Blues: George Thorogood, uma vida de amor e respeito pelo blues

Conheça o cantor e guitarrista de blues rock conhecido por famosas versões para músicas de Hank Williams, John Lee Hooker e Bo Diddley, além da composição "Bad to the bone"

Quinze milhões de discos vendidos em todo o mundo. Discos de ouro, dois enormes hits de rádio, ambos com cara de rock dos anos 80 — um deles usado à exaustão em filmes e comerciais de TV. Uma aparência típica de classe média americana. Sua banda chama Destroyers e seu som, para um ouvido mais desavisado, está muito mais perto do heavy metal do que daquilo que se costuma entender por blues.

Então, por que falar de George Thorogood nessa coluna?

Por um motivo básico: ele é um cantor de blues. Aliás, vamos ser mais precisos: ele é um excelente cantor de blues.

Sim, você pode rotular suas músicas como rock — ou, até mesmo, como hard rock. Se olharmos o blues com uma lupa, ele certamente estará no blues rock. Mas se você perguntar a ele mesmo que tipo de música ele faz, Thorogood certamente responderá “blues”, sem pestanejar. E ele estará falando a verdade.

Hoje, época em que o blues perdeu sua força comercial e sua popularidade não chega perto do que experimentava décadas atrás, o gênero parece ter caído numa espécie de domínio público. Todo músico diz que foi influenciado pelo blues (o que muito provavelmente é verdade, já que se não foram inspirados pelo blues foram influenciados por músicos que se inspiraram no blues) e muitos dizem que tocam blues (o que está longe de ser verdade). É, na verdade, uma contradição: o blues vende somente para os apreciadores do gênero, mas ao mesmo tempo garante pedigree aos músicos atuais quando colocada em suas influências.

Thorogood, porém, parece levar isso a sério. Nesse ponto, ele entra no mesmo grupo de nomes como Eric Clapton e os Rolling Stones: mesmo com uma roupagem de rock em suas músicas, ele definitivamente toca blues. E, ainda mais importante: ele venera os mestres do blues, com uma idolatria quase religiosa.

Diferente de Jimmy Page, que se apropriou de inúmeras músicas de blues achando que “ninguém ia perceber” (qualquer dia falaremos dos inúmeros plágios e alguns assaltos do Led Zeppelin aqui), Thorogood, Clapton e alguns outros seguem o caminho contrário e aparentam estar mais preocupados em manter vivas as canções pelas quais são apaixonados que em apenas usá-las para vender discos.

E, se Clapton faz isso com sua técnica elegante e muitas vezes delicada, Thorogood prefere outro caminho: escolhendo a agressividade, ele dá uma cara moderna para as canções que “formaram seu caráter na adolescência”, mas sempre mantendo a essência de cada canção — e com um jeito despojado, que valeu a ele e sua banda o título de “maior banda de bar do mundo”. Ao ouvir suas músicas, fica claro que, antes de ser músico, Thorogood é um amante de blues, e tem um profundo respeito por sua história.

Um bom exemplo é a sua versão de The Sky is Crying, escrita por Elmore James e uma das minhas músicas preferidas em toda a história do blues. Pessoalmente, acho a letra genial. É um exemplo perfeito da capacidade do blues em transformar em poesia o acontecimento mais banal do mundo. Afinal, “o céu está chorando” é apenas a forma do blues de dizer que “está chovendo”.

E se a versão de Thorogood é evidentemente muito mais pesada que a original, ela jamais abandona o ponto forte da canção de James: a solidão do narrador enquanto a chuva cai.

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Escolhi essa versão ao vivo porque acredito que o blues, como qualquer gênero musical, ganha força sobre os palcos, e no caso de Thorogood, é bastante fácil encontrar vídeos de suas performances. Mas seja ao vivo ou em estúdio, é fácil identificar o amor e o respeito que o guitarrista tem pelo blues sempre que toca um clássico do gênero. Como eu disse acima, ele consegue impor seu estilo, mas não para alterar a canção, e sim reverenciá-la.

Isso não chega a ser surpreendente, já que ele praticamente devotou sua vida ao blues. No início dos anos 70, com vinte e poucos anos, trabalhou como roadie do blueseiro Hound Dog Taylor, enquanto trabalhava com sua banda, os Dellaware Destroyers — logo conhecidos apenas como Destroyers. E sempre tocando blues. A missão de Thorogood parecia clara: ele ira fazer sucesso tocando blues… Ou não faria sucesso.

Uma história curiosa dessa época gira em torno da amizade entre os Destroyers e outra banda de blues, os Nighthawks. Ainda nos anos 70, os dois grupos faziam apresentações em Washington, em bares que ficavam na mesma rua, um de frente para o outro. Assim, eles combinaram que, em todos os shows, tocariam Madison Blues, também de Elmore James, pontualmente à meia-noite… Mas com um truque: Thorogood deixava o bar, atravessava a rua e ia tocar com os Nighthwaks, enquanto o líder da outra banda, Jimmy Thackery fazia o mesmo e tocava com os Destroyers.

Nem é preciso dizer que essa música se tornou um dos maiores sucessos de Thorogood, tanto que foi uma das que ele executou durante sua apresentação no lendário Live Aid, em 1985 — e, acompanhado pelo baixista dos Nighthawks, Jan Zukowski, oficializando que a música se tornou uma espécie de hino na história das duas bandas. Mas, o vídeo em questão traz uma surpresa ainda maior para o público quando Thorogood convida para o palco Albert Collins, um dos maiores guitarristas da história do blues de Chicago. É arrepiante.

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Mas é importante dizer que, apesar de suas versões famosas para clássicos do blues, Thorogood não lidera uma banda cover. A maior parte de seus discos normalmente é de novas versões de músicas dos seus ídolos, mas também possuem composições próprias.

Uma delas acabou se tornando um enorme sucesso de rádio. Como a maior parte de suas canções, ela flerta com o hard rock, mas aborda um tema caro tanto ao rock quanto ao blues: o álcool. Entretanto, um pequeno diferencial a aproxima muito mais do blues: a solidão.

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A letra é bem humorada, fazendo um passeio por diversos tipos (e marcas) de bebidas. Entretanto, em todos os versos que o protagonista não está citando bebidas, ele está entregue ao blues, seja “preferindo beber consigo mesmo”, seja “acordando de um sonho ruim”, culminando com o “minha família desistiu de mim e isso faz eu me sentir muito mal” — na verdade, é quase um paradoxo: a família desistiu dele porque ele bebe, e ele bebe porque se sente mal pelo fato da família ter desistido dele.

Mas, para mim, a grande obra-prima de George Thorogood é sua homenagem a John Lee Hooker. Ao invés de simplesmente gravar uma canção do mestre, ele reuniu duas músicas cujas letras se encaixavam e criou um monstro de mais de oito minutos de duração.

A primeira metade da música é sua versão de House Rent Boogie, em que o músico — seja John Lee Hooker ou George Thorogood — narra sua dificuldade em pagar o aluguel devido à falta de dinheiro. A segunda metade é baseada em One Bourbon, One Scotch, One Beer (e que dá nome à música): Thorogood mantem a ideia por trás da canção original — o ato de beber para esquecer a saudade da mulher que ama — mas a vincula com a primeira metade, deixando claro que desistiu de pagar o aluguel. Engana a proprietária para entrar em seu apartamento, pegar todas as suas coisas e ir para o bar beber até cair.

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É outro grande exemplo do amor de Thorogood pelo blues. Ele consegue criar uma música completamente nova — e fantástica — mas em momento algum deixa de prestar sua homenagem a John Lee Hooker, fazendo com que a primeira metade da música seja literalmente falada, quase como uma crônica, no estilo que marcou Hooker (você lê mais sobre isso no texto que inaugurou essa coluna) — em algumas versões ao vivo da música, na passagem que o narrador consegue entrar em seu apartamento e pegar suas coisas, Thorogood cita “sua coleção de discos de John Lee Hooker”.

Mas o respeito pelo blues está mesmo nos bastidores da canção, num detalhe que serve como exemplo perfeito da diferença entre nomes como Thorogood (além de Clapton e Keith Richards) e Jimmy Page. Enquanto o guitarrista do Led Zeppelin creditava canções de Willie Dixon como sendo de autoria da banda (muitas vezes sem sequer mudar a letra da canção), o que lhe rendeu um processo atrás do outro, Thorogood escolheu um caminho mais honesto: antes de juntar as duas músicas, o guitarrista entrou em contato com John Lee Hooker e pediu sua autorização.

É por atitudes como essa, que vão além da música, que é quase moralmente errado classificar George Thorogood como um músico de qualquer outro estilo que não seja o blues. Assim como muitos músicos de sua época, ele cresceu ouvindo blues antigos… Mas, ao contrário de muitos deles, ele nunca optou em fazer música comercial; pelo contrário, ele pegou suas canções preferidas e as transformou em enormes sucessos nas rádios — não é à toa que ele é uma das maiores portas de entradas para o blues, algo que, certamente, deve fazer com que ele sinta orgulho das suas mais de três décadas de carreira.

E, se você ainda não adivinhou qual o maior sucesso de George Thorogood, ela está aqui abaixo. Acho muito difícil que alguém não conheça essa música (ou ao menos seu riff), mas é compreensível que você ainda não a tenha associado com George Thorogood, um dos maiores fãs de blues de todos os tempos.

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Clique e Ouça:  Músicas para Conhecer

Who do You Love? — Versão deliciosa da música que se tornou um dos maiores sucessos da carreira de Bo Diddley. A letra é quase uma “irmã” de Hoochie Coochie Man, abordando vodu e outros temas místicos que o blues adora.

Move it on Over — Nem só de blues vive George Thorogood. Está aí sua versão do clássico de Hank Williams, um dos maiores nomes da música country, para provar isso.

Kind Hearted Woman — Logo em seu primeiro álbum, Thorogood prestou homenagem a Robert Johnson. Esqueça os arranjos modernos: acompanhado apenas do seu violão, é uma versão fiel e que transborda feeling.

Shake your Moneymaker — É inegável que Elmore James é um dos artistas preferidos de Thorogood. Shake your Moneymaker, um dos maiores sucessos do guitarrista, também ganhou sua versão nas mãos de Thorogood, junto com Madison Blues e The Sky is Crying.

Smokestack Lighting — Fã do blues de Chicago, Thorogood também prestou homenagem a Howlin’ Wolf, regravando um dos seus maiores sucessos — e aproveitando sua voz rouca para emular a voz de Wolf, em mais uma homenagem.

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Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 18 de Agosto de 2016, 00:00
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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