Dissecando a honra | WTF #18

A honra está morta, longa vida à honra!

Cena do filme High Noon (1952)
Cena do filme High Noon (1952)

A derrocada -- ainda em andamento -- da sociedade patriarcal de valores tradicionais na direção de uma sociedade global mais igualitária, além das óbvias grandes conquistas, também cria relevantes desafios. Um desses é a substituição de uma cultura de valores embasados numa rede de relações pessoais, com a duração de gerações, por uma cultura de regulação artificial, cada vez mais impessoal e de conexões efêmeras.

O que sabíamos de alguém, no contexto de uma sociedade tradicional, é o que sua estirpe representava (a pessoa trazia em si seu valor estampado pelas conexões imemoriais de família e da cultura). Um grande erro era lembrado por gerações e, assim, o indivíduo tanto ostentava o emblema quanto carregava o fardo de toda uma comunidade e entendia que suas ações reverberavam nela de forma direta.

Não havia como não assumir e perpetuar o código de valores que tanto o integravam na coletividade quanto o ressaltavam perante os outros.

Na cultura chinesa e em algumas outras culturas asiáticas há o conceito de “face”, isto é, se somos capazes de manter perante os outros uma expressão digna, olhar o outro no olho e não desviar o olhar. A ideia é que nossa consciência está estampada em nossa expressão facial e nossa postura corporal. Nossa reputação e todo impacto positivo e negativo que causamos no mundo até hoje são nosso rosto verdadeiro, como verdadeiramente somos.

Como existimos na mente dos outros e em nossa própria mente, são distorções mais ou menos precisas dessa face original, mas também relevantes. Se a autoimagem e a imagem pública não estão, até certo ponto, alinhadas com nossa face original, somos “sem-vergonhas”, desonrados, ou pelo menos, num outro extremo, bodes-expiatórios de pressões sociais.

 Hoje, além das sociedades tradicionais sobreviventes, só vemos a noção da honra em raros outros nichos, como, por exemplo, no crime organizado. A honra é assim, ambivalente: por ela um homem traído pode matar, sem ela um membro da máfia alcagueta os colegas -- ainda que toda confiança mútua e o próprio tecido do contrato social dependa, ou pelo menos se origine, dessa noção.

 Uma das características do herói sempre foi fazer “o que precisava ser feito”, independente do respaldo público. Porém, o moderno anti-herói subverte diretamente a noção da honra, em que os próprios valores tradicionais estão doentes e onde os ultramodernos valores de independência, igualdade e originalidade resplandecem, aí não pode mais haver o emblema de uma instituição.

O “herói” (onde quer que nos “enraizemos”: por quem quer que torçamos) se torna o iconoclasta, aquele que vive por seu próprio desígnio, e não está nem aí para o que você, ou qualquer outro, pense.

Batman em "The Dark Knight Rises" (2012)
Batman em "The Dark Knight Rises" (2012)

Dirty Harry, Indiana Jones, Batman, Dexter, House e Anonymous, num mundo sem superego, consciência moral, accountability, pai, Deus ou qualquer eixo claro, determinado e específico de valores, subvertem ou transcendem as ideias de honra -- o código pode existir, mas ele não é mais, em nenhum sentido, público ou sequer comunitário. O rōnin, outsider, marginal, é a expressão natural da subjetividade na modernidade e daí em diante.

Mas essa independência toda, esse maverick  que a cultura norte-americana nos legou como universal, é também o mesmo que produz as externalidades catastróficas e que, com seu narcisismo desenfreado, cada vez mais solidifica um mundo de isolamento e falta de sentido.

Ao que parece, apreciamos exatamente essa ambivalência: o que torna uma figura histórica ou ficcional interessante para nós é sua complexidade. Os regimes totalitários do século XX, com sua simplicidade de maniqueísmo racista -- em meio a uma superestrutura tecnológica, é claro, mas de clareza hierárquica e motivacional --, traíram miseravelmente os últimos anseios patriarcais e desferiram os últimos golpes nas noções de autovalor de alguém que simplesmente, “honrosamente”, siga um status quo patológico.

O próprio Super-Homem, o “homem de aço” é facilmente reconhecível como, no fundo, um herói fascista. Com sua “bondade inerente” e seus valores tão simples, ele só pode ser um reacionário.

Em certo sentido, qualquer âmbito isolado de qualquer forma, seja ele um coletivo ou não, pode ser tomado como espécie de indivíduo ou “centro de separação”. Nesse sentido o narcisismo, seja ele individual ou de grupo,  é facilmente reconhecido como a causa do apodrecimento do valor da honra em seu viés fascista. Mesmo no seu âmbito mais sutil, da hubris negligente ou de autocontentamento excessivo de um herói clássico ou time de futebol, ele já é motor da tragédia: que dizer então quando ele se torna efetivamente megalomaníaco, como na Alemanha Nazista.

Mas o mundo, em reação também a esses movimentos, se segmentou e a perda de nossas raízes e a subsequente entrada numa homogeneidade global trouxeram consigo os novos desafios da individualidade extrema, do consumo desenfreado e de suas consequentes externalidades.

Vestígios da honra em nossas hoje “microrrelações” existem. Mas há simplesmente tanta gente, tanta facilidade de contato imediato, tanta diversidade em meio a graus nunca vistos de igualdade, que ainda que mantenhamos noções claras de reputação e dignidade, essas podem oscilar talvez ao longo de um mesmo dia. E trabalhamos com tantos âmbitos, onde temos tantas diferentes histórias que, cada vez mais, um sentido cultivado, interno, de nosso próprio valor e da expressão que somos capazes de dar a ele, se torna mais importante do que circunstâncias particulares.

Superman, o herói reaça
Superman, o herói reaça

Novamente, o que brilha muito pode acabar sendo a ponta da faca. Na medida em que temos a liberdade de manifestar nosso próprio valor, podemos aprender a imitar aquelas características que impressionam os outros.

O sociopata medieval era mandado embora do vilarejo e todas as outras comunidades naturalmente desconfiavam de forasteiros: o seu dano era limitado pelos mecanismos grosseiros que hoje chamaríamos de profiling, estereótipo, preconceito. Nossa sociedade aberta tende muito mais a dar uma chance e, quanto maior a cidade onde vivemos e quanto mais cosmopolitas somos, mais aceitamos o estranho. Aceitamos credenciais abstratas, mas não temos uma noção efetiva da historia pessoal dele como contada “pelos seus”.

E aceitamos esse risco em nome da tolerância e das noções iluministas de igualdade.

Circulamos por centenas de “vilarejos” virtuais, através do transporte e das comunicações modernas, e nosso nível basal (em comparações com o nível medieval) de desconfiança e preconceito tem muito mais brechas.

E qual é o problema dessa aparente abertura? Com Lampião, Charles Manson e Mark Chapman percebemos que a máxima “não existe má publicidade” pode ter consequências bem funestas (ou, em exemplos mais modernos, a entrada no mundo da celebridade via vídeos de sexo “vazados” de Kim Kardashian e Paris Hilton).

O que antes era cultivo e conhecimento pessoal ao longo de gerações, hoje é pontuação de crédito, ficha de antecedentes, credenciais e documentação; para não dizer número de seguidores no Twitter e outras métricas publicitárias. Somos, em certo sentido bem restrito, nosso curriculum vitae e nossa declaração de Imposto de Renda -- e as marcas a que nos filiamos e nossa postura ideológica pública nas redes sociais.

Pouco importa que nosso avô matou um cara e nosso pai foi traficante; ou que sejamos de família monárquica. Se escapamos da mesma sina, ninguém nem precisa ficar sabendo. Se conseguimos uma boa carta de recomendação de uma pessoa importante, ou por algum motivo a mídia pousa sua atenção sobre nós do jeito “certo” ou nos esquece, está tudo ótimo.

A morte da honra e de um lastro mais sólido de valor na comunidade é, assim, por qualquer ângulo, intensamente transformadora, mas sem qualquer determinação no sentido de o quanto isso pode ser bom ou ruim. O desafio atual, ainda assim, segue em linhas semelhantes a nossos problemas ancestrais: como coadunar imagem e essência, indivíduo e coletividade.

Os samurais defendiam um pequeno território em uma pequena ilha. Hoje, defendemos o mundo todinho
Os samurais defendiam um pequeno território em uma pequena ilha. Hoje, defendemos o mundo todinho

Em certo sentido, o individualismo moderno pode mais facilmente se transformar em consciência global e autenticidade transcendente do que o pensamento tribal, hierárquico e congelado de outrora. Aí a honra pode ressurgir como inclusão total, como o reconhecimento de que não há nada nem ninguém nesse mundo que não esteja interligado e que, portanto, merecedor de olhar cuidadoso, de consideração.

Basta que a liberdade do individualismo seja coadunada com a responsabilidade universal: e não há nem a questão de que isto seja fácil ou difícil, nossa sobrevivência como indivíduos e como espécie depende dessa visão ampla se estabelecer.

Mecenas: Schweppes 230 anos

Quando menino, a noção de honra se limita ao seu conhecimento restrito de mundo, ou seja, seu bairro, sua família, seu pequeno perímetro de vivência. Torna-se homem aquele que consegue enxergar  e amadurecer os parâmetros universais da honra.

Meninos ficam empacados em seus mundinhos. Homens buscam um mundo melhor. 

Schweppes comemora 230 anos e por ser o primeiro refrigerante do mundo, carrega um nome cheio de histórias e legados. Você sabia que Schweppes foi condecorada como a fornecedora oficial de água e soda da Coroa britânica pela rainha Vitória?

Seu toque amargo e sabor discreto, fez com que Schweppes caisse no gosto nada popular dos maiores mixologistas se tornando ingrediente indispensável para os mais variados drinques e provaram que o clássico realmente nunca sai de moda.

E para comemorar mais de dois séculos de história, lançaram novas latas em edições comemorativas.

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Conheça mais a respeito do que Schweppes tem dito sobre meninos e homens e as milhares de histórias da marca.


publicado em 22 de Abril de 2013, 21:00
File

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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