"Eu me senti humilhado, porque ela ficou rindo de mim o tempo todo. Eu chorei porque sabia que ali eu iria pagar por algo que não fiz, e que minha mãe, meus parentes e amigos iriam me ver na TV como estuprador, e eu sou inocente."
–Paulo Sérgio
Deve ser de conhecimento geral que, dias atrás, a Rede Bandeirantes de Televisão exibiu uma reportagem em que um rapaz, acusado de furtar uma mulher, foi "quebrado no pau" e levado à delegacia. Lá, foi objeto de uma figura muito comum no jornalismo atual: o jornalista-inquisidor, que está ali para fazer, ao vivo e a cores, o julgamento e a condenação daquele que servirá para a malhação de judas daquela tarde.
Não vamos reproduzir o vídeo. Você já o viu. Mesmo que não tenha visto esse vídeo em questão, viu outro, em que outro acusado foi humilhado, com a complacência da polícia local. Sim, acusado preso também tem direito à intimidade e à proteção à honra.
A reação foi forte. Já rendeu uma carta aberta de repúdio dos jornalistas baianos e, segundo consta, vai render a aplicação de "medidas disciplinares" contra a repórter. As análises do vídeo, pelo que vejo, são unânimes. Não há nada a dizer além do que já foi apontado sobre o racismo, o preconceito, a humilhação e até a homofobia da repórter.
Mas, então, por que esse tipo de coisa ainda acontece?
O cálculo da utilidade
Seja quem for que tenha criado essa vertente de jornalismo, seja quem autorize que esse tipo de coisa lamentável vá ao ar, aposto que são pessoas que sabem que ali está retratada a violação de Direitos Humanos. Podem até não possuir a sensibilidade moral de que expor uma pessoa – sim, mesmo um acusado – ao ridículo não deveria ser objeto de matéria jornalística. Mas esse tipo de consideração entra em um cálculo muito comum na análise de risco das empresas em geral.
Para entender esse cálculo, é preciso partir das premissas do Utilitarismo, doutrina ética inaugurada por Jeremy Bentham no final do século XVIII. O Utilitarismo, principalmente na versão de Bentham, apoia-se em uma moral consequencialista, ou seja, analisa o valor de uma ação não por suas características intrínsecas, mas pelo resultado que ela provoca no mundo.
Essa moral é estruturada em torno do princípio da utilidade, que costuma ser resumido na frase "Agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar". Ocorre que, como o cálculo leva apenas a consequência e não a natureza da ação em si, ao avaliar os resultados com base em um denominador comum – frequentemente o dinheiro – o resultado costuma apresentar distorções.
Um exemplo é o cálculo que foi feito pela Philip Morris, fabricante das marcas de cigarro mais conhecidas, apresentado à República Tcheca como argumento contra a adoção de medidas contra o fumo, principalmente o aumento de impostos. A empresa chegou à conclusão curiosa de que, dificultando-se o hábito de fumar, as pessoas viveriam mais, o que aumentaria os custos do governo com a manutenção da saúde pública, com moradias para idosos e com o pagamento de aposentadorias. E que esse aumento seria inferior ao ganho com os impostos. Afirmaram também que o país economizou U$ 147.000.000 em 1997 em razão da morte de fumantes.
Raciocínio semelhante costuma ser feito por montadoras de veículos. Quando a Ford descobriu que uma falha estrutural fazia um de seus carros explodir quando fosse atingido por trás, efetuou cálculos para determinar qual seria o custo de resolver o problema e qual seria o custo das indenizações que teria que pagar pelas mortes de seus consumidores. Quando terminaram, viram que consertar os carros seria mais caro do que se submeter às indenizações. Então deixaram por isso mesmo. Afinal, arcar com os reparos poderia levar a empresa à falência, prejudicando os empregos de inúmeras pessoas. Seguindo esse raciocínio, tolerar as mortes de alguns consumidores parece ser a melhor coisa a fazer.
A aplicação do cálculo utilitarista, com a desculpa de permitir a tomada de decisões que levem ao bem comum, acaba promovendo o sacrifício de direitos individuais, pois não leva em conta a natureza ou conteúdo do ato, apenas suas consequências finais.
Como você vê a TV e como ela te vê
Uma pesquisa rápida nos sites dos nossos Tribunais revela que esse tipo de reportagem humilhante não é novidade no jornalismo nacional. Diversas vezes se decidiu que o direito de liberdade de informação não abrange manifestações que ultrapassam o teor jornalístico para cair na vala comum do jornalismo marrom. Reconhecido o caráter ilícito, as indenizações costumam girar na casa dos R$ 70.000,00.
Se não se discute que isso é errado e se há punição, por que continua acontecendo? A razão está no cálculo utilitarista e ele revela como esse tipo de jornalismo vê você, o consumidor.
No momento de tomar a decisão moral de colocar esse tipo de reportagem no ar, tenho certeza que o diretor leva em conta a possível e provável condenação. Não acharia estranho que a consultoria jurídica da emissora deve ter sido chamada a opinar e emitir parecer sobre as repercussões da reportagem. Estimado um valor, ele foi incluído numa planilha de custos, junto com o salário da repórter, o custo da energia elétrica e o lanche da produção.
Na outra coluna, que listava as receitas, entrava algum valor relacionado com a audiência que a reportagem geraria. Simples assim: violação de direitos humanos x audiência. Just business.
Vamos parar por um momento de detonar a repórter e a emissora e pensar sobre o que isso revela sobre nós ou, pelo menos, sobre o que isso revela sobre a visão da emissora sobre nós.
Somos mesmo consumidores desse tipo de jornalismo/entretenimento? Não caberia um juízo sobre a qualidade, em si, de se humilhar uma pessoa em rede de televisão? Lembro que, na Roma antiga, era costume jogar os cristãos aos leões, para delírio coletivo. Claro que, pelo cálculo utilitário, a felicidade dos romanos supera em muito o sofrimento dos cristãos. E como vemos essa plateia hoje? Qual o juízo que fazemos hoje dessa atividade?
A função punitiva do dano moral
Enquanto a sociedade não avança nessas questões, os juristas discutem a função do dano moral, se seria apenas de ressarcir o dano ou de punir aquele que perpetrou a ofensa.
Aqueles que defendem a função ressarcitória alegam que existe uma "indústria do dano moral" – formada por pessoas que criam as situações de humilhação para depois se beneficiarem – e que uma indenização excessiva acaba gerando enriquecimento sem causa do ofendido.
Embora esse raciocínio tenha lá a sua razão, penso que em casos como esse a função punitiva tem que preponderar. A indenização fixada em valor "razoável" – R$ 70.000,00 é uma pechincha, na minha opinião –, acaba permitindo o cálculo utilitarista. Assim, o respeito e a violação de direitos vira apenas mais um dos custos que a empresa tem que lidar, longe de representar uma diretriz na missão empresarial.
É só pensar nos últimos problemas que você teve com empresas no seu cotidiano. Acha que elas agiram certo por alguma convicção moral? Ou, se agiram errado, você não suspeita de que o custo de fazer certo deve ser maior do que as punições que receberiam?
Empatia e o seu valor
Pode ser que alguém não sinta empatia pelo jovem que foi humilhado. Pode ser que tenha até achado engraçado a dificuldade dele articular as palavras, vibrado com o fato dele ter sido "quebrado no pau", se deliciado com a ignorância acerca do exame de próstata. Tudo bem, não estou aqui esperando uma resposta moral que revele empatia. As decisões estratégicas da emissora já mostram que esse tipo de coisa é raridade.
Mesmo sabendo que a discussão sobre o fim desse tipo de reportagem não passa pelo que o destinatário dela pensa, ofereço a essa pessoa as seguintes perguntas: não incomoda ser um elemento num cálculo utilitarista? Não lhe parece estranho ser usado como fundamento para uma prática que se sabe ilícita? Não é o caso de você se dar mais valor?
publicado em 24 de Maio de 2012, 11:00