Nem todo lutador é um artista marcial

Jon Jones, o atual melhor lutador peso-por-peso do UFC, parece estar na segunda categoria.

Me lembro até hoje de sua esmagadora vitória contra Quinton "Rampage" Jackson. Enquanto o treinador de Rampage berrava "libere sua fúria!", o treinador de Jones dizia, em voz baixa, algo que tive dificuldade em entender. Me aproximei da tela e ele repetiu, "encontre sua cachoeira".

Ahn, será que escutei certo?

Aquela pitoresca instrução me fisgou. Mesmo o UFC sendo um circo movido a holofotes, dólares e sangue, fico em busca das pequenas historietas escondidas por trás dos ossos quebrados e manobras de marketing. Me interessa conhecer quem são os treinadores, quais os métodos, qual a estrutura, o investimento, as motivações e até mesmo as filosofias por trás dos lutadores e suas equipes.

Quero saber o que se passa quando ninguém está olhando.

O ritual secreto de Jon Jones

Nesse obscuro vídeo gravado em 2012, com pouco mais de mil views, encontrei o contexto da estranha frase. Antes de cada luta, Jones realiza um ritual de entrar em contato com água corrente.

Tradução do vídeo:

"Há algo sobre o som da água que me acalma, me relaxa. Me sinto em paz, apenas observando aquele fluxo, assistindo o poder da água, pensando sobre Bruce Lee e em como a água destrói, pensando sobre como Bruce Lee diz que água pode fluir, pensando sobre como água não tem limites. Então olho pra água antes da luta e me sinto empoderado. Então, entre os rounds, muitos lutadores entram em pânico.
"Treinador, o que eu faço? Cara, eu tô cansado. Só tenho um minuto pra me recuperar. Tenho que voltar lá. Ah, cara. Me dê as palavras mágicas. Me diga o que fazer pra vencer."
Me sinto inundado por esses pensamentos entre os rounds. Então o que tento fazer é fechar meus olhos e focar na água. Me foco no som da água. Me foco na batida cardíaca que tinha quando estava em contato com a água naquele mesmo dia, mais cedo. E me foco na beleza e no ar fresco.
Entre todos esses belos pensamentos, me recupero. Me sinto, "uau". Minha pressão sanguínea desceu. Meus batimentos se acalmaram novamente. Estou simplificando onde estou e estou realmente capaz a focar meus pensamentos naquilo que meus treinadores estão me dizendo. E eles estão me dando... conselhos.
Por exemplo, em minha última luta. Entrando no segundo round, a primeira coisa que fiz foi respirar e me focar. Eles me disseram, "Jon, o Lyoto está tentando te acertar toda vez que você chuta, então finja um chute e use um nove ou um azul."
Escutei meus treinadores soarem claros como o dia. Instantaneamente entendi o que precisava fazer. E dois minutos depois encontrei aquela brecha, encaixei o ataque exato que meu treinador pediu. O que levou ao fim da luta. Então é por isso que procuro por água."

Agora tudo se encaixa.

As estranhas instruções vindas do corner, a conversa sobre cachoeira, a postura tranquila em situações extremas.

E voltando ao próprio o exemplo relatado no vídeo, é possível ver, no primeiro round, Lyoto Machida encaixando uma sequência devastadora após uma tentativa de chute feita por Jones. No segundo assalto, quando o relógio marcava 0:55, vemos o momento exato em que Jones finje um chute e encaixa uma esquerda certeira, abrindo caminho para a finalização com uma guilhotina em pé, deixando Lyoto desacordado.

No entanto, nenhum lutador se cria sozinho. Nem mesmo os mais talentosos.

Greg "The Guru" Jackson e seu pupilo, Jon "Bones" Jones
Greg "The Guru" Jackson

Greg Jackson, treinador de Jon Jones, merece boa parte desse crédito. Temido e renomado por seus métodos pouco ortodoxos e por sua habilidade em transformar bons lutadores em campeões, Jackson nunca lutou profissionalmente e não tem qualificações oficiais.

Ele não grita com seus pupilos, diz que essa história de berrar pra motivar é coisa de cinema, de Rocky Balboa. Seu foco passa por acalmar e estabilizar seus lutadores, mantê-los fora da rotina e desenvolver ritmos que se adaptem à fisiologia de cada um. Sua estante de livros tem exemplares ligados a teoria dos jogos, física e causalidade.

Circulam histórias de que ele coloca música clássica para tocar em alguns treinos e encoraja seu discípulos a usar os princípios do jazz(!) ao ritmar os ataques contra seus oponentes. Ele os encoraja a abraçar seus medos e inseguranças mais profundas, dizendo que "a chance de superar uma adversidade não é algo a ser evitado, algo só é assustador se você não está acostumado a fazê-lo".

Sua abordagem torna aqueles que treinam com ele verdadeiros mestres do ritmo e da imprevisibilidade, o que, inevitavelmente, me puxa de volta à lendária fala de Bruce Lee, "Be like water", tornada famosa em uma antiga série televisiva de 1971, chamada Long Street:

O que, por sua vez, nos conecta ao Yasin Mengüllüoglu, mestre alemão de artes marciais que trouxemos ao Brasil para realizar o encontro do lugar chamado "Seja Água – Potência, Fluidez e Adaptabilidade nas Artes Marciais e na Vida".

Lembram?

Nos conectamos ao Yasin por meio do Gil Vivekananda, também autor no PdH e professor de Wing-Chun, formado pela linhagem direta decorrente de Yip Man, que treinou o próprio Bruce Lee na década de 50.

Um impúbere Bruce Lee com Yip Man
Um impúbere Bruce Lee com Yip Man

Apesar de minha curtíssima prática de judô, capoeira e muay thai, artes marciais seguem me fascinando. Não poderia me expressar melhor do que o mestre turco de Wing-Chun Cemil Uylukçu:

"Chamamos de artes marciais pois não é apenas lutar. Luta e defesa pessoal são parte disso. Mas nós chamamos "artes marciais" porque não é só algo físico. Você pode expressar a si mesmo nas artes marciais ou em qualquer arte."

* * *

Talvez o nosso dia a dia não seja assim tão distante de uma luta de MMA. Talvez ser mais água seja um ensinamento válido para aqui e agora, fora do octógno, longe de qualquer ringue.


publicado em 26 de Fevereiro de 2014, 14:05
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Guilherme Nascimento Valadares

Editor-chefe do PapodeHomem, co-fundador d'o lugar. Membro do Comitê #ElesporElas, da ONU Mulheres. Professor do programa CEB (Cultivating Emotional Balance). Oferece cursos de equilíbrio emocional.


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