Jantar formal em Oxford*

Acordei cedo para os padrões do inverno: oito da manhã. Ao meu lado, sobre o criado-mudo, a gentil carta do meu tutor, que ainda não conhecia:

“Prezado senhor Rodrigues, sou o seu tutor para assuntos pessoais. Serei grato em receber-te no meu gabinete nesta quinta-feira às nove da manhã".
Giles Barber

Simples, direto e gentil. É assim que eles são aqui na ilha.

Todo estudante que ingressa na Universidade de Oxford recebe esta carta nos seus primeiros dias de vida acadêmica. Eu havia chegado há menos de dois meses e teria esta incumbência agora: conhecer o meu tutor. Segundo uns colegas, uma mera formalidade; para outros, apenas mais uma chatice; e para outros ainda, uma experiência de vida.

Qual seria minha opinião após o encontro?

Meu quarto é no chamado basement, uma espécie de andar que fica um metro abaixo do nível do solo, numa casa vitoriana de tijolinho à vista, com três andares e cheia de chaminés apontando para o céu. A janela fica à altura exata do gramado do quintal, e percebo que o mesmo está branco.

Não é neve. Não, ainda não nevou, e faz anos que não neva em Oxford.

É gelo.

Assim começo a me preparar para mais um dia cinzento e frio. Ceroula de lã sob uma grossa calça de veludo; duas meias de algodão sobrepostas e uma bota de trekking; camiseta, camisa e malha de lã sob um velho sobretudo que eu havia comprado na semana anterior num brechó de coisas baratas; um imprescindível cachecol; o reconfortante gorro e as luvas de couro.

Saio do meu quarto que dá para um minúsculo hall de frente para a porta de entrada da casa. Abro-a e sinto todo o ar da Sibéria adentrar por meus ouvidos e chegar até meu estômago.

Saio ao jardim, relaxo, respiro fundo abrindo os braços como quem saúda um sol inexistente. A única forma de encarar a dor do frio é aceitando-a. Subo na minha bicicleta e lá vou eu procurar o meu tutor para assuntos pessoais, seja lá o que isso signifique. Após um quarteirão, pego a Banbury Road, que me leva ao centro da cidade. É fácil enfrentar o frio numa paisagem tão bela.

À caminho do centro de Oxford, fachadas vitorianas e bordos desfolhados
À caminho do centro de Oxford, fachadas vitorianas e bordos desfolhados

Aprecio o casario vitoriano ao longo da avenida e sua vereda de bordos completamente desfolhados nesta época do ano. Em poucas pedaladas já estou no centro antigo, atrás da pequena igreja de Saint Giles, de fachada gótica, construída entre os séculos XII e XIII e o antiquíssimo cemitério que a circunda: um pequeno gramado onde despontam lápides de pedras cinza escuro que ostentam datas e nomes daqueles que por aqui passaram.

O senhor Barber vem pessoalmente ao meu encontro, depois do telefonema da secretária. Um homem alto, nariz adunco, pele vermelha, vestindo um paletó claro um pouco socado, e um enorme sorriso e simpatia. Levou-me para conhecer o local onde trabalhava, passando por um labirinto de corredores até atingirmos a biblioteca Taylor: um grande salão retangular todo iluminado por luzes invisíveis vindas de portas envidraçadas e candelabros de metal, apinhados de lâmpadas fracas, pendurados por longos fios que saíam do teto.

O pé direito com dois andares vazados.

As paredes revestidas em madeira recheadas de estantes de livros. Uma lareira ornava todo o ambiente com sofás e mesas para leitura e acima dela, uma pintura do século XVIII retratava o arquiteto e mecenas Robert Taylor, cuja fortuna fora usada para construir a biblioteca devotada à literatura europeia, principalmente francesa, espanhola, portuguesa e de outras línguas menores do continente.

O senhor Barber era o curador desse enorme patrimônio. Seu objetivo era me convidar ao meu primeiro jantar formal no college ao qual éramos associados. Colleges, em Oxford, são instituições independentes que formam a universidade e que congregam seus estudantes. Todo mês os colleges promovem um jantar formal entre todos os seus membros, que incluem professores, administradores e alunos.

Este seria o meu primeiro jantar formal.

O que seria isso?

O mais difícil foi colocar a gravata. A primeira gravata a gente faz questão de esquecer. O nó é muito complicado, mas o traje de um jantar formal é... formal: terno e gravata.

E não é qualquer sobretudo que combina com um terno. E os sobretudos são essenciais nestas noites de inverno, onde o fog úmido é uma constante. Passei meu dia entre lojas de grife e brechós escuros procurando por um sobretudo condizente com a ocasião. Pelo menos não tive ainda que comprar a gown, como é chamada a beca, exigida nos jantares formais de colleges mais tradicionais.

Rio Tâmisa em Oxford
Rio Tâmisa em Oxford

Oxford fica à beira do rio Tâmisa, que aqui se chama Isis e, nestes dias de inverno frio e molhado, concentra o nevoeiro noturno que se espalha por toda a planície onde está a velha cidade. A cerração, as fachadas góticas cinzentas, os galhos dos bordos sem folhas e a luz amarelada dos postes criam uma atmosfera sinistra e envolvente.

E foi dentro desta noite que me dirigi ao college, um antigo casarão vitoriano de tijolinhos e telhados decorados por pináculos.

Na sala de jantar estavam vários professores; os tutores com seus alunos. Eu era um deles, em companhia do senhor Barber. Ele me apresentava, sempre sorrindo, a todos os presentes enquanto conversávamos amenidades. Sentamos numa grande mesa, mais uma vez iluminada por candelabros caídos do teto que faziam um jogo de meia luz, tudo numa sala de jantar cujas paredes jaziam retratos dos antigos reitores do college.

Nos colleges mais antigos, essas pinturas remontam ao século XIV até os dias atuais, tudo em óleo sobre tela cujas molduras também refletem a época em que foram feitas.

A conversa foi iniciada com cálices cheios de Chablis, um vinho branco da Borgonha que, segundo o senhor Barber, é um vinho completamente feito em tonéis de inox e nunca de carvalho, e por isso apresenta um gosto particular. Era servido com torradas e um patê com molho Cumberland, feito com vinho do porto, algum tipo de amora, pimenta, gengibre e mostarda.

O senhor Barber contava sua história -- que sua mãe era francesa e que eles, os franceses, tinham hábitos totalmente diferentes quanto a sentar à mesa: enquanto os britânicos não colocam as mãos sobre a mesa, os gauleses fazem questão de se debruçar sobre ela.

A certa altura comentou que aquela meia luz o lembrava dos tempos da blackout durante a segunda guerra. Naqueles anos, era necessário que todas as janelas e portas deveriam ser cobertas durante a noite com cortinas pesadas ou papelão, para impedir a fuga de qualquer raio de luz que pudesse auxiliar a navegação de aeronaves inimigas durante as blitz.

Quando a garrafa de Chablis já parecia estar morta, garçons nos serviam bife de cordeiro com mel e ervilhas acompanhadas por deliciosas batatas tostadas, verdadeiramente inglesas. Neste momento as taças foram repostas com um aromático Bordeaux. Assim a conversa fluiu como o Tâmisa, atravessando todo o sul da Grã-Bretanha para desembocar no mar do norte. Um pudim de leite com a fragrância de limão deu o tom final ao festim, todos à mesa, com suas gravatas já desajeitadas, embalados pela luxúria de inúmeras garrafas vazias do tinto francês.

Sala de jantar do Christ Church college
Sala de jantar do Christ Church college

Agora nos dirigíamos sorrindo e alegres à sala de estar, onde fofas poltronas iluminadas por abajures ocres nos esperavam. Tradicionalmente se bebe o vinho do porto antes de ir embora. "Um típico jantar inglês" balbuciou o senhor Barber. Até no vinho. E todos riram.

Despedimo-nos na porta do casarão envolto pelo nevoeiro. As lâmpadas penduradas nos postes de aço negro estão acesas, mas o tom amarelado da luz mal consegue atravessar a massa escura da noite que as rodeiam. Meu tutor montou sobre sua bicicleta e partiu. Deixei-o esvaecer lentamente sob essa luz. Giles Barber, a biblioteca Tayloriana, o fog do Tâmisa, o bordo desfolhado, o vinho Chablis e um jantar de aromas, sabores e conversas inesquecíveis. Minha opinião após o encontro? Experiência de vida.

Volto a sentir o frio. Relaxo, respiro fundo abrindo os braços como quem saúda um sol inexistente. Subo na minha bike e pedalo cortando a noite, desaparecendo sob a mesma luz amarela.

A igreja gótica de St Giles e o cemitério
A igreja gótica de St Giles e o cemitério

Biblioteca Taylor
Biblioteca Taylor

Linacre College
Linacre College

Obs: todas as fotos, exceto a "Biblioteca Taylor", são do fotógrafo CG Machado. O link da Biblioteca Taylor é esse aqui.

* in memoriam à Giles Barber (15/08/1930 – 12/03/2012).


publicado em 06 de Agosto de 2013, 08:00
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Marcos Rodrigues

Fez doutorado (PhD) em zoologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e é professor na Universidade Federal de Minas Gerais, tento publicado aproximadamente 60 artigos científicos.


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