constantemente colocada à prova toda vez que chega um corvo do banco de Braavos, mas isso não parece incomodar. A segunda premissa foi colocada em xeque quando Tyrion Lannister nasceu. E isso causou bastante incômodo.
“Tyrion logo se diferencia dos demais integrantes da família pela ferida narcísica decorrente do nanismo”, explica Lucas. O que serviu de pressuposto para que o resto da família dispensasse um tratamento especial ao caçula de Tywin Lannister.
O “meio homem” vem de um histórico de abuso emocional recorrente. Era odiado pelo pai, que o culpa pela morte da esposa durante o parto, e não se pode dizer que seus irmãos sejam os parentes mais afetuosos que uma pessoa pode ter.
O episódio de seu primeiro casamento é bastante revelador.
Depois de resgatar uma donzela da posse de bandidos, Tyrion se apaixonou pela moça e resolveu se casar com ela. Quando seu pai descobriu, raptou a noiva e pagou uma moeda de prata para cada um de seus soldados para que a estuprassem. Tyrion foi deixado por último na fila e foi pago uma moeda de ouro porque “um Lannister vale mais”.
Como sua estatura o impede de executar as funções que definem um homem entre os Lannisters - guerrear, caçar, construir etc – Tyrion encontra na atividade intelectual - também reservada aos homens naquela época -, no álcool e no sexo, uma maneira de compensar sua emasculação.
Na batalha de Blackwater, se não corajoso, Tyrion se mostrou uma pessoa cativante e com senso de dever (ou de sobrevivência?) bastante apurado.
Empossado do título de Mão do Rei, provou ser um administrador habilidoso e um homem justo.
Tyrion está longe de ser visto como um homem que alcançou a redenção e que agora pode ser emoldurado como exemplo de conduta. Lembremo-nos que ele é responsável por assassinar o pai e a amante e que arranjou o casamento da sobrinha para atingir a irmã que tanto o detesta.
Ao lado de Daenerys, a face menos cínica de Tyrion aflora, culminando na ocasião da sua nomeação como Mão do Rei.
Nem louvável nem execrável. Tyrion é apenas humano. Demasiadamente humano.
Cersei Lannister
“Todos que não são família, são inimigos”. Parece até trecho de O Poderoso Chefão, mas foi um dos sábios conselhos dados pela rainha ao futuro rei Joffrey Baratheon. Parece que ele levou um pouco ao pé da letra...
A frase sintetiza a maneira de pensar de Cersei. Ter sangue Lannister correndo pelas veias é a coisa mais importante do mundo para ela. Tão importante que preferiu o irmão ao marido na hora de procriar.
Nada sobre ela é confiável. Até a imagem de mãe protetora deve ser colocada à prova: “não se trata de um cuidado e suporte incondicional por parte de uma mãe afetiva e carinhosa, mas de uma valorização narcísica de uma suposta pureza genética que os filhos carregam e que precisa ser protegida a qualquer custo” analisa Lucas.
Não era amor, era uma cilada psicológica. Uma exercício narcisista de preservação genética.
É interessante ver, por exemplo, como sua atitude com Tommen muda quando o filho, já empossado rei, deixa de dar ouvidos à mãe para ouvir à esposa Margaery. Na impossibilidade de punir o filho, Cersei mandou a concorrente pelos ares. Literalmente.
A imagem de mãe zelosa também cai por terra ao observar o relacionamento que mantém com o irmão Tyrion, a mosca na sopa da família dos leões. Para Cersei, o irmão é uma mácula para a linhagem de louros grandalhões.
A verdade é que Cersei tem a autoestima de uma bolinha de fita crepe: “Os momentos em que a frieza distanciada de Cersei dá lugar à irrupção de grandes demonstrações ódio podem ser compreendidos como o desmoronamento da fortaleza narcísica que a mantém protegida em sua solidão estéril” completa Lucas.
Não é para menos. Cersei tem um histórico de rejeição extenso.
Enjeitada pelo marido, se ressentia pelo fracasso em fazer seu casamento arranjado com o rei Robert funcionar. A infidelidade do marido era notória e a maneira como tratava a esposa estava longe de ser a mais afetuosa.
A autoestima baixa e o imenso poder a levam a ter um comportamento limítrofe e fazer coisas como ingerir álcool em demasia, ter três filhos com o irmão gêmeo e explodir uma igreja cheia de gente.
Melisandre
Ok, não podemos dizer que se trata de um caso de Complexo de Messias, porque a Dama Vermelha já deixou bem claro que seu papel na Terra é defender os ideais de R’hllor, o deus vermelho, e não se impor como uma divindade.
O que podemos afirmar com certeza é que se trata de uma fanática religiosa de carteirinha e que não conhece limites quando o assunto é fazer as vontades de seu deus. Já sequestrou o bastardo Gendry, deu à luz um bebê das trevas que se encarregou de matar Renly Baratheon e até arquitetou o cruel sacrifício da menina Shireen Baratheon.
Todavia, a morte de Stannis Baratheon, que ela julgava ser o messias Azor Ahai, parece tê-la deixado desestabilizada, se não em sua fé, em suas convicções. Eventos recentes como a ressurreição de Jon Snow e a revelação de sua real forma mostraram uma Melisandre mais humana e frágil.
Além da retórica afiada, a sacerdotisa se aproveita dos dotes físicos para alcançar seus objetivos. Lucas vai além: “Perigosa e fascinante, Melisandre é um convite ao pensamento das manifestações do feminino no imaginário atual”.
Sedução e perigo andam de mãos dadas, como já foi largamente explorado na literatura mundial – quem aí se lembra das sereias de A Odisseia? -. O modus operandi da Mulher Vermelha é construído a partir das idiossincrasias masculinas. Melisandre reconhece que em Westeros, pelo menos na maioria das vezes, os meninos que são os donos da bola, então, joga o jogo deles e sai ganhando.
Arya Stark
Você acha que teve uma infância difícil? Arya Stark teve um de seus amigos assassinado, presenciou a decapitação do pai em praça pública e teve que fugir do continente para escapar da morte.
Alem disso, foi feita refém por um bom tempo por The Hound, não exatamente sua companhia predileta. Começa aí um estado de vigilância permanente e uma constante vontade de vingança. Antes de dormir, recita os nomes daqueles que quer ver comendo capim pela raiz.
A menina termina executando The Hound – sem muito sucesso como se vê depois – e ruma a Braavos para se unir à Guilda dos Homens sem Rosto. O objetivo é se tornar uma assassina profissional e fazer justiça com as próprias mãos.
Arya sempre se distanciou do papel designado a suas contemporâneas. Zombava da irmã Sansa por gostar de dança e bordado e dizia sempre que seu desejo era tornar-se uma guerreira. Os eventos traumáticos de sua vida só fazem aumentar essa ambição
Para Lucas, trata-se de Arya elaborando seu sofrimento “na medida em que possa experimentar a posição contrária, não mais a de vítima ou de espectadora passiva, refém e impotente, mas de protagonista ativa em suas ambições de vingança”.
Theon Greyjoy
Quando viu que era este o próximo paciente, o psicólogo pediu cinco minutos e foi à cozinha, tomou um pack inteiro de Red Bull com xarope de Guaraná e respirou bem fundo. "Vamos lá".
Comecemos pelo fato de que o jovem Theon foi dado como presente à família Stark em uma demonstração de lealdade do clã dos Greyjoy. Durante toda a infância, seus familiares fizeram questão de deixar claro que, apesar de criado com Robb, Sansa e companhia, Theon não era e nunca seria um Stark. O que pode explicar algo de sua conduta: “As demonstrações de arrogância e o caráter narcisista de Theon podem ser entendidos como uma tentativa de reparar a ferida causada pelos abandonos e rejeições que sofreu” diz Lucas.
Sentindo-se enjeitado, o filho das Ilhas de Ferro, em uma tentativa de se autoafirmar para o pai, faz uma investida atrapalhada contra Winterfell, o que resultou em seu encontro com Ramsay Bolton. Daí em diante é só ladeira abaixo. O rapaz é humilhado, torturado, castrado... isso sem falar na lavagem cerebral que lhe é operada e que o fez pensar ser outra pessoa.
A relação entre Greyjoy e Bolton é paradoxal. O nobre cativo teme e protege o captor. O que muitos podem diagnosticar prematuramente como Síndrome de Estocolmo, pode-se entender como um mecanismo de defesa. Um recurso de fuga inconsciente da vítima na tentativa de descaracterizar a situação de vulnerabilidade. O gatilho é bastante identificado em situações de violência extrema, como sequestros e abuso sexual, por exemplo.
Daenerys Targaryen, primeira de seu nome, rainha dos ândalos e dos primeiros homens, mãe de dra...
É, de longe, uma das pessoas mais bem ajustadas de Westeros. Dado seu background, é quase um milagre que Dany não tenha se tornado uma psicopata. Filha de um rei piromaníaco e irmã de um megalomaníaco narcisista que a vendeu para o líder de uma horda, Daenerys tem conseguido manter a cabeça no lugar.
Mais interessante do que caçar patologias por aqui, é analisar a índole da Khaleesi e sua transformação com o passar do tempo. De início aparece frágil e submissa a seu irmão Viserys. E sob a posse de Khal Drogo, estaria destinada a cumprir as funções de esposa e mãe.
No entanto, a futura rainha de Mereen não se contenta com o papel e, como um dragãozinho recém-chocado, coloca as asas de fora. Seu tom com o irmão muda e o seu casamento evolui de uma mera transação comercial para uma aliança política.
“Daenerys vê no casamento a possibilidade de alcançar seu poder junto a Drogo e sustenta a possibilidade de viver o próprio desejo e aspirar a realização de seus ideais de poder, reconquista de suas posses, títulos e prestígio, e também de justiça”.
Também há quem diga que Daenerys sofre de um pouco de delírio de grandeza, mas quem não deixaria o poder subir um tiquinho à cabeça tendo um exército de Imaculados e três dragões adultos?
Petyr Baelish
Charmoso e carismático, Lorde Baelish dedicou sua vida para servir a apenas uma pessoa: si mesmo. Petyr é o estimado conselheiro daqueles que obtêm riqueza e poder. Mas como em Westeros a dança das cadeiras costuma acontecer a um ritmo intenso, Petyr preferiu se garantir e fazer tantas amizades quanto possível.
A dissimulação é tamanha que muitas vezes se questiona se Mindinho conseguiu anular até seus sentimentos mais profundos.
“Talvez possamos associar essas características a seu ressentimento por se ver excluído, em sua origem, dos círculos familiares e sociais de maior status e valorização em Westeros”.
Petyr nasceu em uma família nobre pouco importante e foi acolhido pelos Tully, família detentora das Terras Fluviais. Mais uma história sobre a criança deslocada do seio familiar original.
Mesmo sem pegar em armas, o impacto de Baelish para a trama é bastante sanguinolento. Lembremo-nos que foi ele quem tramou os assassinatos de Jon Arryn e Joffrey Baratheon, entregou Ned Stark para os Lannisters e empurrou ele próprio Lysa Arryn Buraco da Lua abaixo.
Sabe-se que ninguém em Westeros é inteiramente bom ou ruim, mas Mindinho certamente não está pendendo para o lado da luz.
Sansa Stark
A menina já viu o pai sendo decapitado em praça pública - e foi obrigada a ver a cabeça espetada em uma estaca secando ao sol -, sofreu abuso psicológico, moral e sexual, fez base-jumping com o irmão eunuco, atravessou um rio semicongelado e por aí vai.
Ela passa os primeiros anos de sua juventude como uma adolescente ingênua que se recusa a perceber que seu pretendente Joffrey Baratheon é um grande otário.
Sansa não só está conformada com o destino que lhe foi traçado – aulas de desenho, bordado, casamento... – como está muito feliz com essa perspectiva. Acontece que o caldo entornou. Depois de sofrer nas mãos do sádico Joffrey, é entregue de mão beijada para Ramsay Bolton.
À medida em que o tempo passa, seu comportamento muda, ao ponto em que, já bastante impaciente, dá uma verdadeira descompostura no irmão Jon Snow, que hesitava em retomar o Norte para os Stark.
Será que Sansa tem ganhado respeito por sua conduta estar se assemelhando cada vez mais à dos homens de Westeros ou por, como todos os heróis clássicos, estar superando sua própria condição?
Diagnóstico
Não tem diagnóstico! Esta é uma análise leve feita em conjunto com o Lucas Simões Sessa, psicanalista de mão cheia e também fã de Game of Thrones. Se você se identificou com alguma aflição dos personagens, não precisa se preocupar, que não vamos te mandar pras masmorras do High Sparrow.
É interessante perceber que, como telespectador, assistir a cenas como Daenerys mandar matar senhores de escravos, Joffrey estrebuchando em seu próprio casamento ou Lysa Arryn sendo atirada do Buraco da Lua nos faz sentir realizados. “A identificação do público com traços dessa natureza tem a ver com a evidência de que esse estado de coisas também habita as profundezas de nossa condição” explica Lucas.
Talvez a série nos fascine tanto porque os personagens são tudo, menos bidimensionais. O assassino sanguinário teve problemas de infância, a rainha provedora tem interesses espúrios e assim por diante. Pode ser que as noites de domingo sejam reservadas não para assistir a uma série, mas para vermos a nós mesmos em toda nossa complexidade, lutando contra nossos demônios, traçando estratégias para alcançarmos nossos objetivos, extravasando a fúria contida antes de escovar os dentes e encarar mais uma semana de trabalho.
Ah e tem dragões também!
publicado em 26 de Julho de 2016, 00:10