Aceitei meu lado gay | ID #61

"No último ano, tenho enfim me aceitado gay. Tenho 20 e poucos anos, e há pelo menos uns 10 luto contra esse ‘meu lado’."

No último ano, tenho enfim me aceitado gay. Tenho 20 e poucos anos, e há pelo menos uns 10 luto contra esse ‘meu lado’.

É engraçado como, desde que percebi que isso existia em mim, tentei ignorar meus desejos e me 'heterossexualizar'.

Fazendo um retrospecto ainda mais completo, consigo identificar em atitudes minhas desde a infância traços tidos como essencialmente homossexuais. E isso, como era de se esperar e contra a minha vontade, continuou existindo, ainda que a vontade de reprimir fosse grande. 

Mesmo quando criança, introspectivo, ruim nos esportes e mais propenso a ficar em casa lendo do que ir pra rua jogar bola, já havia colegas que me chamavam de “bicha”. Na adolescência, tendo consciência de como agia e do que minhas atitudes podiam representar, conseguia me “esconder”.

Meus amigos eram em grande parte héteros, eu ficava com diversas meninas, (sendo que por algumas delas - inclusive é um aspecto que eu não consigo entender – eu realmente me sentia apaixonado), e eu buscava eliminar do meu vocabulário palavras ou jargões que pudessem ‘soar gay’.

No início da vida adulta, o disfarce permanece. Agora com a dificuldade de transar com as meninas que na adolescência beijar seria suficiente pra manter a pose.

Só que chega um ponto que não dá mais. Que queremos dar forma aos nossos desejos sem ser escondido ou se sentindo culpado depois, arrependido. Que dói pensar na vida que levamos, medindo palavras, pensando no que vai parecer se eu gostar de determinado artista ou se eu me preocupar em combinar o tênis com a calça que eu uso vai parecer “duvidoso”. Ao mesmo tempo em que há poucas semanas o Facebook estava coberto de fotos coloridas, apoiando e parecendo que dizendo 'vai, estamos com você'. E aí você acha que vai ser mais fácil. Mas na mesma semana você ouve de algum familiar ou amigo (alguns talvez até tenham colocado o filtro do 'celebrate pride') se referindo a alguém como 'aquela bichona', 'a biba que estudou com você'. É foda.

Dizem que a parte mais difícil é se aceitar e por isso eu acho que já passei. Mas ainda é um soco no estômago pensar em assumir pra família, pros amigos e pra todas aquelas pessoas que você nem mesmo gosta, mas que, no fundo, vão incomodar pra caramba com aqueles comentários 'eu sempre desconfiei'. 

Não adianta pensar que vai ser fácil, que ninguém vai se afastar ou mudar seu jeito em relação a mim. Alguns talvez virem as costas, finjam que nunca foram meus amigos (com medo do que isso possa exercer sobre a suposta sexualidade deles) ou atravessem a rua pra não me cumprimentar. Ou talvez eles irão me apoiar. Não tem como ficar fazendo previsões.

A luta continua. Espero que daqui um tempo eu possa mandar outro relato. Feliz, leve e tranquilo. Sem mais preocupações e disfarces. Obrigado PdH pelo que vocês já fizerem por mim até hoje. Parte da minha aceitação se deve a vocês.

Abraços, J. 

Olá J.

Esse será daqueles textos que poucos curtirão, quase ninguém vai compartilhar e aqueles que compartilharem vão marcar o amigo do qual querem tirar sarro. No entanto, será daqueles lidos secretamente, seja para olhar do outro lado do buraco da fechadura ou para analisar sentimentos secretos dentro de si mesmo.

Obrigado por compartilhar sua experiência. Apesar dela não ter um pedido claro de ajuda, queria pinçar algumas questões sobre o tema da homossexualidade que cabe esclarecer aqui no PapodeHomem.

Já falei bastante sobre preconceito no texto do pai da garota transexual, portanto, não vou me aprofundar tanto nesse ponto, mas vou selecionar trechos importantes da sua fala e analisar linha a linha.

"Consigo identificar em atitudes minhas desde a infância traços tidos como essencialmente homossexuais"

Não sei exatamente o que quis dizer sobre isso, mas brincar de boneca, ser mais tímido, falar fino, gostar de determinado gênero musical ou ser ruim nos esportes quer dizer apenas que você não aderiu ao pacto convencionado em determinada sociedade do que é associado a ser homem.

Na nossa cultura, homens são estimulados socialmente a brincar de carrinhos, falar mais que os outros, com voz grossa, gostar de música X e serem esportistas natos. Isso está tão longe da verdade que eu poderia escrever muito sobre o assunto.

A dimensão da homossexualidade é no campo do desejo e não dos interesses pessoais e sociais.

"Mas Fred, sei que tem um monte de gay que gostam da cantora X, isso não é traço de homossexualidade?"

Não se pode inverter o raciocínio de causa e efeito e imaginar que um gosto determina a orientação sexual, ainda que pessoas com aquela orientação sexual apreciem determinado gosto. 

"eu buscava eliminar do meu vocabulário palavras ou jargões que pudessem ‘soar gay’"

A construção social do que chamamos de masculinidade é um código socialmente convencionado como "coisas de homens".

Um homem que adota os códigos e comportamentos ditos masculinos pode ter qualquer orientação sexual. Falar grosso, gostar de rock, ter barba grossa e olhar de bravo não torna ninguém mais hétero ou menos homossexual.

Mas por que reforçamos essas distinções?

Quando uma cultura vê fragilidade na sua identidade central, assim como na concepção de bem e mal, certo e errado, ela tende a adotar um comportamento mais radical e estereotipado, como forma de se defender da ambiguidade.

A liberdade, ao mesmo tempo que nos oferece muitos caminhos, nos deixa confusos quanto ao que podemos aderir. Estereotipar é um recurso utilizado para demarcar territórios sociais. Como os heterossexuais nunca foram tão questionados nos seus códigos sociais, isso parece provocar uma polarização cada vez mais acirrada do time A versus o time B.

Ainda que esse medo seja compreensível, afinal, ninguém quer ser rejeitado pela sociedade, é importante enxergar esses códigos com liberdade. Em essência eles não os definem no campo do desejo sexual.

"queremos dar forma aos nossos desejos sem ser escondido ou se sentindo culpado depois"

Quando as pessoas dizem que alguém descobriu que era gay, provavelmente essa foi a manifestação expressa e pública da orientação sexual. A sexualidade humana não é descoberta num ato único, ela está lá desde o berço e vai se revelando em ondas mais ou menos claras para cada pessoa em momentos distintos. Há quem vá lidar com sua sexualidade na adolescência, há quem busque o contato sexual mais criança.

Como as crianças não tem uma clareza da identidade de gênero (menino ou menina), não raramente a expressão da sexualidade pode ser mais difusa e até confusa numa fase precoce. À medida em que o desejo sexual e essas distinções vão se corporificando, a orientação vai ficando nítida, mas isso não significa que ela não existia até então.

A heterossexualidade ou homossexualidade, portanto, não brotam na pessoa com a expressão pública do desejo.

"vão incomodar pra caramba com aqueles comentários 'eu sempre desconfiei'"

Há um mal entendido que perdura, como se a orientação sexual pudesse ser ensinada culturalmente, por imitação social, numa escolinha de copia e cola, como se faz para amarrar o cadarço.

Outro dia ouvi de uma pessoa que "aquela meninada toda está assistindo muita coisa gay, vendo casal gay na rua, como não vão virar gay?"

A ideia de que a sexualidade tem a ver com uma educação social é bem enganosa. Uma pessoa pode ser ensinada nos códigos sociais que se criaram em torno do que é hétero ou homo, mas não para manifestar um determinado desejo sexual.

Não importa o tanto de futebol que você ensinar  para uma criança, ela não será mais ou menos gay por conta disso. O que ela vai aprender é que ela deve esconder seus desejos homossexuais (caso os tenha) do pai futeboleiro-homofóbico até que encontre coragem para assumir publicamente o que sente. 

Um heterossexual pode ser exposto a qualquer novela ou filme gay e não terá seu desejo influenciado, a menos que haja algum traço homossexual latente – assim como um garoto homossexual exposto maciçamente ao romantismo e estética heterossexual também não mudará.

A cultura pode influenciar os fetiches ao longo da história, tais como gostar de alguém com um manto egípcio ou um terno e gravata, mas não mudará a estrutura, a fonte. É a interface biológica do sujeito.

Em grande parte os gays são criados por pais heterossexuais e as referências do que é amor na nossa sociedade são heteronormativas. Mesmo os filhos de casais gays podem ser héteros, na mesma proporção que casais hetero.

Desejo de coração que num futuro breve você possa mandar um novo e-mail com boas notícias sobre sua jornada de auto-aceitação, J.

* * *

Nota: a coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas). É apenas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não me condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.

A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão ampla, de ferocidade saudável. Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta possível.

Antes de enviar sua pergunta, leia as outras respostas da coluna ID e veja se sua questão é parecida com a de outra pessoa. Se ainda assim considerar sua dúvida benéfica, envie para id@papodehomem.com.br. A casa agradece.


publicado em 07 de Julho de 2016, 00:10
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Frederico Mattos

Sonhador, psicólogo provocador, é autor do Sobre a vida e dos livros Relacionamento para Leigos" e "Como se libertar do ex". Adora contar e ouvir histórias de vida no instagram @fredmattos. Nas demais horas cultiva a felicidade, é pai de Nina e oferece treinamentos online em Fredflix.


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