A ficção ainda existe, mas cada vez mais se reduz ao binge watching de séries, adicionada do ocasional contato com o módulo discreto das duas horas da arte cinematográfica. E, de fato, mesmo o cinema cada vez produz menos exceções não centradas em pura pirotecnia, no ultraenlatado cheio de merchandising para-comicon-ver: filmes tão formulaicos e visuais que podem ser entendidos por quem não fala inglês, ou qualquer língua. Que então fazem bastante grana pros financiadores, e que gente trouxa curte.
Em termos da literatura no papel (ou suporte digital equivalente), o que temos hoje é cada vez mais um clube de esquisitos como que taxidermistas do ritmo pastoral da prosa. Mesmo o leitor jovem de 10 ou 20 anos atrás, buscando o best-seller na forma de Harry Potter e equivalentes (sempre vinculados a filmes, e mais recentemente com assemelhados vinculados a séries), era não só leitor de nicho, porque, basicamente, frequentemente, acabava lendo só isso (só esse gênero, só essa série): ele também, ao ir para a literatura em geral, se esse fosse o caso, se deparava com a presente wasteland cultural composta por, basicamente, gente que acaba cursando letras e hipsters que por acaso tomaram a decisão de cultivar e projetar valor cultural sobre si. Esse outro âmbito talvez ainda mais restrito.
E não que em algum momento da historia tenha sido muito diferente disso.
Em resumo, “gente que lê livro” (RIP, Chorão): o, ora, nicho, de literati que sabe e assume a leitura como patrimônio pessoal raro, e que deliberadamente a ostenta como capital social, como sinalizador de um culto ancestral de pergaminhos garimpados e horas passadas a sós com signos gnosêmicos concatenados (essas formigas da “cidade dos deuses”, o alfabeto e suas infinitas interações e recursões) e com a própria imaginação. Standard nerds.
Ok, o leitor hipertextual modernete já resmungará que estes são justamente velhos e conhecidos resmungos, cuja litania reiterada a cada década ou par de anos necessariamente redunda vazia – porque ora a TV, ora a internet, ora o celular; ora o Machado de Assis em língua de SMS, e o twit do Paulo Coelho – e enfim o nascimento da pós-modernidade com a autorreferência Quixotesca, e a cultura de déficit de atenção e hiperatividade, enfim, tudo “aqui e agora” sempre, e no mesmo saco. Até o ensino de latim nas escolas acabou: delenda est EL LAZIO: longa-vida latim de porco. O clássico virou rococó, um pastiche do pastiche de si mesmo, depois o funk carioca, beijinho no ombro, e a culpa é dos PTralhas. A Decadência e Queda do Império Romano da possibilidade de comunicação de alto nível entre iguais. Fué.
E no meio disso, aqueles que possivelmente ganharão sua entrada no Manual de Diagnóstico e Estatística de Doenças Mentais (“Leitor” mesmo, como subcategoria de TOC), os tais taxidermistas que param perante um romancinho, mesmo um bobinho best-seller de três anos atrás, e o leem parágrafo após parágrafo, super-obsessivos, parando tudo na vida, até o chat!, para ficar num textaozão de ficção sei lá quantas horas – e que dizer então dos que leem clássicos, crítica literária, ou ousam tentar escrever qualquer coisa? Ou o tipinho que lê Gravity’s Rainbow, Finnegans Wake, Infinite Jest? Só pode ser doença!
Toda vez que estou fissurado nas redes sociais e vejo (nas próprias redes sociais) aquelas críticas de tia coroca “essa juventude só vê essa telinha, perdem a realidade” ou “o pessoal não se comunica mais, é só curtir e compartilhar”, e assim por diante (e que são a mesma tal litania resmungada de “final dos tempos” da cultura ou da humanidade), só o que penso é “TOC de letrinha sempre foi coisa de CDF, escriba, monge, programador: qualquer pessoa que fez qualquer coisa na cultura teve que passar milhares de horas sozinho com seus pensamentos, provavelmente anotando, lendo e produzindo croquis”. São frequentemente chamados de “ratos”: se esquivam em lugares isolados para roer e remoer parágrafos.
Em outras palavras, nunca soou uma atividade normal ou natural. Logorreia é psicopatologia, e ninguém me diz que aquele Finnegans Wake não é sintoma, ou uma série infinda de sintomas... mas, é assim, gosta de coisas cabeçudas? Vai curtir solidão com símbolos concatenados, por muitas e muitas horas.
Criticar porque existe esse foco num objeto (que agora vive mesmo numa caixinha de pandora de dispersão, está concedido) não é o ponto: o ponto é que não muita coisa sai disso, ou pelo menos não para nós (e sim para a corporação), ou perceptivelmente – fora algum consolo emocional de manter relação superficial com várias pessoas (coisa que, aliás, quem meteu a cara no texto nunca obteve, a não ser o Lorde Byron pegador, talvez).
Ok, concedo, tem muito escritor pegador, mas isso vem da própria magnetização do ato de escrever como objeto de fetiche: e tem escritor que xaveca 100% do tempo quem quer que leia...
Não obstante, podem falar da virilidade de caçador do Hemingway ou da “fome de vida” delirante de Kerouac, mas o fato é que eram nerds de máquina de escrever.
Mas tergiverso. Em resumo: o livro de ficção é um engajamento peculiar, sempre foi, mas talvez seja cada vez mais peculiar.
E esse é o preâmbulo para retomar o canto de sereia insano e sôfrego que é o mais sofisticado dos romances góticos – romance gótico ainda que tardio, de difícil classificação. Um livro que é, em termos emocionais, como o Diário de Anne Frank, só que sem toda aquela hiper-realidade inconveniente de holocausto, coisa e tal. O gótico é sofridão, mas é caricatural. Caricatural não engraçado, mas distorcido, exagerado, irreal. Essa combinação, por si só, é “de outro mundo”.
A evocação nostálgica de juventudes perdidas e tempos inexplicáveis, a estética do velho mundo povoado pelo jovem romântico – que apresenta uma ruptura, mas com uma continuidade nostálgica. A morte não é o fim do amor etc.
O gótico não é o horror numa fotografia quasi-gonzo de menina que tomou um banho de napalm, ou similar ultra-real, ultradireto. Algo que quase como que santifica e dignifica o objeto como mártir – Anne Frank é uma santa moderna. Não, no gótico o objeto sedutor é mais grosso, reluzente e cheio de veias – ainda que encoberto em veludo pesado e não mencionável: não é morte, é sexo. É de fato ambos, mas no aspecto tempestuoso, inquieto: é a fissura de morte freudiana. O foco não é a perda, o foco é a infinita insaciedade, representado pela morte do objeto amado.
O gótico é a polpa antes da polpa – o folhetim propriamente dito – aquele arroubo de emoções baratas, ao estilo dos enlatados que critiquei no primeiro parágrafo. Romance, ainda, novela, popularesca, em que a titilação sexual e o crime, ou a sordidez doentia do caráter, sensacionalizam a ambientação em castelos e masmorras, e o sobrenatural – explícito ou implícito.
Mas não os Ventos Uivantes.
Aqui a sensibilidade da menina que assinou o livro como homem deixa a sexualidade tão intensa quanto encoberta – a foda empatada é consequência do orgulho e da diferença de classe, já que na mesma medida que Heathcliff é irmão, ele é da mesma classe, porém quando não é irmão, bem, ele é um bruto – um bastardo. Por aqui não dá, por lá também não. Mas um tesão louco, e mútuo – que fica evidente e transparente mesmo num comportado livro vitoriano.
Heathcliff justamente não tem identidade, ele nunca é aceito – ao mesmo tempo em que é objeto da caridade da família. E assim, um ser “não-nascido”, assolado pelo fantasma da única pessoa que olhou por ele com alguma consideração, destrói a tudo e a todos, inclusive e particularmente a si mesmo. Mas aqui há uma birra realmente insana com a realidade misturada com amor “doentio” – não exatamente porque é entre irmãos (não biológicos), mas pela questão de classe e pela mistificação indizível de ser entre irmãos. E porque Heathcliff é um recalcado, ressentido, um injustiçado vingativo – cuja única qualidade redentora é amar quem lhe olhou com certa dignidade. E mesmo sendo essa pessoa odiosa e desagradável, nossa pena e a própria intensidade do personagem nos faz entender o amor de Cathy.
Cathy, por sua vez, nunca também aceita o seu papel de mulher doméstica – um tema presente em todas as irmãs Brönte e que sempre as coloca nos estudos de proto-feminismo. Ela se define na morte – e o delírio romântico, o frisson da heroína – e da leitora – não é tanto amar em vida, mas ser amada além da morte.
Porém, a iluminação LED e o wifi de nossos tempos parecem rechaçar fantasmas. Que isso tudo pode ter a ver conosco?
Da mesma forma que uma exposição sobre Anne Frank passou por Shopping Centers – e lá se podia ler sobre a menina que manteve um diário que ficou cada vez mais tristinho até que a levaram para um abatedor de judeus enquanto se come um Big King com Chicken Fries e um Milkshake –, e, para ser um ligeiramente eufemista, com isso aplicando uma banalizadinha extra no mal todo do século XX – a intensidade doentia do Morro dos Ventos Uivantes não combina com luz artificial.
Também inglês chucro, ninguém imagina. Com a glória do império e a Rainha Vitória à pleno vapor, tudo que se pensa é revolução industrial, puritanismo, Britons never never never will be slaves. Ninguém visualiza uns gaúchos cabra da peste brigando verbalmente ao estilo novela mexicana: mas são esses os ingleses dos Ventos Uivantes, melhor dizendo, é esse inglês aborígene, celta, selvagem, que domina a novela e aos poucos corrompe os outros personagens mais almofadinhas.
Ainda assim, como ousar comparar o sofrimento tão real de Anne Frank – e a insuportável empatia que ele produz em qualquer um que pare para pensar no mundo interno daquela adolescente “qualquer”, aleatória, se deparando com o mal vasto e impessoal de um satanás mecânico, inexorável, encarnado na forma do avanço do totalitarismo racista –, com as dificuldades interpessoais de alguns ingleses ficcionais, por mais que difíceis e intensos?
O fato é que a estética dos Ventos Uivantes é supersimétrica. O livro é um objeto inconcebível: ninguém entende como a autora produziu essa singularidade – já tão desprezada quanto cultuada por círculos intelectuais por tanto tempo que nem temos certeza, mesmo enquanto leitores, porque retomamos esse redemoinho de emoções – que segue até na crítica! Uma dica é a pareidolia fantasmagórica de, por exemplo, algo como o galho batendo na janela na fria noite ventosa da mansão assombrada. Essas batidinhas que cortam o silêncio da noite são o próprio furor dessa menina inglesa, Emily, cujo amor é natimorto, que pressente que não amará jamais.
A ambientação é a curtição, e a curtição é a maldição. E lá vamos nós de novo pelos labirintos das tensões sociais dessas vidinhas insalubres, num mundo em que qualquer fruição parece impossível.
E essa pareidolia segue e se espelha na natureza do livro, abrindo um leque de interpretações e motivações infinito, mas que nunca se realiza, nunca se preenche. É pura ânsia. Ânsia de almas que já foram belas, mas que agora vagam solitárias e cínicas pelo mundo, e alimentam-se somente da nostalgia do que nunca foi. Lemos porque nos entregamos à beleza de uma desgraça condensada num globo de neve – e a curtição é também a tragédia anunciada de toda família, de todo clã humano, como Gabo também retratou no seu Cem Anos de Solidão.
Junto com os LEDs que espantam fantasmas, e o mundo com déficit de atenção, e a derrocada da alta cultura, também não estamos – comparativamente falando – nem aí para família – pelo menos não mais estamos tão dispostos a cavoucar traumas. Nós vivemos o oposto dos Ventos Uivantes: em vez de excesso de intensidade, na “modernidade líquida” (expressão já datada, inclusive, de tão líquida), a dispersão e falta de sentido, ou paixão, é generalizada. A discrepância é tão grande que talvez, exatamente por isso, o romance gótico tenha algo a dizer.
O verdadeiro fantasma do gótico é o “teria sido tão bom”, e a doçura vil de uma situação que não pode permanecer como é, mas que não quer nenhuma alternativa. O sofrimento macerado das feridas velhas, com todas as possibilidades de florescimento encerradas.
O amor perdido, o amor impossível: a mais bela configuração do desabrochar que, mostrando-se promissor, nunca pôde ser – ou nunca aconteceu por um detalhe: um forno de cremação ou a simples teimosia irracional de todos os envolvidos. Talvez um mero detalhe fortuito, mas essencial.
A estrutura do Morro dos Ventos Uivantes é também interessante porque há uma “dupla emolduração” de narrativa. “Emoldurar a narrativa” é um termo técnico em teoria literária que quer dizer que a história é contada dentro de outra história: há um preâmbulo, e o narrador recebe uma carta, etc. – ou um dos personagens assume o posto de narrador e passa a contar a história. Então, em vídeo, teríamos talvez “flashbacks”. Alguns romances mais modernos tem várias molduras – ou algumas vezes simplesmente vários narradores, sem estabelecer molduras –, e chegam ao que algumas vezes é chamado de “efeito Rashomon”, em que a historia é contada de forma diferente pela perspectiva de cada um dos personagens, como no filme de Kurosawa. (E há um episódio em que os Simpsons parodiam a narrativa emoldurada fazendo dezenas de molduras aninhadas.)
A dupla emolduração do Morro não é uma gimmick, não é um estilismo tão exagerado, mas é “chique”, é artisticamente, digamos assim, bem justificada. A primeira parte da história é contada por um personagem (que assume posto de narrador) para o narrador inicial, e a segunda parte é contada pelo próprio narrador inicial. Ambos os narradores não são confiáveis, mas as motivações não são fáceis de inferir. Daí a complexidade interpretativa do que seria um simples romance com toques incestuosos e fantasmagóricos.
E então há autoria. A narradora “real”, a criadora da obra de ficção, é ela própria um mistério.
Todas as três irmãs Brontë (as outras também escreveram, mas Emily só produziu esse livro e alguns poemas) morreram com em torno de 30 anos de idade. Culpa do clima terrível, e do fato de que sua água era provavelmente contaminada pelo cemitério da igreja próxima.
Elas provavelmente viviam exatamente os tortuosos cenários familiares que descrevem, mas, de modo geral, o valor delas é engrandecido porque conseguiram produzir obras tão importantes mesmo sem uma educação inglesa de primeira linha. Embora elas não fossem exatamente o surgimento da “literatura da classe trabalhadora”, há algo de folclórico ou “de raiz” nas irmãs Brontë.
Charlotte foi mais profícua e melhor escritora. Com base em que digo “melhor”? Os livros de Charlotte foram mais influentes e se relacionam mais com a sociedade em termos críticos – e não deixam de ter sua própria intensidade. Ventos Uivantes é um grande livro, mas é, mais do que tudo, uma peculiaridade cheia de emoção: se ele não fosse tão fascinante, um enigma, e uma obra magnética, seria uma mera curiosidade. Mas não é assim toda a literatura?
Como obra de uma moça que provavelmente morreu virgem, e passou quase toda a vida em casa, sem fazer amigos, O Morro dos Ventos Uivantes se desdobra em mais um nível de ambientação melancólica. Emily não foi vítima do napalm ou do campo de concentração: quiet desperation is the English way – ela foi uma vítima da pacata (e ocupada, trabalhosa, exaustiva) vida doméstica vitoriana.
Trata-se do eterno canto do cisne na forma do caricatural e mais badalado romance gótico, onde o amor impossível é a hiper-realidade ficcional. Obra de uma verdadeira taxidermista de emoções, uma irmã do clube dos fissurados em garranchos e coisas como discussões sobre “narrativas emolduradas” e o sentido e relevância de obras ficcionais.
publicado em 06 de Agosto de 2015, 11:01